Revoada

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Revoada

Clube de Escritoras Paraenses

Belém, 2021


Revoada Todos os direitos reservados © Todas as autoras que assinam os textos deste livro, 2021. Oficinas do projeto “Revoadas: voos do processo literário”. Realização: Clube de Escritoras Paraenses. Apoio Cultural: Lei Aldir Blanc – 2020, Secretaria de Cultura do Pará, Ministério do turismo, Governo do Pará e Governo Federal. Produção editorial: Monomito Editorial Capa: Monique Malcher Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo Nº 54 de 1995). Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD R454

Revoada [recurso eletrônico] / várias autoras ; organizado por Clube de Escritoras Paraenses ; ilustrado por Monique Malcher. - São Paulo: Monomito Editorial, 2021. 64 p. : il. ; PDF ; 5 MB. ISBN: 978-65-86979-04-6 (Ebook)

1. Literatura brasileira. 2. Contos. 3. Literatura paraense. I. Clube de Escritoras Paraenses. II. Malcher, Monique. III. Título. CDD 869.8992301 2021-4171 CDU 821.134.3(81)-34 Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949 1. 2.

Índice para catálogo sistemático: Literatura brasileira: Contos 869.8992301 Literatura brasileira: Contos 821.134.3(81)-34

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Sumário Apresentação 7 Desvoar 11 Ecce Mulier 13 Quem és tu? 15 Pontadas desconhecidas 17 Sobre o pesar dos dias 19 Voos ancestrais 20 Pensar... Evaporar... Libertar 22 Ser Ave 24 Mãe solteira 26 Sem título 29 Herança 31 Lua Vermelha 34 Idas e vindas 37 De um voo ao outro 39 Parto 40 Aqueles que não sabem quem são 42 Apreciação infantil 44 A cor do sentimento 45 Depois da chuva 47 Mulher Alada 49 O sonho de voar 51 O voo para liberdade 53 Mestre Nato arfando nos dias 55 Plano de (eu) voo 58 Andorinha-de-pescoço-vermelho 60 Filha de rio 62 Através do espelho 64 Cozinha 65 Para a Sombra que fui 67 Espelho de escambo 69



Apresentação Aprovado no Edital Multilinguagens da Lei Aldir Blanc – 2020, e com patrocínio da Secult-PA, o projeto “Revoada: voos dos processos literários” teve como objetivo apoiar e fomentar a criação literária de jovens escritoras paraenses por meio de um curso com oficinas práticas de escrita organizado pelo Clube de Escritoras Paraenses. Como resultado desse processo, no dia 29 de abril de 2021 foi apresentado o resultado da seleção de textos que fazem parte desta publicação coletiva que você tem em mãos. O curso contou com oficinas ministradas por Monique Malcher, Mayara La-Rocque, Camila Cravo, Roberta Tavares, Cleni Guimarães e Shaira Mana Josy, escritoras paraenses às quais agradecemos imensamente pela disponibilidade e parceria. O cronograma de oficinas se iniciou nos dias 01 e 02 de maio, com a temática “Reconhecimento: Eu, escritora”, ministradas por Camila Cravo e Mayara La-Rocque e com mediação de Camila Mendes e Monique Malcher. Já nos dias 07 e 08 de maio foram ministradas as oficinas “Planando sobre os gêneros literários: poesia e prosa”, com Roberta Tavares e Cleni Guimarães, que contaram com a mediação de Luana Lima e Deyse Abreu. Por fim, nos dias 15 e 16 de maio foram realizadas as oficinas “Voos solo e colaborativos”, com Monique Malcher e Shaira Mana Josy, mediadas por Camila Cravo e Laiane Guedes, encerrando assim o ciclo de oficinas.


Devido à pandemia da covid-19 e à facilidade de inclusão de escritoras de todas as regiões do Pará, todas as oficinas foram realizadas via plataforma on-line Google Meet, com a tradução de intérpretes de libras. Após a execução da primeira parte do projeto, todas as oficinas foram disponibilizadas no YouTube, no canal do Clube de Escritoras Paraenses. Este e-book, então, é uma coletânea com textos das escritoras que participaram das oficinas, ministrantes e coordenadoras do clube. Seu conteúdo será disponibilizado gratuitamente na web como forma de contribuição à produção da literatura paraense. Para nós do Clube de Escritoras Paraenses, esta é uma grande realização, visto que, em um momento tão difícil como o que estamos vivenciando, temos a oportunidade de ampliar nossa atuação, ainda que por meios virtuais. Ter a oportunidade de promover por meio de incentivo cultural um curso no qual 40 mulheres puderam realizar trocas literárias de forma prática é bastante significativo, pois, ao longo dos anos, observa-se pouco investimento na literatura em geral e menos ainda na literatura produzida por mulheres nortistas. Por essas e outras razões o projeto é voltado exclusivamente para mulheres, como uma alternativa que encontramos de reparar minimamente o silenciamento e apagamento de nossos protagonismos dentro e fora da literatura.

Sobre o clube O Coletivo Clube de Escritoras Paraenses teve seu início após a “Oficina de autopublicação para escritoras”, ministrada pela escritora paraense Monique Malcher, em janeiro 8


de 2020, em parceria com o Sesc Ver o Peso, e é constituído por mulheres de diferentes localidades do Pará. Durante a oficina, muito se discutiu sobre a ausência de um espaço onde escritoras pudessem se reunir para praticar a escrita ou até mesmo um espaço de apoio em suas jornadas literárias. Assim, pensou-se na criação do clube com aquelas que ali estavam. No entanto, com a pandemia os planos de atuação foram em parte interrompidos, mas trouxemos o clube cada vez mais para a internet, buscando dentro das redes sociais maneiras de promover alternativas de incentivo, inserção e apropriação da identidade de escritora, pautando em nossas ações integrar tanto as mulheres da região metropolitana como as que residem no interior do estado e até fora dele. Contatos @clubescritoras.pa facebook.com/clubescritoras.pa Mais informações Lucideyse de Sousa Abreu (proponente do projeto) deyse4e@hotmail.com

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Desvoar

Maíra Ferraz Lembra da primeira vez que te ensinaram a voar? Que te disseram exatamente como um voo deveria ser? Os pés fazendo pequenas incursões na terra para pegar o impulso necessário, o corpo inclinado para frente, na iminência de sair do chão. Um método científico sistematizado por etapas. Meus olhos acompanhavam os movimentos orquestrados, uníssonos, para depois enviá-los em frente ao espelho. Mas meu corpo sempre arqueou ridiculamente. Eu sequer sei usar meu corpo para sentar, andar, transar. Que dirá voar. Aqui, nesse milímetro de terra circunscrito nos meus pés, revoo para dentro com a ferocidade de quem parece incapaz de movimentar-se fora da abstração da consciência. Overdoses e overdoses de mim tentando tatear o jeito do meu voo. O jeito do meu voo é tosco, jocoso. Meu voo tem língua presa e rubor nas maçãs do rosto. Meu voo tem coração acelerado e mãos suando. Meu voo é temeroso e muito surpreso com tudo que avista nos céus em que ousa planar. Mas, tudo o que me ensinaram sobre as técnicas de voar em linha reta me fez imaginar um movimento glorioso, inédito, externalizado, sempre um voo em progressão, que poucas vezes consegui imitar. As palavras que descrevem um voo pareciam tão cintilantes que me faziam sentir estrela apagada, estrela morta e incrustada na areia, olhando do fundo a revoada alheia. Mal sabia que um voo feio ainda é um voo. Um voo tosco e jocoso ainda é um voo, desvio, desvoo. Eu repito até perder o


sentido: voar voar voar voar voar voar desvoar e de repente percebo emergir uma nova palavra, jogo fora a inútil inadequação vulgarizada. Todo mundo perde penas ao voar. Todo mundo em algum momento volta para o ponto de onde partiu. Todo mundo tropeça antes de soltar. Todo mundo voa e desvoa. Todo mundo, e eu também.

Maira Ferraz é paraense, psicóloga e pesquisadora de violência contra mulheres, crianças e adolescentes e trajetória de autores de agressão pelo Programa de PósGraduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento da Universidade Federal do Pará. Conheceu a escrita poética muito antes da científica, mas amadureceu somente a última. Flerta com a escrita desde a infância, publicou em blogs pessoais entre 2009 e 2016, participou de uma oficina de escrita criativa na casa da linguagem em 2019 e hoje escreve no Medium ocasionalmente, quando o sentimento não evita transbordar pelos dedos, no endereço: mairaferraz.medium.com.

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Ecce Mulier Clara Gianni

Há similitude No ar que atravessa o peito e arranha os pulmões à primeira inspiração Na flecha que deixei apontarem contra o seio No choro da recém-nascida No arco em riste pronto a me alvejar Aquele que coloquei em tuas mãos. Rest energy. “Não me deixe voar para além de ti”, supliquei um dia, sem saber. A ninguém em particular, a qualquer uma: “Não me deixe sair da gaiola”. Há similitude No choque da casca do ovo despedaçado No respiro ansioso e entrecortado que anuncia meu despertar diário Na danação eterna de bancar a própria vontade Na condição de existir em um corpo solitário Longe das paredes uterinas que um dia habitou A prover sua fome e sua sede A prover seu lar.

Como pude parir esta pobre criança Como pude entregá-la ao humor de estranhas e fugir pela noite? Uma mãe sem filha Uma filha sem mãe A arrastar asas pelo chão Um passarinho sem grades, sem rumo.


Bem que tentei caber de volta entre minhas pernas Bem que tentei preencher o buraco com o que sobrou de mim Bem que tentei costurar a fenda. Mas quando tive de romper a casca Dar à luz este incômodo Não foi por egoísmo, mas por sobrevivência Que resolvi tornar-me minha pele Minha mãe Minha filha Autopoiese Autopiedade Enfim, autora Alada. Vida longa à nova carne.

Clara Gianni é autora de ficção especulativa, em especial ficção científica e terror, além de publicar poemas esporadicamente em seu blog Efeito Placebo. Iniciou em 2015 na plataforma Wattpad, publicando a fanfic de fantasia, terror e suspense “A garota que nunca existiu”, atualmente em hiatus. Sua primeira publicação original foi o conto de terror “Inocência” na antologia Vampiro: um livro colaborativo, em homenagem aos 150 anos de lançamento do clássico Drácula, de Bram Stoker. Também publicou contos nas edições #3 e #4 da Revistinha Pulp, projeto antológico de ficção especulativa de iniciativa do grupo paraense Teatro de Apartamento, disponíveis para compra na Amazon. Seu primeiro livro é Valsa para Vênus, coletânea de três contos de ficção científica/cyberpunk e terror, todos ambientados em Belém. Recentemente, publicou contos nas coletâneas Trama das Águas (Monomito Editorial) e Belém das Sombras (Pyro Books). 14


Quem és tu?

