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BEIT MIDRASH ZEHUT

Engajando a identidade judaica em jovens adultos pelo estudo da Torá com lentes progressistas

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André Liberman

Ao subir as escadarias da sinagoga mais antiga das Américas, localizada em uma linda rua do século 17, é possível ouvir vozes vibrantes recitando e cantando rezas com entusiasmo, seguidas de discussões acaloradas sobre textos da tradição judaica. E não, não falo de espíritos dos judeus holandeses que chegaram no Recife há 400 anos, mas de um grupo de jovens da contemporânea comunidade judaica da cidade. Semanalmente, em um espaço onde o tempo some, um grupo formado por mais de quarenta jovens se reúne para imergir na tradição judaica e ter um momento de comunidade e reflexão em grupo, fortalecendo suas identidades e laços com a religião.

Esse espaço se chama Beit Midrash Zehut, uma iniciativa feita por e para os jovens da comunidade judaica recifense que periodicamente se encontram para ter um momento de tefilá com música, discussões, aulas de conteúdo judaico e o principal, o estudo da Torá, utilizando o chumash Plaut, traduzido pela União do Judaísmo Reformista na América Latina (UJRAmLat). O projeto é formado pelo Zehut , grupo judaico de jovens adultos do Recife vinculado ao Tamar, a frente de juventude pós-tnuá do movimento reformista, e o Gaavah , coletivo judaico LGBTQIA+ brasileiro.

A questão que surge ao observar jovens adultos, com suas rotinas tão ocupadas, mas tirando um tempo da semana para se envolverem com uma atividade tão tradicional, é: o que há naquele espaço que os faz quererem estar ali?

A resposta é que o Beit Midrash é onde não só a identidade e conhecimento judaico são desenvolvidos, mas as reflexões e experiências de vida de seus integrantes são trazidas e costuradas a essa imersão na tradição. Naquele espaço, toda a diversidade de vivências é contemplada como uma forma de enriquecer o judaísmo de todos, ao mesmo tempo que compartilham de uma única identidade ali fomentada e exercida. No Beit Midrash, aprendemos a viver um judaísmo coletivo, mas que respeita o fato de que para viver uma vida judaica, precisamos ter uma forma autêntica de enxergar nossa tradição.

O aforismo que guia nosso Beit Midrash está na Amidá. No fim dela, recitamos ten chelkêinu betoratêcha, pedindo que Deus nos mostre nossa parte em Sua Torá. O que isso quer dizer?

Semanalmente, em um espaço onde o tempo some, um grupo formado por mais de quarenta jovens se reúne para imergir na tradição judaica e ter um momento de comunidade e reflexão em grupo, fortalecendo suas identidades e laços com a religião.

Os rabinos em Bamidbar Rabá (19:7), uma obra midráshica sobre o livro de Números, exploram o momento em que Moshé subiu ao Monte Sinai, tentando imaginar o que pode ter acontecido quando chegaram lá. O rabino Chanina conta uma versão da história:

“Rav Acha disse em nome de Rav Chanina: Quando Moshé ascendeu ao céu, ele ouviu a voz do Sagrado, bendito seja Deus, enquanto Deus está sentado, imerso no estudo da seção da Torá que trata da ‘vaca vermelha’, e citando a lei em nome de seu autor – assim Rav Eliezer diz [na Mishná Parágrafo 1:1]: o bezerro de pescoço quebrado deve ter um ano de idade e a vaca vermelha deve ter dois anos de idade.”

Bamidbar Rabá 19:7

Quando Moshé chega ao topo da montanha, ele ouve Deus, que parece estar estudando. E conforme ele se aproxima, fica claro o que Ele está estudando: Deus está ioshev veossek (sentado e imerso – ambos os verbos no tempo presente), estudando e citando uma mishná de autoria do Rav Eliezer. Conforme Deus aprende, Ele credita ao Rav Eliezer este ensinamento: “Rav Eliezer diz: o bezerro de pescoço quebrado deve ter um ano e a vaca vermelha deve ter dois anos” (Mishná Pará 1:1).