Yasmin N. Moita Aconchegante, a escuridão me abriga. Ela me cria, me nutre, me consola. Como um abraço quente e longo depois de um dia triste que se arrastava. Um dia de muitas horas. Tinha cansado de trombar com obstáculos e de fugir de perigos: quase tudo era tão grande! Um tempo antes da escuridão chegar, lembro que encontrei uma criatura estranha no lago, e logo perguntei a ela: — Quem és tu? Era a água. Que também era eu. Parada, que a tudo refletia e distância alguma alcançava. Ciente de minha pequenez, já perdendo com os revezes a esperança, pensei bastante. De que me serviam as pernas que não tinham me levado longe? Para que destilar tanto veneno em quem me incomodava? Até que a natureza me interrompeu. Disse-me para me fechar e enfim descansar das inúmeras quase pisadas e quase capturas. E ela me forçou a olhar para o lugar mais detestável da Terra: para mim mesma. Não era um instante na água parada, mas dias em mim mesma, trancada, questionando-me, como fiz com aquela criatura: — Quem és tu? E o ócio me fez responder. Eu era a jovem com a cabeça nas nuvens. A garota dos sonhos impossíveis. Admirava flores, pássaros e borboletas. Queria descrever a beleza de tudo. A que tinha pernas desajeitadas, que atrapalhavam o maior sonho: descobrir o que tinha do outro lado do lago.


Era a moça que queria ver o mundo. E também a garota que ouviu que deveria desistir. E que, agora, a própria natureza tinha deixado de castigo, confinada a um casulo apertado e escuro, que era cada vez menor. Que agonia! Crise inesperada! Que desconforto! Quais serão os desígnios da natureza agora? Me agito. Me contorço. Natureza, que queres? Vejo a frondosa copa da árvore. Devo ter morrido. Ou não. Sinto-me pesada. Mexome mais. Bato minhas asas com fúria. Eu tenho asas! Saio do casulo. Caminho carregando nas costas um novo peso. Bato as asas mais três vezes, inquieta. Dou um salto maior e saio do galho que me abrigava até então. Mas e agora? Abaixo está o espelho d’água parada, eterno zombador e eterna fronteira. E ali estou eu, refletida, prestes a cair nele. Eu, borboleta. Que bate as asas desesperadamente, enquanto se aproxima cada vez mais da água. O medo não me paralisa dessa vez. Pelo contrário: me faz voar. E eu subo. Vejo as copas das outras árvores. E um majestoso rio barrento, grande o suficiente para não se ver a outra margem: um oceano que vai desaguar em outro. Sigo, maravilhada, o curso da água corrente. E sinto em meu âmago. E respondo finalmente: sou borboleta.

Yasmin Moita é advogada e natural de Belém do Pará. Orgulhosamente amazônica e brasileira. Inquieta. Fã de ficção científica, Filosofia, Ciências Políticas, música, chocolate e tapioca.

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Pontadas desconhecidas Lívea Colares

A menina-sorriso estava diferente Sua curiosidade reflexiva e seu coração aguçado pareciam adormecidos Ultimamente, algo vinha lhe roubando o ímpeto A menina-silêncio que antes se deitava na grama a observar o céu agora deitava-se de bruços dedicando-se aos detalhes das coisas que vinham da terra Ela sentia dor nas costas pontadas desconhecidas que lhe esfriavam o peito com o medo mal sabia ela que não havia por que temer o incômodo apenas anunciava o nascer de suas asas


Lívea Pereira Colares da Silva é paraense, nascida em Belém. É jornalista por formação e mestre em Ciências da Comunicação. Descobriu a paixão por livros aos dez anos e desde então está sempre em busca de boas histórias para ler ou contar. Suas primeiras crônicas nasceram da vontade de compartilhar sua visão de mundo. Escreve também romances e poemas. É uma das vencedoras do Prêmio Uirapuru 2019, na categoria Crônicas, com o livro Encontros. Também já ganhou menção honrosa no Prêmio de Poesia LiteraCidade 2013 e no Prêmio de Contos LiteraCidade Jovem 2014.

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Sobre o pesar dos dias Camila Cravo

Nesses milhões de minutos que estamos aprisionados existem vários dias. E há dias em que não quero levantar, me falta coragem pra enfrentar o mundo. Mesmo que minha mente esteja em constante luta pra viver, meu corpo recolhe-se no leito. Há dias que tudo parece calmo e não resisto ao viver, saio, vivo um pouco, esqueço como o mundo pode ser amargo para nós. Também há os dias em que não penso sobre nada disso, apenas vivo e esqueço, caio de braços abertos na minha imaginação, ela me dá tudo que o mundo real não pode. Quase todos os dias me renego, fico distante de mim, minha mão fica distante da caneta, renego minha escrita e palavras que me percorrem. Há palavras marcadas em cada espaço da minha pele e elas pedem por liberdade. Peço perdão por todos os dias que esqueço de mim. Amanhã é o novo dia para tentar e, mesmo que eu desista, ainda sou eu, ainda há palavras em mim, ainda há algo que vale ser escrito. Devo escrever, ainda quero, sempre precisarei escrever. Camila Cravo é paraense, escritora e estudante do curso de Letras – Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pará. Começou a escrever desde muito cedo, ganhando alguns concursos de jornais de Belém. Por essa afinidade com a escrita, sempre escreveu em blogs pessoais, atualmente usa a plataforma Medium para publicar seus escritos. Além disso, atua como pesquisadora da FAPESPA no projeto Cidadania Comunicativa, onde investiga a comunicação exercida por sujeitos desfavorecidos na Amazônia. Participou do curso de autopublicação para escritoras ministrado por Monique Malcher, que culminou na publicação coletiva da zine O Segredo (2020). Também é uma das coordenadoras do Clube de Escritoras Paraenses. medium.com/@cmlcravo. instagram.com/cravinhu.


Voos ancestrais Ester Corrêa

Dei-me conta recentemente de que, na minha linha ancestral, a escrita é um privilégio não experimentado por minhas avós e bisavós. Revirando os documentos de família, milagrosamente encontrei a certidão de casamento da minha bisavó paterna. Ela não pôde assinar o livro de casamento, por não ser alfabetizada. “Asignando a rogo da nobente por dizer não saber ler nem escrever” diz o documento escrito à mão, de caneta azul, no ano de mil novecentos e trinta e oito. Outro homem assinou por ela. Iniciei naquelas linhas um voo ancestral. Surgiu a necessidade da escrita da história das minhas mais velhas. Por meio da escrita poderia me tornar porta-voz das que vieram antes de mim. Uma forma de justiça e reparação que quebrava as últimas barreiras a separar minha história a das minhas avós. Mas como a gente sobrevoa o passado? Como a gente coordena as asas e ajusta o olhar? A representação é necessária, mas como fazer isso se nem toda poesia do mundo consegue captar as fortalezas que se armaram ao redor das vidas das mulheres que nunca assinaram seus nomes e histórias em um papel? Iniciei uma busca! Um voo sobre papéis e oralidades. Encontro nomes. Sobrevoo as histórias contadas. Busco cores, localizações, compartilho sabores e saberes. Teriam elas plantado alguma árvore que me faz sombra agora? Há algum resquício debaixo do solo? Não sei se um dia saberei.


Sinto-me atraída a exercer uma arqueologia que me traga materialidades dessas existências. Percorro caminhos e trilhas ancestrais. As palavras aparecem – essas que ficaram soltas no ar – inscritas no não-dito, no não-assinado. E elas se repetem, cruzando meu sobrevoo. Elas sobrevivem. No ar. No lugar. Nas pessoas. Em mim.

Ester é nascida no interior do Pará, na comunidade de Tatuaia, zona rural de São Miguel do Guamá. É mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal do Pará e doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Viajante, escritora, fotógrafa, pesquisadora e artesã, tem publicações de artigos e ensaios visuais em revistas acadêmicas na área da Antropologia e da Arte. Autopublicou a zine Poética de mochila (2021), fruto da experiência como mulher viajante. Pesquisa sobre mulheres, feminismo, negritude, ancestralidade, cultura popular e mulheres viajantes. Atualmente, é participante na @coletivafeminart com o projeto “Minha mãe tem um terçado atrás da porta”, é escritora no blog médium.com/ikamiabaviajante, participou do Laboratório de Arte Margens Convergentes, é participante do Podcast Desbravadoras, compôs a equipe do EcoMuseu Casa da Mata e realiza pesquisa acadêmica sobre as mulheres que viajam de mochila pela América do Sul. 21


Pensar... Evaporar... Libertar

Tânia Miranda

Tomei algumas taças de vinho agora à noite, então minhas incoerências aqui nesta página provavelmente serão mais floridas que de costume ou descoloridas, quem sabe incoerentes, imprudentes, insolentes... Me encontro sentada, olhando para uma página em branco na tela do meu notebook há algumas horas, tentando começar. Escrever tem sido minha companhia, me refugiei entre papéis, canetas, lápis, computadores; paisagens e imagens simples, outras desoladoras, neste tenebroso tempo de dois mil e vinte um. Escrevo, não escrevo. Escrevo. O que escrever? Sobre o que escrever? Não é sobre mim, é mais que isso: é sobre gentes, gentes, sobre a gente. Porém ao meu modo, uma maneira simples de pegar a essência intangível de mim mesma e torná-la tangível. Me dei conta Me encontrei Caminhei E sei Não há caminhos isentos de choro Se houver, me recuso a percorrê-los Os caminhos que encontrei, as esquinas por que passei, por onde andei Confiante e desviante Morri em vida para sobreviver Confiante no caminho encontrei gentes, gentes, gentes Dispostas a me socorrer, me dilacerar; o corpo e a alma de carinhos e carícias Desviantes no caminho amei sem pensar, sem chorar, sem perdoar


Assumi os riscos do meu caminhar Em pensamentos, e às vezes em palavras, sonhando, muitas vezes voando, outras com os pés descalços queimando-os na areia, no asfalto, nas ruas e rios da Amazônia E de tanto amar, tanto amar; parei para chorar, fiz um sorriso brotar Lembrei de nós loucos, alucinados e crianças Meu amor, meu tesão, minha paixão, minha sedução, meu todo bonito! Lembrei do calor, olhos nos olhos, pele sob pele, das travessuras de noites eternas Da confusão das nossas pernas É assim que me sinto contigo, inocente e indecente Sim, tudo era sagrado! Tudo era divino em nossas almas Em outra vida, em outro tempo e Ultimamente, quando não consigo dormir Essa outra vida e esse tempo é para onde vou

E meu pensamento se torna vapor: desaparece ao vento Por isso, registro as palavras... porque palavras podem ser para sempre, ou perto disso! Posso colocar minha alma no papel e amanhã voltar e checar-me: Sou Eu? Sim, sou Eu, ainda sou Eu, mesmo perdida no tempo, o que escrevo é como uma espécie de bússola Escrevendo... Me sinto LIVRE! Tânia Miranda, antropóloga, nasceu em Belém do Pará. Pesquisa em áreas da Amazônia que são afetadas por grandes empreendimentos. Tem vários artigos publicados em revistas científicas. Escreve desde os 16 anos contos eróticos. Seus escritos têm como pano de fundo uma cena política, a música brasileira e um bom vinho.