Por que Deus estaria aprendendo a Mishná no Monte Sinai? Por que Deus precisaria aprender os ensinamentos do Rav Eliezer para entender a Torá (que Ele mesmo teria escrito) com mais precisão? Esse é um momento particularmente ultrajante da imaginação rabínica, no qual nossos sábios sonham com sua própria habilidade de ensinar a Deus a Sua Torá. Aqueles familiarizados com o gênero do midrash, no qual os textos existem em constelações atemporais de criação de significado que se movem para a frente e para trás, sabem que isso é típico dos sábios; eles fazem isso o tempo todo enquanto leem a si mesmos e suas realidades nas histórias que herdaram. Aqui, o rabino Chanina mostra como é ser um leitor da Torá, que lê sua própria história na narrativa onde ela não existia anteriormente. Mas esse não é o fim e não basta ler nossas histórias dentro do passado e descobrir onde podemos ter existido durante todo esse tempo.

O Maharal de Praga, sábio do século 16, comenta sobre essa estranha subversão do tempo e da autoridade:

“E há o que perguntar sobre essa ideia de que Deus estaria citando a halachá em nome de uma pessoa. Mas essa leitura é ensinada em nome do Rav Eliezer porque a ideia da ‘vaca vermelha’ é tão complexa que só poderia ser entendida por alguém com tal capacidade de aprender e entender a complexa Torá como Rav Eliezer, que é notoriamente brilhante entre os sábios.

E Deus afixou a Torá de forma que houvesse dentro dela ensinamentos a serem descobertos, e deu a cada pessoa uma sabedoria única para entender e trazer esses ensinamentos de acordo com o que seria adequado para eles, e isso é, de fato, a origem da liminar para ensinar a Torá em nome Daquele que a ensinou.”

Parafraseando o Maharal em Derech Chaim 6:6.

Em outras palavras, Rav Eliezer foi capaz de descobrir essa parte essencial da Torá e ensiná-la a Deus, por causa de sua perspectiva, experiência e sabedoria únicas – que são apenas dele. O Maharal diz que a razão pela qual Deus está citando a Mishná em nome do Rav Eliezer é porque somente Rav Eliezer poderia ter revelado essa Torá; Deus nomear isso como ensinamento do Rav está acontecendo no mundo, o que está acontecendo em nossas vidas, é um componente crítico para nosso aprendizado.

Eliezer, dizendo seu nome, é parte de visibilizar e honrar a maneira pela qual somente Ele poderia ter trazido essa Torá ao mundo.

Isso é o que se sente profundamente quando nos reunimos no Beit Midrash Zehut. Em sua essência, este projeto é sobre passar o tempo ioshvim veossekim batorá, sentados e imersos na Torá que somente nós podemos trazer ao mundo e nomeá-la da maneira que Deus a nomeia, em nossos nomes através de nossas experiências. Conforme a vontade de Deus, ensinamos uns aos outros e revelamos a Torá que nosso povo tem a oferecer. A interpretação que uma pessoa desenvolve sobre a tradição pode ajudar na construção do meu judaísmo e vice-versa.

Cada vez que aprendemos a Torá, somos transformados pelo texto e o texto é transformado por nós. Cada vez que estudamos, estamos lançando uma nova luz sobre o texto, revelando partes da Torá que podem ter permanecido ocultas se não as tivéssemos encontrado.

Esse ambiente envolvente traz as sensações de pertencimento, comunidade e lugar seguro, que na sociedade contemporânea, com tantas demandas que nos obrigam a sobreviver e focar nessa sobrevivência, nos é tirada a possibilidade de vivenciá-las. Sensações essas tão necessárias para nossa vivência humana, principalmente em uma fase da vida em que estamos transformando nossas relações, construindo nossos lares e criando nossas raízes.

Cada vez que aprendemos a Torá, somos transformados pelo texto e o texto é transformado por nós. Cada vez que estudamos, estamos lançando uma nova luz sobre o texto, revelando partes da Torá que podem ter permanecido ocultas se não as tivéssemos encontrado. Quando dedicamos nosso aprendizado, estamos convidando nossos entes queridos, nossos ancestrais, nossas causas, nossos sonhos, para se sentar à mesa conosco em chavrutá (método de estudo em dupla) e transformar a Torá. O que estamos trazendo para o Beit Midrash, o que chidushim, ou tantas novas interpretações da Torá que enriquecem imensamente a conversa. E o mais incrível sobre isso é que tantos desses chidushim vêm das margens, de judias e judeus que fizeram a pergunta: “Se eu acredito em uma Torat Emet, em uma Torá verdadeira, e uma Torat Chaim, uma Torá viva e vivificante, mas não me vejo refletido no texto, sou realmente um receptor dessa tradição?”

Um dos motivos de o Beit Midrash Zehut existir é mostrar que esse apreço por um ambiente diverso e inclusivo é radicalmente judaico, na qual muitas vezes não é apresentado como uma possibilidade em várias comunidades, o que acaba afastando as pessoas. É possível criar um ambiente judaico em que não seja necessário que alguém deixe suas características pessoais e sua integridade do lado de fora da sinagoga para apenas deixar entrar sua identidade judaica. Muito pelo contrário, elas podem enriquecer aquele lugar. Se vemos as pessoas não como consumidoras de judaísmo, mas cocriadoras de judaísmo, tudo se transforma.

Sendo o Beit Midrash Zehut criado a partir da colaboração do Gaavah , coletivo judaico LGBTQIA+ brasileiro, há uma grande ênfase na criação de um espaço em que abrace pessoas de todos os backgrounds, principalmente aqueles que, por muito tempo, se sentiram sem a possibilidade de exercer sua identidade judaica por ideias conservadoras vindas da própria comunidade. Por esse realce, muitas pessoas que não são LGBTQIA+ viram esse espaço de prática judaica como um lugar seguro até mesmo para começar do zero sua construção pessoal do que significa o judaísmo.

Se eu acredito em uma Torat Emet, em uma Torá verdadeira e uma Torat Chaim, uma Torá viva e vivificante, mas não me vejo refletido no texto, sou realmente um receptor dessa tradição?

Há um ensinamento chassídico que diz que, como indivíduos, cada um segue seu próprio caminho na vida. Seu caminho não é o meu caminho. Meu caminho não é o seu, mas juntos criamos uma bela tapeçaria diversificada que é o povo judeu. Portanto, se todas as nossas partes na Torá, se todas as nossas interpretações não estiverem juntas, não revelaremos a Torá em sua plenitude ao mundo. Vivemos numa época em que temos o privilégio de receber tantos novos

Assim, esse Beit Midrash aberto a todas as pessoas se torna um espaço efetivamente comunitário. Aqui, todo jovem judeu tem seu espaço para contribuir e desenvolver seu judaísmo autêntico de forma coletiva, fortemente progressista e radicalmente judaica. Desejamos que mais espaços como esse possam surgir em nossas comunidades, onde possamos estar ioshevim veossekim, habitando e imergindo nessa linda e complexa tradição, fazendo como Rav Eliezer, desenvolvendo e mostrando uma nova Torá que sempre existiu, mas ainda não havia sido revelada. Garantindo o futuro de nossa tradição com lentes que visam novos, grandes e diferentes horizontes de interpretação.

Liessin 2023 Liessin 2023

Nosso futuro nós construímos hoje.

O novo Infantil do Liessin está pronto para os nossos pequenos, trazendo o que há de mais moderno para as próximas gerações.

Bolsa para talit

Argélia, segunda metade do séc. 19. Utilizada há quatro gerações em uma mesma família por ocasião da Bar Mitzvá, quando o menino recebe seu primeiro talit.

Foto: Guilherme Rozembaum, Acervo Projeto Heranças e Lembranças, imigrantes judeus para o Rio de Janeiro, Museu da Pessoa/SP.

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