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Ser Ave

Andreyza Teixeira Eu sempre tive essa vontade de voar bem alto Mas me tornei cativa de um desejo que nem era meu Fui permitindo pequenas fissuras que diariamente foram me quebrando as asas Fraturando ossos de todos os sonhos Todas as vezes que busquei paz e tentei me encontrar Me sentia sozinha, mesmo na multidão de pessoas A noite foi tomando conta de todas as possibilidades E no meio dela chorei, várias vezes É como se estivesse caminhando para o desastre Porque isso que você chamava de amor Estava me matando aos poucos Só ouvia a tua voz me dizendo que eu não era capaz de voar, porque fui convencida de que não era uma ave Eu deveria saber que carinho não tem gume Um soco na parede não é metáfora E um pedido de desculpas não cura nenhuma ferida se você nunca deixa o dia amanhecer

Tive breves momentos de lucidez, onde eu dizia: “por que ainda estou nesta gaiola?” Mas eram logo consumidos pelas urgências da vida E fui esquecendo do tamanho do céu Até me convencer que aquele pequeno espaço da gaiola era o que me cabia Foram se criando tantos poços profundos, onde eu enfiava todos os gritos, ofensas, os choros, as humilhações, as chantagens...


Toda a dor E eu esperava um alento, um desprendimento, uma despedida... Provavelmente, de mim mesma Foi quando encontrei outras aves que não eram cativas e que voavam E que me fizeram perceber que ossos fraturados podem ser curados, se você os tratar E o primeiro passo foi dado, com a quebra daquela gaiola Com a tentativa tresloucada de alçar voo mesmo na dor Desaprendida daquilo que era próprio do meu ser: o de voar De querer voar, de precisar voar A gente tem necessidade de um ninho Mas pode encontrá-lo no caminho percorrido dentro de nós mesmos.

Andreyza Jesus Dias Teixeira Chaves mora em Ananindeua, tem 43 anos e dois filhos (um de 20 e outra de 10 anos). É formada em História e Direito pela Universidade Federal do Pará e delegada de Polícia Civil. Atualmente trabalha na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Ananindeua. Escreve contos e poemas e já publicou alguns deles em livros de coletâneas de editoras pelo Brasil. Gosta de escrever e ler. Mais do que isso, tem necessidade disso, pois é uma das coisas que a definem. 25


Mãe solteira

Laiane Guedes

Estou falando do escritório onde trabalho, este é meu primeiro emprego e só o consegui depois que abandonei a vida de casada. Na verdade, antes desse emprego de recepcionista eu acreditava que só sabia ser dona de casa. Estou com 27 anos, dois filhos, um gato e uma cadela para criar, meu ex-marido me traiu com a filha da vizinha que morava na mesma vila que nós. Minha mãe me ajuda como pode, leva as crianças para a escola e cuida delas até eu voltar do trabalho. Ainda sofro muito pelo Bernardo, mesmo depois da separação. Ele foi meu primeiro namorado e único amor. Minhas amigas comentam comigo sobre uma possível reconciliação, mas dentro de mim algo diz que a vida logo vai se ajeitar e tudo isso vai passar. O emprego não é o melhor do mundo, eu atendo o telefone, anoto recados, auxilio pessoas, ajudo na organização dos documentos do senhor João, meu chefe. Sinto-me útil, é um sentimento bom. Apesar do cansaço, é melhor do que retornar à posição de mãe e dona de casa. Eu sou mãe e serei também o pai, quando necessário, sei que Bernardo não vai se responsabilizar em fazer sua parte, mas também sei que faço de tudo por minhas crias. Isabela, minha filha mais velha, está com seis anos e todos os dias pergunta pelo pai. Digo a ela que no fim de semana ele virá buscá-la para passear, ela dorme aquele sono inocente das crianças, com uma expectativa que dura da segunda à sexta. Isso ela não herdou de mim, eu sou mais pé no chão, do tipo que só acredita em uma promessa depois que vejo ela se cumprir. Lucas, seu


irmão, está com três, menino que vai com todo mundo, quando saio ele não chora porque se sente bem na minha ausência. Peço a Deus para que ele cresça com essa tendência a ser independente. Uma mulher trabalhando é quase sempre para manter a família, as mocinhas que não têm muito compromisso fora do ambiente profissional não dão conta da rotina. Nós mães somos sempre as que seguram as pontas a qualquer custo, porque nosso bebê não pode dormir sem o jantar e não pode ir para a escola sem o café. Na quinta, 24 de dezembro de 1993, véspera de Natal, eu tava saindo do trabalho, já bastante cansada, quando dei de cara com o Bernardo. Ele tá diferente, deixou a barba crescer, usa uma calça folgada, quase um estilo hippie. Veio a meu encontro, perguntou se viajaria com as crianças no feriado, respondi que iríamos para o interior visitar meu pai, as crianças estavam com muitas saudades do sítio. Bernardo me pediu para ir junto, respondi imediatamente que não. Ele seguiu insistindo na ideia de ir passar o Natal comigo e as crianças na casa do papai, no interior. Não consigo acreditar que pensa em “nós” como uma família depois do que aconteceu, segui em frente e deixei ele falando sozinho. Hoje, no caminho de volta pra casa, sentada junto à janela do ônibus, penso na mulher que estou me tornando. Nunca é tarde para crescer. Pensava que ia viver para sempre com aquele homem, que até me amava – sim Bernardo gostou muito de mim –, mas só do lado de fora da casa consigo ver o tamanho da prisão: gaiola grande com dois quartos, quintal e piscina para as crianças, cozinha ampla para dar a sensação de que eu tinha espaço suficiente para cozinhar, servir a mesa e apreciar a vista da janela. A chave ficava até na minha mão, porque aquela era uma prisão da qual eu mesma não queria me libertar, era infeliz e não sabia, perdi tanto tempo ali. Bom, agora não adianta mais reclamar, é hora de dar um novo sentido à vida. Próximo ao ponto, meu telefone toca, atendo, é mamãe dizendo que Bernardo apareceu em sua casa bêbado e levou as crianças embora. Entro em pânico! 27


Ligo para a polícia e começo a chorar. O telefone toca outra vez, agora é Bernardo dizendo que está me esperando em nossa casa, coloca as crianças ao telefone, consigo perceber que estão bem. Me tranquilizo. Desço do ônibus e me preparo para ir até eles, são instantes tensos, desses que nos mostram o que nos move na vida, percebo que meus filhos são minha razão de ser e estar viva. Sinto o passado como uma sombra que não quer me desacompanhar. Seja lá o que for que aquele louco esteja planejando, só vou entrar lá, pegar meus filhos e partir. Entro no primeiro táxi que aparece, a cada rua no trajeto me vem uma lembrança com aquele homem doente. Eu não posso lembrar de momentos bons com ele, o passado, quase como uma pessoa, diz coisas que me fazem lembrar a vida que tive ao seu lado. O táxi para em um sinal demorado, me dá tempo de pensar em quantas outras ruas na cidade ainda não conheço, aquele homem não me deixaria avançar nem mais um metro se com ele ficasse. Vou com frio na barriga, meus filhos podem estar em perigo, eu sou a mãe, se algo acontecer é capaz do Bernardo sair ileso e eu como culpada. Eu mataria aquele desgraçado. Chego na casa, desço do carro, corro pra abraçar as crianças que brincam tranquilamente no pátio. Quando olho pra dentro da sala, Bernardo está sentado, dormindo profundamente, sinto que a ressaca vai doer, respiro fundo com as crianças no colo, saio pelo portão e deixo o passado dormir. Vou embora sem olhar pra trás. Se acordar, não estarei mais lá. Laiane Guedes é cientista social, feminista, bissexual, escritora e percussionista. Começou sua trajetória na literatura com o texto “fulga” no livro Alfredo uma entrenarrativa de viagem, publicou o conto “As estações do rádio lunar” na coletânea Tramas das Águas, publicada pela Monomito Editorial, produziu eventos virtuais e presenciais de fomento à cultura voltados para mulheres e pesquisa e brinca com a escrita em seu cotidiano. laiguedes.medium.com laianeguedes21@gmail.com

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Paloma Costa Já, meu bem? Tira a roupa. Vem deitar. Deita, Mas não dorme. Sei que os dias estão difíceis Que é mais silêncio que risada Mas bota a cabeça aqui No meu peito É tua paz, eu sei, Vem. Lá dentro é desespero, sabe? Chorar não pode. Rir é proibido. Se esbarram porque correm depressa demais naqueles corredores e já esqueci a forma dos rostos dos meus colegas de trabalho. Ontem uma menina de cinco anos foi achada morta em um terreno abandonado – precisei chamar a mãe pra identificar o corpinho da filha. Beira o insuportável. A garganta fica sendo, mais uma vez, aquela represa que torço pra não romper, pra não me matar sufocada. Lembras quando foi a tua vez? A tua mãe perdeu todas as forças naquele dia. Precisei fazer o teu reconhecimento. Quem podia imaginar que em uma ida à festa alguém iria te abater na encruzilhada? Já te esperava em frente à igreja, segurando aquele travesseiro de arco-íris que tu tanto querias ganhar de aniversário. Lembras que eras tu que me aguar-


davas chegar em casa às madrugadas só pra poder dizer sorrindo que eu podia me deitar mas não dormir? E não dormíamos. Era o nosso tempo e de mais ninguém. Fico olhando aquele caderno de colagens que tinhas e rio sozinha da nossa “futura família das iguais” – duas adultas e uma criança com vestidos iguais, pijamas iguais, maquiagens iguais e inúmeros cachorros e gatos coloridos à nossa volta. Eu dizia que tu viajavas nas projeções, mas a realidade era que eu amava a tua criação e amava mais ainda poder estar contida nela. Ah! Quase esqueci de te falar: pintei as asas daqueles querubins nas paredes de casa e ela ficou mais alegre; aos poucos tenho ficado assim também. Lembra de voar por aqui de vez em quando, tudo bem? Tenho estado em paz, tu sabes, e te agradeço sempre.

Paloma é licenciada em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade do Estado Pará (UEPA) e Bacharel em Museologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Além disso, é contadora de histórias do Grupo de Extensão Griô, discente do Curso Técnico em Cenografia da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA) e integrante do Coletivo Aparelho desde 2016. Também é fotógrafa em formação e desenvolve essa linguagem se especializando na fotografia de rua, fotopaisagem e fotografia familiar. Em 2020, participou do “Mundos Imaginados – Laboratório Experimentais de Criação em Rede”, promovido pela Raio Verde, e também do projeto “Trama das Águas”, publicado pela Monomito Editorial. 30


Herança

Ana Carolina Gomes O cheiro de jasmim entrava pelas janelas abertas para a noite de verão e fechava-lhe a garganta. O crepitar do gelo derretendo no copo de uísque parecia marcar o tempo daquela espera, enquanto H. tentava respirar. O burburinho que vinha do salão lá fora denunciava a elétrica euforia dos convidados à espera da meia-noite que traria um novo ano, a esperança infantilmente reacendida com as badaladas do sino. H. também queria renascer, mas para isso precisava de Lygia, e já fazia dezoito minutos e vinte e sete crepitadas de gelo desde que a havia convocado, com o olhar em código em meio à pequena multidão, para que lhe encontrasse no outro aposento. O cetim azul-claro encostado à escrivaninha de carvalho formava uma risca de suor sobre o quadril de H., e a umidade dava-lhe a sensação de estar mergulhada num líquido viscoso de onde só poderia ser içada pela presença magnífica que, sabia, traria a chave para todos os seus mistérios. A porta finalmente rangeu, e vozes não convidadas esgueiraram-se por um segundo para dentro da biblioteca, mas depois o mundo silenciou-se novamente. Ouvia-se o farfalhar da seda enquanto Lygia se aproximava, somente o rosto e o colo discerníveis entre a penumbra e o vestido preto. — Desculpe, minha querida, ficamos presos numa conversa interminável com o embaixador, que insistiu em relatar todos os detalhes da situação no Irã, demorei a conseguir


me desvencilhar. Por que está aqui nesta escuridão? Vamos lá para fora, já é quase meia-noite. — Estou afundada em um pântano tão denso que não sei nem se conseguirei sobreviver aos próximos minutos e chegar a ver o novo ano. Eu tenho a certeza de que 1954 é o ano em que eu vou morrer. O pragmatismo de Lygia chocou-se contra a amargura cerimoniosa de H. — Ora, deixe de bobagens. Isso é demais, até para você. Pois eu sei que este será o seu ano, o ano em que você vai finalmente abraçar o ofício, aprender a voar. — Este ano eu faço vinte e quatro anos. Lembra o que aconteceu com o meu pai aos vinte e quatro anos? Lembra o quanto ele lutou, inutilmente? Eu sinto o mesmo mal tomar conta de mim, Lygia. Eu sinto a loucura me envolver enquanto escrevo. É como uma fumaça espessa que sobe pelos meus braços, toma o ar à minha volta, adere às paredes, ao teto. Fecha-se em mim e lança-me em espiral ao poço escuro. Eu sei que algum dia não conseguirei mais sair, estarei ali perdida para sempre e terei aqueles mesmos olhos baços e enevoados do meu pai. Merda! Eu me esforço para deixar de escrever, para ficar longe do papel e da máquina. Mas é uma maldição, a mesma loucura me impele sempre a voltar. — Olha, quisera eu poder mergulhar ao fundo do poço, sabe? Fico sempre pairando à superfície, numa eterna prontidão, à espera do aviso dele sobre algum jantar ou visita ilustre. Aquela que escreve fica desbotada em um plano longínquo. Eu me sinto ridícula quando não escrevo. E, quando escrevo, o que sai é lindo e superficial, como tudo à minha volta. Tudo arrumado. Mas me falta um poço para mergulhar. Escuta, você pode me doar um pouco dessa loucura? Prometo que você não morrerá em 1954. Eu vou lhe puxar 32


de volta, até você aprender a voar sozinha para fora do poço. Venha, vamos voltar à festa. H. deixou-se conduzir pela sala, o cetim empapado colado às costas, afastada por Lygia da beira do abismo, mais uma vez. Mas, antes de emergirem as duas à superfície alegre do salão, Lygia notou que o olhar de H. de fato parecia um pouco enevoado.

Nascida e criada em Belém, Ana Carolina Gomes viveu por dez anos no Rio de Janeiro e há três mudou-se para o Porto, em Portugal. Sempre cercada pelo sotaque chiado, a língua portuguesa é um dos seus grandes amores. É bacharela em Direito, tem MBA em Relações Internacionais e trabalha como consultora em projetos de cooperação internacional. A gaveta de Ana Carolina guarda muitos textos não lidos por mais ninguém. Um dia desses aconteceu que um conto rompeu o cerco e vai ser publicado na coletânea Bonde Cuspindo Gente, organizada por Caco Ishak, a ser editada pela Patuá. E agora que Pandora abriu a caixa, não há como voltar atrás. Melhor assumir que o hábito pode virar ofício, temperado de suor, lágrimas e sotaque chiado. 33


Lua Vermelha

Mayara La-Rocque

Madrugada, um fio de sangue me acordou entre as pernas, um alarme certeiro de engrenagem uterina me alavancando os olhos para além da janela, como se adivinhasse a exata hora em que uma neblina entre-azul entre-cobriria os prédios de uma forma tão densamente bonita que eu não poderia deixar de ver. Eu vi. Cheguei até a degustar a umidade na saliva, temperatura de rua calada, gosto acre-doce na garganta. Lembrou-me quando adolescente eu costumava crescer palavra com as horas antes da manhã, me apetecia tudo o que nascia nas vésperas do antes de tudo, antes que raiasse o dia e com ele crescessem os alaridos, berreiros, vozearias aleijadas de ouvidos que nem sequer estremecem ao silêncio do entre-azul que só ascende quando, em alva, a neblina beira as luzes hidroelétricas da urbe. Desde ali, eu já sabia, noticiário Google algum me contou: era tempo de arco crescente ocre amarelado sob o signo de câncer – ponta de agulha-caranguejo no céu. De pronto, inundei-me n’água-lama do crustáceo, tanto que cheguei até sonhar com a tal adolescente que fui, ela-eu estávamos mergulhadas em águas entre-azuis feitas da mesma neblina que antes contemplava, mas agora em sonho me subia por debaixo, me cobrindo desde a terra corpo acima, corpo adentro daquela que alguma vez no tempo era e ainda existe em mim. Afinal, isso a que insistem chamar de tempo parece mais cinema cuja tela ora retorna, ora engata, ora


recria ou revela o que por trás da lente não se via. Tão logo entre água entre tempo entre fios de sangue o azul todo se cobriu. Afoguei-me em meu corpo nu, era sonho, quando o primeiro sangue jorrou de mim. Atravessei um rio transparente, metade menina – caroço de peito doído, metade mulher, corpo estriado de raivas, vermelhos e medos – e do outro lado da margem me deram uma fantasia que não coube no meu novo corpo. Nem ao menos me disseram que o novo adereço que eu vestia se chamava mulher. Acordei. Foi só um sonho. Dizem, Reis e Luas tomam conta e giram nossas vidas como máscaras rodopiantes em cortejos, zumbaias, cordões, frevos, sambas, capoeiras, bumba meu boi, marujadas, marabaixos, carimbós, batuques, cuíras brincantes e todos os astros zombam de nossas vidas – des-encontros em folia de carnaval. É por isso que aqui de dentro do sangue se formam humores das mais variadas cores que refletem água e fogo em um só tempo-termômetro. Já ouvi dizer que por detrás de toda máscara reina um buraco negro gigantesco e que somente teatro é espaço-onde se contempla o vazio Madrugada conta um conto: um anjo rapta seres humanos e, dentre eles, uma poeta. Ele os leva para visitar o Pades, paraíso morada das estrelas pétalas de Lótus ondas de marés e de confins da boca infinita do Oceano-Universo. Era néctar o que viram, eram Eras o repouso dos olhos no colo da Criação. Há quem acredite que é de Lá que nasce todo som, um eco de silêncio sem fim. E a história não acaba aí, há sempre o retorno. Na volta para a Terra, muitos enlouqueceram, bravejaram insultos, adormeceram incrédulos diante do que presenciaram, mas nunca puderam explicar. Foi então que a artesã-poeta, durante o caminho, extraiu e guardou,

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como em caixa de Pandora, algumas cifras, alguns versos, retalhos e peles de tulipas, penas, revoadas, harpas e felinos. Por dias e noites em vigília, ela se pôs a escrever incontáveis luas e voos sobre os dedos, melodias estalavam criando entidades, Mahadevis, Shaktis, Sarawatis, vinas, sitares, cítaras, alaúdes, bandolins. Ela nunca conseguia findar a narrativa, era fio abarrotando fio, tecelagem ininterrupta de Penélope, pontas e crochês de Arpilleras, telas de Hilda, orquestras de Lília que não cansam de acender o luar. A escritora lembrou que outrora Lília lhe emprestou um livro – L’eau et les rêves – onde um poeta escreveu: “On rêve avant de contempler”. — Sim, Bachelard. Antes, o sonho: contemplamos! — consentiu a poeta, e dentro de seu palco-relicário-biblioteca, acrescentou: — Estou certa de que, para nós, mulheres, o vazio é buraco vermelho sem fim Madrugada líquido em brasa, reluzo em cinzas: uma ave-fábula em combustão. Mayara La-Rocque é graduada em Letras com habilitação em língua francesa pela Universidade Federal do Pará, escritora, educadora e artista. Tem trabalhos independentes na área da poética, artes plásticas, performance e audiovisual. Em 2016, produziu o livro artesanal e a instalação “Atravessa a tua viagem” para a exposição Alfabeto de ficções, da Associação Fotoativa. Em 2017, publicou o livro “Uma luminária pensa no céu”, pela Edições do Escriba. Em 2018, participou do curta-metragem “Literatura por Elas”, produzido pela Fundação Cultural do Pará. Em 2019, participou da exposição “Tenho medo de perder esse silêncio: cinco vozes femininas” na Casa das Artes, promovida pela Fundação Cultural do Pará. Em 2020, foi contemplada pelo Prêmio Rede Virtual de Arte e Cultura da Fundação Cultural do Pará, com o projeto “Caminhos Poéticos da Escrita”. Atualmente, desenvolve o curso “Escritas de si” e outros laboratórios voltados para experimentação e criação com a palavra. 36


Idas e vindas Karimme Silva

Sabe quando a gente tinha tempo e vontade? E quando a gente tinha escolha? Naqueles dias em que ir e vir não eram apenas verbos nem os direitos básicos de todos os cidadãos, mas as opções que tínhamos. “Hoje não, deixa pra amanhã”, era fácil pensar no amanhã, ainda que a incerteza sempre permeasse a existência. Mas havia amenidades. Havia. Uma vez me disseram para não pensar no amanhã. Tinha meus doze ou treze anos, muitos quilos a mais e a menstruação recente. De “criança gordinha” virei a pré-adolescente com curvas. Ali era um momento de deixar a infância e abraçar juventudes, enquanto eu brincava de bola na rua de casa, teria que usar absorventes. Não entendia direito essa coisa do ir e vir do sangue dentro de mim, sabia que existia, já tinha lido sobre, mas não entendia o caminho. Estava ali, consumindo processos novos e me diziam “não pensa no amanhã, pensa no que existe agora, aproveita o hoje”. Nunca fui imediatista, queria não ser obrigada a pensar hoje no amanhã. Deixei pra ontem o que hoje já não caberia mais em certeza alguma: a ideia do futuro. Olhei de novo para o hoje. Restavam alguns dias para o que seria o início do caos. Era uma tarde de segunda-feira, caía uma chuva fina. Desci do ônibus na Almirante Barroso e andei algumas ruas até a banca de revistas. Comprei uma apostila que há tempos queria, que iria ajudar com alguns estudos. Sempre fui melhor escrevendo, lendo e grifando, algo que no papel funcio-


nava mais e melhor que na tela de computador. Mais cedo, tirei alguns pesos mentais na terapia. Precisava rechear as ideias de coisas mais palpáveis e sensatas, precisava jogar a meu favor. Era uma semana em que havia me aborrecido e chorado muito. Estava sensível e triste. A tal da TPM é um caminho sem volta. Mas ela volta, todo mês. Naquele mês de março também. Eu mal sabia que, mais tarde, ao descer do outro ônibus de volta em casa, os dias já não seriam mais os mesmos. Cheguei com pressa em casa, debaixo da chuva que havia aumentado. Senti aquele sumo quente e incômodo pouco antes de descer do ônibus; lá estava o caminho do sangue, que já havia ido e voltado outras tantas vezes. Depois do banho e do absorvente, a tv mostrava o que já se imaginava: a doença chegou no Brasil, no Pará, em Belém, nos caminhos das ruas e muitos corpos. Nós não poderíamos mais ir e vir, naquele momento fecharam-se os caminhos. Caminhos fechados, corpos abertos. E uma grande interrogação. Os prazos seriam mudados, compromissos desmarcados, mudanças de percursos, a apostila seria condensada, não haveria mais estudos, voltas de ônibus, terapias presenciais ou caminhadas pelas ruas de Belém. Nem no dia posterior, uma terça, menos ainda nos outros dias. O sangue tecia seu trajeto mensal. Daquele mês em diante, não teceríamos mais os nossos próprios trajetos. Roseany Karimme Silva Fonseca (Karimme Silva) é paraense, mestra em Artes pela Universidade Federal do Pará, artista-pesquisadora de processos criativos, atriz-cantante, intérprete no projeto musical MANTO, escritora e artesã de cena, palavra e som. E-mail: rose.karimme@gmail.com

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De um voo ao outro Camila Mendes

Encontrei a destreza de voar na felicidade Me remontar em outros espaços e sentir a brisa boa entrar nos buracos que eu escondia Me tornar em rocha foi necessário Desgastar até o último neurônio para moldar certezas; Me desmontar e montar só pelo prazer de saltar Deixar alguns segundos de incerteza me dominar, o não controle de existir Até lançar-me no braço de vento que surgir Ir de encontro ao que meu coração achar que devo Apenas desfrutar a paisagem crua, uma mudança de direção repentina Mas em todas elas estou aonde deveria ir Sem nunca encontrar rocha Apenas o horizonte infinito entre o céu e eu. Camila Mendes é poeta e multiartista, estudante de Turismo na Universidade Federal do Pará. Já participou de alguns espetáculos artísticos na Fundação Curro Velho envolvendo teatro, dança e canto, atualmente tem se engajado na literatura, onde escreve poemas cotidianos em suas redes sociais. Participou da Oficina de Autopublicação para escritoras (2020) que reuniu mulheres e seus escritos na zine chamada Segredo (2020), onde foi fundado o Clube de Escritoras Paraenses. Hoje atua como uma das coordenadoras do Clube. Também participa da coletânea Trama das Águas, projeto que reúne textos de 57 mulheres paraenses, publicado em 2021 pela Monomito Editorial. instagram.com/eguacamila. twitter.com/ alimacauge. medium.com/@eguacamila


Parto

Amanda Monteiro

foram sete, eu contei. na primeira respiração funda, meu irmão ainda falava ao telefone resolvendo trâmites de funeral. lá pela terceira, já mais funda, percebeu que precisaria desligar. eu já estava à beira da maca e tive certeza de que também da morte. na quinta, ele puxou um pai nosso e eu acompanhei, com os olhos pingando no lençol. seja feita a vossa vontade. a oitava não existiu. o que me restava de ar se foi num grito, num choro de criança guardado desde que entendi que o câncer levaria minha mãe. por quase todas as noites dividimos a cama, ela, eu e a morte, essa última sempre no meio de nós, de tudo que nos permeava, de cada pensamento antes de meus atos, medo de perder a única que me amaria, apesar de quem amo. e sabia que um dia acordaria sozinha, intutelada, corpo no mundo, vulnerável aos cortes da vida, dos outros. acordei sem ela e sem ter o que fazer quando foi transferida para a ala do hospital pra onde vão os que não têm mais jeito, a ala das despedidas, que poderia ser um nome carnavalesco, mas era só choro. o róseo-salmão da parede acalentava, as flores coloridas de plástico amenizavam, os corredores cheios de quadros psicologicamente pensados acolhiam, mas não o suficiente pra conter meu grito de quase vinte anos. os enfermeiros correram pra pedir silêncio, não pra olhá-la, já sabiam. bruno foi o único enfermeiro que não viu uma histérica ali, “eu sinto muito, moça”. também sinto muito, bruno, ali, eu era carne viva. trouxeram o aparelho pra checar os sinais vitais. nada. deveriam ter checado os meus, senti a desfalecência, ali também morri. antes de partir, ela me pariu de novo. na verdade, escolhi nascer, o que torna o parto mais difícil. gritei, como todos os bebês,


reclamando do gelado do aço inoxidável na bunda enquanto são pesados. queria voltar para a barriga morna, segura e constantemente alimentada pelo próprio umbigo, sem estar à vista de outros. a fonte secou e eu precisaria ser expelida senão morreria junto. para além do desespero, choro é sinal de que o bebê está vivo, mesmo nascendo com o cordão umbilical enrolado no pescoço, quase morto. nasci roxa, rósea, lilás, vermelha, azul e prateada, cheia de glitter: a paleta de cores de sombras da minha mãe. nasci a cara dela. meu enxoval foi de cetim, linho, estampas elegantes em vestidos costurados artesanalmente por costureira profissional, a velha era chique. nasci já com as unhas alongadas e pintadas, sem cutícula, furos nas orelhas e penduricalhos enormes, dourados, folheados a ouro. herdei a feminilidade que foi presenteada a ela por gerações de mulheres que pouco nadavam nas praias dos interiores que nasceram, mas beberam a água salgada do mar de violências de seus pais, avôs, maridos, homens; afogadas, segurando a âncora gigante de seus pescadores. herdei e percebi minha grandeza por nada disso caber no meu corpo: nem penduricalhos, nem vestidos, nem homens. se nos encontrássemos hoje, ela não me reconheceria, não sou mais a boneca que mimou, vestiu, brincou. tenho minhas cores, namoradas e uso tecidos baratos. mas de umas coisas desconfio que ela se orgulharia: mãe, eu só tenho quatro anos desde aquele dia e já sei andar sozinha, falar, cozinhar e, acredite: escrever.

Amanda Monteiro é uma mulher lésbica paraense. Cozinheira e fotógrafa por ofício, tem como profissão mais antiga a de escritora; desde os sete, enchendo folhas soltas. A primeira vez que decidiu dividir um texto publicamente resultou em ter sido uma das selecionadas do edital Trama das Águas, da Monomito Editorial, com um texto em que fala de alguns dos múltiplos cantos da sua vivência lésbica na Amazônia, escancarando pela primeira vez quem é. Outro projeto em que teve um texto selecionado foi um que reunirá escritoras lésbicas e bissexuais numa coletânea organizada pela Quintal Edições. Resiste como pode, escreve quando não dá conta. 41


Aqueles que não sabem quem são Deyse Abreu

A cada mudança de tempo é preciso procurar quem és. Ventos, chuva, folhagens barulhando. É tempo de migrar, o vento forte impulsiona o voo, liberdade para uns, perigo para outros, os que não aguentam ficam pelo céu. Um pequeno vermelhinho, filhote de outros vermelhos fortes, devia enfrentar a sua primeira longa viagem. Mas, uma insegurança tocava o peito penoso e uma imensidão azul foi passada pelos olhos do pequenino. — Não tenha medo! Fique próximo da revoada que ficará tudo bem. Lembre-se de quem és. Esse era o problema, não sabia quem era ou a necessidade de sair do lar. Não sabia da força que tinha ou se havia algo ali além de dúvidas e incertezas. Um antigo, que já estava cansado das jornadas, chamoulhe aos cantos. Cantou e cantou. O vozear fora ouvido de longe. O pequeno, impressionado com a força do canto, tentou acompanhar e logo mais todos os outros ali vozearam juntos. Em meio aos sons das cantigas, do barulho do vento nas folhagens, o antigo abriu asas e mostrou ao pequenino as marcas do tempo como mapas riscados nas penas. Ali se encontravam o passado e o futuro. E esbravejou: — Pequeno, eu não tenho certeza se suporto a jornada novamente. Sou tão antigo que não conto mais os nossos fins do mundo, pois a memória não deixa. A cada tempo novo


de mudança, tudo morre e precisamos voar para sobreviver. Mas se você desistir antes de começar a mudança já estaremos perdidos, morremos todos no nosso último fim. Aquele pequeno ficou assustado com a força do antigo e da profecia. Abriu asas e vozeou o mais alto que pôde, soube que no peito existia todas as respostas e que bastava olhar para o antigo para ver o reflexo de quem era. Ele, o antigo e todos os outros são o Renascimento e a Esperança de mudança.

Deyse Abreu é nascida em Capanema-Pa, mulher interiorana e formada em Licenciatura plena em Letras – Língua portuguesa, pela Universidade Federal do Pará – Campus Capanema. Atualmente é pós-graduanda em Linguagens e Saberes da Amazônia (PPLSA-UFPA) e Análise das Teorias de Gênero e Feminismos na América Latina (IFCH-UFPA). Atua como professora de Literatura, artes e produção textual para o Ensino Médio, assim como é voluntária em cursinhos populares de preparação para o Enem. Escritora com publicações em redes sociais e blogger, em 2020 participou do curso “Autopublicação para escritoras” em Belém e publicou a zine independente “Março”, assim como participou da publicação da zine “Segredo”, em conjunto com as demais escritoras do curso. Também teve textos selecionados e publicados no Jornal Literário Jamburana nas edições V e VI em 2020, em 2021 foi selecionada para a publicação no projeto “Mana escreve” do coletivo Banzeiro (Manaus). É mediadora oficial do clube de leitura “Leia Mulheres – Capanema” desde 2018 e participa dos clubes de leitura “Ecofeminismo” e “Leitoras Cabanas” (2020), além de ser social mídia das redes sociais do Leia Mulheres – Capanema e Bragança, e da Nova Revista Amazônica (PPLSA-UFPA). É idealizadora e coordenadora do Coletivo Caboca, coletivo de mulheres que desenvolve projetos nas áreas dos feminismos e bem-viver desde 2018. É uma das coordenadoras do projeto Clube das Escritoras Paraenses. https://www.instagram.com/abreudeyse/?hl=pt-br https://www.facebook.com/deyse.abreu.9 https://margaridaapoemar.blogspot.com/ 43


Apreciação infantil Cleni Guimarães

É preciso ser dotado de muita percepção e sensibilidade, além de uma comunicação oral aprimorada, coisa que posso deduzir de uma garotinha que, em visita à minha casa, sentada no chão, ignorou os brinquedos próprios para sua idade, coloridos e sonoros, e teve sua atenção capturada por um quadro na parede, pintado a óleo, em tons pastéis, retratando uma cena comum de pescadores em sua labuta diária, alguns atirando a rede ao mar, outros com caniço em punho, seguindo pela praia, como a procurar um bom local para pescaria. Pelas cores utilizadas pelo artista, via-se que era um dia nublado, os tons eram tão suaves que era necessário ficar parado alguns minutos para poder entender e contemplar aquela obra. — Eu queria estar ali — disse a garotinha com o dedo em riste, apontando a gravura do quadro. O que me surpreendeu é que tantas pessoas, professores, vendedores, alunos, ex-alunos, jovens e idosos já estiveram em minha pequena sala, sentados em poltronas confortáveis, e jamais fizeram qualquer comentário, nem sequer ergueram os olhos para aquela pintura. E o quadro não passa despercebido, mede 1,10 x 0,60m numa parede em que somente ele está posicionado. E aquela garotinha, de pouco mais de dois anos, expressou espontaneamente o desejo de estar naquele lugar imaginado pelo artista.


Que sirva de exemplo para muitos adultos: vivem tão absorvidos em seus problemas que não lhes sobra tempo para sonhar e apreciar a arte.

A cor do sentimento Naquela manhã de sexta-feira, a professora que atuava na turma de 4ª série de uma escola pública teve que se ausentar por motivo de doença. De imediato, a direção solicitou a professora de Educação Física para substituí-la durante aquele dia. Após a dinâmica apresentada na sala de aula, e como o dia posterior seria véspera do Dia das Mães, a professora substituta distribuiu folhas de papel sem pauta, sugerindo aos alunos que desenhassem um coração e pintassem com a cor de sua preferência, pois seria ofertado às suas respectivas mães. Como os trabalhos de desenhos e pinturas são bem aceitos por alunos de todas as séries, no decorrer da aula todos se prontificaram a elaborar corações. No final, surgiram corações de todo tamanho e cor, alguns coloridos até demais, entretanto, havia entre eles um coração pintado completamente de marrom. A professora ficou intrigada, sem dúvida marrom também é cor, ainda que deprimente e sem atrativo. Chamou o autor da “façanha”, Daniel, que demonstrava sempre inquietude, e perguntou: — Daniel, por que você pintou desta cor o coração para sua mãe? Tamanha foi a surpresa quando ele respondeu sem ao menos pestanejar: — Se sua mãe tivesse lhe abandonado, qual seria a cor do coração dela? 45


Diante daquela resposta, a professora emudeceu, ficando horas pensativa, e constatou que por meio das cores também se expressam profundos sentimentos.

Cleni Guimarães nasceu em 15 de março de 1963, em Nova Timboteua, porém 15 de maio é a data oficializada de seu nascimento. É professora de Educação Física aposentada. Gosta de escrever roteiros e adaptações de textos literários ou bíblicos para peça teatral; Algumas de suas poesias constam em anuários de poesias paraenses. Obras publicadas: A lenda da Maria Cachorro (2012); O sapo que não lavava o pé (2014) e Foi assim que me contaram (2016). Titular da cadeira número 15 na Academia Capanemense de Letras e Artes (ACLA).

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Depois da chuva

Lucia Helena Alfaia de Barros A chuva corre impetuosa nos telhados, faz barulho e apressa o banho dos pombos que passeiam pelos muros. Forte faz desaguar meus pensamentos, fraca, ajuda fluir o tempo da criatividade, cadenciando o movimento das palavras que saltam para o papel e brotam a leveza da escrita. O som da chuva faz revoada em minhas lembranças, retorna ao meu lugar de afetos coletivos, o quintal, com as histórias vividas e tecidas na infância. Imersa, a memória potencializa a escrita, movimento apreciador do criar brincante, desígnio da humanidade escondida sobre a janela molhada no meio da tarde, com sentidos atentos aos cheiros cotidianos exalados e aos sujeitos multicores que trafegam molhados no asfalto escuro das ruas. Maracanãs assanhados balançam os galhos da mangueira anciã, curvada, quase descendo da calçada e conversam coletivamente, competindo com o som da chuva; famintos bicam o fruto maduro, jogam o caroço nas calçadas e gargalham uníssonos satisfeitos com o abundante banquete. De voo altivo sabem que podem chegar cada vez mais alto e permitem a metáfora com os sonhos humanos, que almejam longo alcance para a reverberação de inspirações e palavras. A chuva percorre os devaneios e comunica a potência sublime do líquido e seus diversos caminhos, deixa o exercício do recomeço, da revoada certeira, fortalecida pelo passado e ávida pelo presente.


Depois da chuva a memória tem cheiros: igarapés gelados, canoas deslizantes, mingau de milho branco e café com beiju; depois da chuva os pensamentos seguem pelos caminhos do umbigo enterrado no quintal materno e sorriem para as conquistas e merecimentos advindos das heranças sagradas e educativas da convivência cotidiana. Após a chuva há calma, o despir livre do vestuário encharcado, liberto pelo sorrir e pelo voar. Há também a alegria contagiante dos obstáculos contornados e a certeza de seguir sempre em frente.

Lucia é professora alfabetizadora dos anos iniciais do Ensino Fundamental em Belém, integrante do Grupo Acalanto, um dos rizomas do Movimento de Contadores de Histórias da Amazônia (MOCOHAM) e estudante do Programa de Pós-Graduação em Diversidade Sociocultural (PPGDS) do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG).

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Mulher Alada Iolete Maia

Voar não é mais uma possibilidade, é minha realidade. Existir é abrir os braços e voar, não sem destino, mas com propósito, porque eu insisto em acreditar que “eu posso” não é apenas uma frase de efeito que algum coach otimizou e que, por isso, ganhou repercussão. Ainda vejo beleza na vida, o medo é uma realidade, mas já não pode impedir meus voos e revoos, porque insistir não é fraqueza. Da janela da minha casa olho a rua, observo, escuto os sons, vejo cores, brilho e detalhes. Sim, detalhes que passam despercebidos para a maioria das pessoas, que só veem com olhos comuns. É dessas realidades bem específicas que se criam estórias e histórias, é observando a vida que o escritor contempla e organiza sua arte, é a existência que dá asas à imaginação do artista. Assim, observando, crio estórias que se tornam histórias reais quando escrevo, porque também há realidade naquilo que se inventa. Parada, olhando a rua, vi flores e vi borboletas a voar, fazia tempo que não via borboletas e tenho uma paixão por elas, tamanha que tatuei no braço esquerdo, do lado do coração, porque sempre digo que uma mulher que voa merece ter asas. As borboletas me remetem ao meu próprio casulo e processo de metamorfose, me trazem a memória do primeiro voo, quando timidamente peguei lápis e papel


e escrevi, não como escrevia quando criança ou adolescente, mas a primeira vez que escrevi com a consciência de que escrevendo posso criar, posso transformar, posso emocionar e fazer as borboletas voarem. Enquanto escrevo, eu mesma voo, pois a escrita me dá asas, me fez mulher alada. Sentada olhando as borboletas voei com elas enquanto escrevia, as letras, as palavras soltas e voando no papel, performáticas, ganhando forma, sentido e coerência, palavras que pousaram com o toque das minhas mãos e que podem voar a qualquer momento pra qualquer lugar e pousar em outras mãos. Sobre voar aprendi que se não tenho asas eu crio e invento enquanto escrevo, porque fingir também é viver a realidade. Escrever é como o processo de metamorfose, irreversível, depois que você começa, passa a ser como respirar, imprescindível para a vida!

Iolete Maia é historiadora e professora de História, feminista, mulher negra e mãe de quatro filhos adultos, três mulheres e um rapaz. Desenvolveu ansiedade depois de sair de um relacionamento extremamente abusivo e começou a escrever pra fugir da realidade e foi aí que descobriu que sua realidade é escrever. É escritora, sim, e escreve porque escrever a mantém viva.

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O sonho de voar

Luana Lima de Freitas Bato os pés e balanço as pernas toda vez que me sento em qualquer lugar. Não estou ensaiando para tocar bateria, tampouco é ansiedade. A verdade é que também pulo, dou saltos. Faço isso quando penso que não há ninguém para me ver. O grande problema é: sempre existe alguém para testemunhar. Já tentei parar diversas vezes, e por isso outro dia pensei não pode ser vício, porque se fosse vício eu já teria largado. Sim, teria parado, como nos relatos das pessoas que conseguem largar drogas e hábitos prejudiciais. Um ser na minha imaginação toma parte no meu monólogo, esse interlocutor sou eu mesma. Mas vou tratá-lo aqui na terceira pessoa, me facilita ver as ideias. Então esse alguém diz: “Pessoas viciadas fazem tratamentos, têm ajuda, acompanhamento e frequentemente possuem uma forte motivação para parar. Você tem?” E aí eu suspiro e respondo: “Tenho ajuda sim e a minha motivação é que meus joelhos doem, meus ligamentos estão sendo rompidos dia a dia”, uma pausa e eu continuo, “o pior é que não me dá nenhum tipo de prazer”. O alguém diz: “Você já parou para pensar que talvez o seu problema não seja o que você está pensando? Sabe, esse vício de pular, é provável que você esteja tratando do sintoma e não da causa em si”. Sei o que foi dito, é um período composto, mas eu vejo um jato de luz dourada direto na minha consciência.


Dar saltos pelos ares seria sintoma do quê? Alguém que deseja virar um pássaro, acho, ou um canguru, mas esse último que me desculpe, não tenho afinidade com ele. Os pássaros voam, é como se manifestam neste mundo, isso parece muito simbólico. Uma revoada com muitos pássaros é o tipo de acontecimento que me inquieta. Não é a inquietação de ansiedade, é de anseio. Esse é o sonho desconhecido, agora posso reescrever a passagem bíblica assim: conhecereis o teu sonho e ele te libertará! Entre o conhecer e o libertar está aí uma jornada. A natureza não nos deu asas, mas ela não nos impediu de conquistá-las. O que nos fará alcançar o sonho? Escolher o caminho que leva até ele, claro. É um caminho que pode ser árduo, e será vão se seguirmos por ele com a intenção de sermos servidos por nosso sonho. O sonho é uma ideia tão pura, tão livre, como um voo. Uma pessoa pode ter um sonho, entretanto ele jamais será seu escravo ou seu servo. Isso seria colocar uma ideia fixa no lugar do sonho e, cá entre nós, eles têm o mau hábito de se transformar em pesadelo. O meu pesadelo é a minha dor, por isso a minha meta hoje é ser fiel ao meu sonho e obter progresso nos meus voos. Luana Freitas nasceu em Ananindeua, reside e trabalha na cidade de Marituba. Começou escrevendo casos curiosos ocorridos em sua família. Com onze anos, entrou pela primeira vez em uma biblioteca e desde então teve vontade de ser escritora. Mesmo recebendo muito apoio das professoras, a ideia de ser escritora foi adiada e acabou se formando em engenharia ambiental pela Universidade do Estado do Pará (UEPA). Atualmente faz mestrado em biodiversidade neotropical, na Universidade Federal da Integração Latino Americana. Em 2019, participou da oficina de autopublicação de Monique Malcher, que deu origem ao Clube de Escritoras Paraenses e a partir de então dedica-se à produção de seus escritos. Quer continuar escrevendo, dando aulas, estudando, publicando e editando livros pelo resto da vida. facebook.com/Luana-Freitas-102560484979868 instagram.com/lua_f93/?hl=pt-br 52


O voo para liberdade

Marcela Beatriz Bomfim Cruz Disse a mim mesma que ontem Fui aquele pássaro azul que voou Sobre o céu, Solitário... E disse que voar é mais que um verbo, E buscar pela minha liberdade É mais do que suplicar Para encontrar o meu abrigo Dentro do meu próprio vazio Sem me perder pelo caminho. I have many seas to cross Como minhas incertezas perpassam por mim Buscando minha essência... Eu sempre quis dizer ao mar, A mim, Que minhas tentativas de voo foram válidas. I wanted to more than I am Sei que minhas asas Que batem Constante e Insistentemente, Foram feitas para tocar além das nuvens Além do meu sentir, O infinito Dentro de mim.


Marcela Beatriz Bomfim Cruz (@bomfimmartin) reside em Belém do Pará e é formanda em Secretariado Executivo Trilíngue pela UEPA. Artista e escritora, é autora do blog “Nota Sem Título” (https://notasemtitulo.blogspot. com/). Selecionada em diversos concursos nacionais, já publicou poemas e prosas poéticas em coletâneas como Porque Somos Mulheres e em revistas literárias como Poesia Agora e Ecos da Palavra. marcelabiatriz@gmail.com

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Mestre Nato arfando nos dias Monique Malcher

Toque no meu peito, coloque os dedos cheios aqui nessa parte em que guio sua mão estranha ao toque do que não é seu, sinta a respiração que extrapola qualquer torácica caixa. Entenda que a casca do caranguejo é areia movediça. Que as anatomias perdem os títulos. O peito já não é o peito, é a gosma de meus medos, e quem voa tem tantos que não cabem em tabelas de Excel e em contas primárias de vinte dedos humanos, nem todos os humanos têm os vinte. Tenho cinquenta, cem, quatrocentos e trinta e oito. Tudo em mim é pena de ser e de proteção. Por cima do oceano, por um minuto me sinto perdida na noite em que água sempre é espelho. Prazer em lhe conhecer desconhecida criança que esmago em meu peito. Sinta o arfar, não é preparo de voo, apenas, é o instante de toda a vida que não sabe sobre sentimento e ação em suas diferenças. Nem todo pássaro é captado pelas lentes com altivez. Escondo meus brilhos em meio ao barro, dizem que nesse oco não nasce a doença de chagas, mas sinto os furos nas minhas mãos. Tenho mãos diferentes das suas, repara. Dentro de minha caixa mora Mestre Nato do Guamá, com sua alfaiataria moderna, de um lugar que os olhos de quem acha o voo coisa de privilegiados não consegue alcançar. Sou a pupila de Mestre Nato, cortando os cabelos dos atores e transformando na plumagem de figurinos que sobrevoaram o tempo. Sou o chão sujo da rua, que Nato dormiu


perto do museu de arte moderna. Sou a água que lavou os pés de Nato. Sou tudo e nada ao mesmo tempo. Costurei pássaros na dimensão em que chamam de superação o que é trabalho de costura com cultura popular. Popular porque no peito dos pequenos pássaros navega o que é povo, e por isso maior, gigante. Sou apenas os olhos nas cabeças dos alfinetes. Sinta aqui, bem aqui, toca no meu peito pelo amor do seu deus podre. Vivo feito um beija-flor, a dois metros do chão, com várias fotografias que acabam no erregê, com pedaços do que é de dentro e do que é de fora. Sou o isolamento das vestes. Sou a nuvem que mostrou Nato ao mundo que não o quis ver, mas precisa dele. Ninguém sabe que precisa da liberdade. Uma menina de cabelos curtos passeia numa bicicleta imaginária, ouve os pássaros cantando, não sabe que eles estão gritando para que o mundo os deixe em paz, o segredo da liberdade é uma abstração. Só há liberdade no que se move com amor, e nem se sabe nada sobre o amor, ele já foi ataque um dia. O pássaro sabe que na labuta para si, nesse corpo que se cansa do voo com objetivo repetido, há mais do que liberdade, há esse arfar. No peito de cada um de nós, plumagem de arranque. No peito de cada um de nós, o medo das aproximações do que é humano e morreu pela ganância. Cecília Meireles me disse essa tarde: escolha o seu sonho. Me lembrou que o hino nacional diz de liberdades pela pátria. Que se foda a pátria! Desculpa, Cecília, pelo palavrão que encaixo aqui, mas só ele se encaixa na raiva de meu bico. Hinos que falam de asas de uma Babel que achamos ser livre. E Mestre Nato descansa sem asas, aqui, no meu peito. Sentiu?

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Monique Malcher é escritora e artista plástica nascida em Santarém (1988), interior do Pará, mas viveu grande parte da vida em Belém. Publicou Flor de Gume pela Editora Jandaíra, com edição de Jarid Arraes, e as zines Trinstona (2019), E a gente nunca mais se viu (2019), Mas nem peixe? (2020), Aquenda (2020) e Zine Segredo (2021), essa como editora. É integrante do Clube de Escrita para Mulheres e também uma das coordenadoras do Clube de Escritoras Paraenses. É mestre em antropologia (UFPA) e doutoranda interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC), pesquisando literatura e quadrinhos produzidos por mulheres. Tem contos publicados na Revista Desvario, Poça, Circular Campina Cidade Velha, Anuário Filipa Edições e Ruído Manifesto. Realizou a curadoria do projeto Trama das Águas, publicado pela Monomito Editorial, e tem contos publicados nas coletâneas Parem as máquinas (Selo Off Flip), Fora dos centros: o sertão é o mundo (Editora Reformatório) e Abrindo a boca, mostrando línguas (Selo editorial paraLeLo13S). É vencedora do Prêmio Jabuti 2021 na categoria conto. instagram.com/moniquemalcher/ facebook.com/monique.malcher.1 tinyletter.com/moniquemalcher 57


Plano de (eu) voo

Valdete Gomes

Quando brinco de estar em qualquer lugar, qualquer tempo Minha vontade é sempre de voar na imensidão do céu De ver o que os desenhos de nuvens vislumbram em nós! Quando pouso em mim o céu é interior! Compreendo o que me torna maior, O que me permite asas está na minha história! Foi construído com palavras, foi contado e ensinado! Fecho os olhos, apertados, sinto o gosto da flutuação, Coração acelerado no compasso do tempo-vida, Onde se nasce hoje e hoje ainda se encontra perdida! Quando penso que já estou voando, vejo que alguém vem vindo Na direção que não há caminho, em um tempo que não segura na mão! Vejo-me menina procurando a mim em livros e papéis Certifico-me! Tenho medo de cair, voos ao passado Carregam pesos, penduricalhos esquecidos, Coisas-palavras que ainda não foram definidas. Um sentimento de pertencimento que quase chega a ser amormorada! Tem cheiro, gosto e aspecto de coisa velha amada! Coisa velha querida e escrita, poesias que me diz: _ Siga! Sinto visceralmente que posso estar em qualquer parte, Que a liberdade é um passo que se dá sozinha na direção de dentro, Que a poesia sempre me reparte em antes e depois de escrita. Ensinei minha criança sobre a pátria pequena Que é a página em branco, a poesia, a vida e o poema! Quando brinco de estar em qualquer lugar, qualquer tempo, Brinco de poesia!


Valdete é professora, escritora, poeta, leonina, mediadora do grupo de leitura leia Mulheres de Capanema, um processo. É estudante de Letras – Espanhol (UFPA), viajante, membro da Coletiva Caboca, feminista negra e é revolução.

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Andorinha-de-pescoço-vermelho Alycia Miranda

Quis dizer a Alfredo o horror que vivi na madrugada de sábado passado. Enquanto ele se engasgava nas próprias desventuras, vaguei sozinha por ruas belenenses, o medo não se acentuava somente ao fato de pertencer ao grupo feminino, mas ao escândalo de ser cuspida dos cuidados de Deus. Também quis te ligar, mamãe, para avisá-la que, não se engane, aqui também já há cadáveres; quem sabe essa contínua reversão de morte-vida seja apenas um dos efeitos dos remédios de que, ansiosamente, espero me livrar daqui a seis meses. Mamãe, assim que isso acontecer, levantarei voo para o seu colo: toda intencionada a lhe devolver sua pequena menina, aquela que ria e sorria e cantava e dançava e libertava todos os sentidos humanizados e animalizados. Te prometo tudo isso, mamãe. Porque não vejo a hora dessa maresia cessar e assim ver a grande cidade que construíste à minha espera, um local feito para amparar as minhas fragilidades e ainda mais: a conhecendo e a observando, afirmo também que vais romper a corrente de ar, ou de gravidade, entre o céu e a terra para, de uma vez por todas, os voos virarem passos e nado e naufrágios. Mãe, ainda não estou bem, como uma garota que evita a rua deserta, obrigo-me dia após dia a suportar um genuíno enjoo, uma náusea de gravidade clínica, espiritual, psicológica, pois enquanto eu apreciar a química alcoólica meu corpo automático se guiará em direção ao abismo. E, por favor, mamãe, acredite


em mim: eu bani a tirania. Rompi com o autoprazer de me autodestruir. Estou a melhorar a cada lembrança recuperada do meu passado. Afinal de contas, transgredir um espelho maculado é, sobretudo, acompanhar o pretérito. Digo para a sua melhor compreensão, mãe: não basta não temer; a liberdade está na vivência contínua e regular da memória, pois sem essa, minha amada, deixo de ser menina, de ser moça, e sou largada, nem viciada, nem curada: abandonada.

Alycia Miranda é uma jovem negra, militante do Movimento Feminista e do Movimento Estudantil, tem 18 anos de idade, trabalha como professora de reforço e auxiliar de dança, almeja cursar Direito, e acredita na literatura como um ato de resistência ao tempo e às opressões, que por ele se perpetuam.

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Filha de rio

Erika de Aquino

No princípio era o verbo. O espírito da criação habitava as águas, nelas estavam a vida. Todas nutriam seu saber original. Foram iniciadas no mundo dentro do líquido amniótico, águas acolhedoras, atemporais. A maré encheu, a maré vazou. Revoluções aconteceram. Corpos aprisionados, corpos cerceados, corpos abandonados. Veio a separação do cordão primordial. Corpos inertes eram levados pelas águas, mas não se nutriam mais do verbo da criação. Tantos entes submersos, tantas escritas suplantadas. Ofélias enganadas. Silêncio, escute as águas. Há abundância de palavras em inação. A maré encheu, a maré vazou. Revoluções aconteceram. Corpos questionando, corpos se libertando, corpos acordando. No fundo, muito fundo, um corpo se abisma entregue às sombras aquáticas. Vozes simultâneas são ouvidas e sentidas. Batizada perante o rio, criada em água doce. Quantas mulheres viu sofrendo e chorando? Quantas angústias a afogaram? A criança interior tenta acordá-la e nada em seu líquido de vida, dança e canta uma canção de despertar. Breve estímulo, a canção a puxa, mas o corpo pesa entregue ao medo de emergir. Devaneios, alucinações, me deixe tocar o fundo, onde o abismo guarda todos os segredos… A criança não desiste, agita-se e grita com toda a força que consegue para esbravejar. O corpo inerte, abre os olhos


repentinamente e se contorce sob a pressão das águas, braços e pernas se debatem e depois se alinham. Ela nada, abrindo caminho com as mãos, lembrando e venerando as lágrimas de todas as mulheres que a formaram. Desmaia… mas despertada para a vida, o corpo flutua para a terra. Ela acorda na margem, a marola tocando seu rosto. Levanta o dorso lentamente, vestida de folhas de mururés acaricia a terra, volta a abaixar o corpo para senti -la em todos os poros, rola e se cobre de abundância, crava pés e mãos no solo que irá receber sua semente interior. Momentos de terror e beleza a tomam. Apesar de líquida, sempre teve dificuldade em se nutrir. Planta agora a sua semente para romper em criação, criar raízes, dar flores, frutos e espalhar o pólen esvoaçante. Uma borboleta amarela pousa em seu cabelo. É chegada a hora.

Erika de Aquino é professora de Literatura atuando no Ensino Básico em comunidades ribeirinhas do Baixo Tocantins. Ribeirinha-cosmopolita, perguntadeira de coisas e contadeira de histórias, sonhadora que não dorme no ponto. erika_aquino@id.uff.br.

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Através do espelho Genany Aikawa

Através do espelho eu te vejo, assim como foi esquecida há muito tempo uma criança despida Uma parte de mim te carrega e necessita te libertar Um habitante estranho do próprio corpo e do próprio ser Eu sou feita de água e terra, o ar passeia por toda a minha estrutura e o fogo é a minha Vontade e a máquina que me move Quem sou eu senão um Deus adormecido em uma carne podre: dissolver e coagular, quanto mais se dissolve a matéria, ela se recompõe com seus elementos “purificados” Mudar a estrutura do pensamento A espada cai diante de mim e me parte ao meio: uma ideia contra outra ideia O espelho é a minha espada, e o espaço entre nós, o Eu adulta e o Eu criança, ambas choram no umbral do abismo O que nos une é a esperança de Amor A morte ceifa o que há de putrefato para o joio do trigo crescer, o sol raia, e a criança coroada senta em seu trono após a batalha. Genany Aikawa tem 25 anos e é nascida em Monte Alegre. Formou-se em Licenciatura em História e é taróloga e ocultista nas horas vagas. Escreve desde criança por hobbie, mas só se entendeu como escritora nos últimos dois anos. Gosta de pensar na sua escrita como uma escrita afetiva e os pilares que a sustentam são: o seu corpo enquanto mulher amazônida que a auxilia e a ensina sobre a sua ancestralidade, a magia como ferramenta de autoconhecimento, seu ofício como historiadora e Thelema.


Cozinha

Natália Cardoso Mesa cumprida muchos pelos cantos... O silêncio é devastador, só se escuta um piar e o grito sufocado e solitário da Rosa. O vento nas folhas toca faz ressoar o som da maré em seu constante vai e vem ora vive ora morre. Sobre o jirau as panelas brilham areadas e ansiosas... pratos, copos, vasilhas de tomar açaí marcadas com esmalte vermelho as iniciais: DC. Sem mais serventia, a peneira e o alguidá empoeiram. No teto, as teias de aranha Indiciam o tamanho da solidão. Nas paredes de madeira, no fundo faltam ripas mas quem se importa!? Por entre os vãos as cutaquinhas Entram, e saem quando conseguem,


pois, a caranguejeira está sempre faminta. Na parede contrária uma fotografia em moldura de madeira escura uma família completa e feliz... feliz? não posso dizer, mas ali estava completa e ao estar completa feliz era.

¿!Hola!? Natália Cardoso, de Cametá (PA), atua como professora de língua portuguesa e espanhola na rede municipal de ensino. Nunca se achou capaz de escrever e ser lida, sempre pensou e até teve vergonha da sua forma de escrever e retratar as coisas de sua região (acha que isso tem a ver com o inconsciente, muitos anos de inculcação do pensamento etnocêntrico), hoje se sente melhor com sua escrita, consegue se colocar como uma privilegiada por viver e ser Amazônia. Em suma, é alguém que busca não a construção de um legado escrito para deixar, mas alguém que escrevendo ensina a escrever e isso poderia ser seu “legado”: repassar a faculdade de escrever.

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Para a Sombra que fui Thais Sombra

“Uma planta não flore sem os nutrientes certos.” Penso que se pudesse falar algo para aquela pessoa magricela, frágil e pequena seria essa frase. Mas como ela poderia saber quais os nutrientes certos se o tempo todo lutava para sobreviver? A vida ainda é cruel com nossas crianças pretas. Geralmente quem nasce sensível assim do corpo e sentidos carrega desde cedo dentro de si o peso da vida e das partidas. E como doem as partidas, mesmo que sejam necessárias certas vezes. “Nem sempre a tristeza é azul, minha pequena criança.” Também gostaria de dizer isso a ela. Às vezes nos enganamos nas cores que as pessoas têm, achando que o vermelho é calor quando na verdade é puro sangue, sabe? Também não queria que o sangue fosse uma constante em nossas vidas, mas o mundo continua o mesmo que há 500 anos. Me permito agora fazer com que aquela pequenina durma em paz sabendo que o seu desejo de ser e viver está sendo cumprido como posso. Não somos perfeitas e nunca chegamos ou chegaremos a isso, entretanto respeito muito mais o olhar que me retorna do espelho do que antes, assim como respeito a pele que foi atravessada por lâminas, cortes e queimaduras porque ainda é o que resiste nos dias de nuvens carregadas de chuva. E eu sinto muito quando relembro que em alguns dias a única saída para lidar com a vida era fazer mal a si própria. Por que é tão mais fácil para as pessoas sensíveis se culpabilizar por tudo o que não se tem o menor controle do que se perdoar?


Entendo hoje que o perdão é processo contínuo e diário, mas que não significa fingir que o erro não ocorreu. Compreender o erro e de fato se arrepender é a chave da quebra dos ciclos viciosos e sem fim de autossabotagem. E focar em terra seca ao invés de chuva incessante é a sabotagem da planta que não aprendeu a florir. Por isso, não mais perco minhas águas à toa, sei que ainda posso ser tsunami mas só permito desaguar em quem me dá em troca oxigênio para respirar. Te peço desculpas, Sombra menor, pelo que você precisou passar para que hoje eu pudesse recolher nossos cacos do chão e nos recriar na imagem e semelhança de algo maior. Tô tentando, e lembrar de ti, do que te doía, é o que me faz não aceitar as paredes e janelas que nos prendem a esse quarto. Agora aprendi a pular a janela e vislumbrar a imensidão de mistérios que existe no meio desse mato. Finalmente ergui o arco e arqueei a flecha, quando eu atirar não tenho dúvidas de que iremos acertar. Obrigada por não ter desistido, prometo que também não vou.

Thais Sombra tem 25 anos, é nascida em Belém do Pará e moradora do Conjunto Maguari. Graduanda de Artes Visuais na UFPA, é artista visual, arte educadora, escritora e musicista. Realiza trabalhos em técnicas variadas como instalação, desenho, fotografia, lambe-lambe, performance e escrita, além de se interessar pelo carimbó. Busca pautar em seus trabalhos questões relacionadas à regionalidade paraense e à vivência de pessoa negra a partir de suas próprias experiências. Participou como artista convidada na exposição nacional em 2019 chamada “quieto como é mantido” pelo coletivo Trovoa. Também teve participação na produção e montagem da exposição Telas da Esperança que ocorreu na galeria Teodoro Braga (2020) e teve uma prosa publicada na Coletânea Trama das águas (2021). É integrante do coletivo Ilustra Pretice Pa, escolinha de carimbo Lourival Igarapé, Pisada Cabocla e Trovoa.

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Espelho de escambo Paula Arruda

Eu te vi passando Não te reconheci Estavas esbaforida em passos apressados Curtos Olhavas apenas para o chão Parecia muita ânsia de chegar Sem tropeçar Eu cruzei essa tangente Quase te desapercebi Foi aí Que o vento tirou teus cabelos dos olhos E te enxerguei ali O encontro da minha vida! Prazer, Paracauary. Respira Fita o céu Se tropeçar Nada mais acontece do que levantar Esvoaça teus cabelos Sorri nas tuas palavras Te encontrei Me reconheci E não abro mais mão de ti Em caminho de mortalha Somos Sucuri Aldeada maior que a navalha.


Paula Arruda é paraense, de origem marajoara, poeta e escritora desde a infância, quando já aos 11 anos recebeu a primeira colocação no concurso de poesias do Colégio Moderno, na categoria que incluía da quinta série ao convênio. A escrita poética e literária continuou vívida, mas guardada em muitos cadernos que ainda esperam sair para o mundo. O trabalho para a publicação de textos foi dedicado à faceta da professora e pesquisadora da Universidade Federal do Pará, que em razão das etapas da vida acadêmica com o doutorado na Universidade de Salamanca (Espanha) e o postdoc na Universidade de Duisburg-Essen (Alemanha), voltou-se aos vários livros e artigos em revistas indexadas, sobre direito constitucional e direitos humanos. Paula diz que não escrever é como morrer. Foi asfixiada pela vida acadêmica, precisou aprender a seguir se entregando às laudas da luta por direitos, mas sem perder a ternura da poesia que gritou, fazendo-a voltar. Atualmente se dedica, principalmente, a retomar sua natureza poética e literária para a publicação do livro multilinguagem em construção na imersão artístico-literária com a Poética Paracauary da Casa da Cuieira, na Ilha do Marajó, onde é curadora.

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