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Idas e vindas

Karimme Silva

Sabe quando a gente tinha tempo e vontade? E quando a gente tinha escolha? Naqueles dias em que ir e vir não eram apenas verbos nem os direitos básicos de todos os cidadãos, mas as opções que tínhamos. “Hoje não, deixa pra amanhã”, era fácil pensar no amanhã, ainda que a incerteza sempre permeasse a existência. Mas havia amenidades. Havia.

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Uma vez me disseram para não pensar no amanhã. Tinha meus doze ou treze anos, muitos quilos a mais e a menstruação recente. De “criança gordinha” virei a pré-adolescente com curvas. Ali era um momento de deixar a infância e abraçar juventudes, enquanto eu brincava de bola na rua de casa, teria que usar absorventes. Não entendia direito essa coisa do ir e vir do sangue dentro de mim, sabia que existia, já tinha lido sobre, mas não entendia o caminho. Estava ali, consumindo processos novos e me diziam “não pensa no amanhã, pensa no que existe agora, aproveita o hoje”. Nunca fui imediatista, queria não ser obrigada a pensar hoje no amanhã. Deixei pra ontem o que hoje já não caberia mais em certeza alguma: a ideia do futuro. Olhei de novo para o hoje.

Restavam alguns dias para o que seria o início do caos. Era uma tarde de segunda-feira, caía uma chuva fina. Desci do ônibus na Almirante Barroso e andei algumas ruas até a banca de revistas. Comprei uma apostila que há tempos queria, que iria ajudar com alguns estudos. Sempre fui melhor escrevendo, lendo e grifando, algo que no papel funcio-

nava mais e melhor que na tela de computador. Mais cedo, tirei alguns pesos mentais na terapia. Precisava rechear as ideias de coisas mais palpáveis e sensatas, precisava jogar a meu favor. Era uma semana em que havia me aborrecido e chorado muito. Estava sensível e triste. A tal da TPM é um caminho sem volta. Mas ela volta, todo mês. Naquele mês de março também. Eu mal sabia que, mais tarde, ao descer do outro ônibus de volta em casa, os dias já não seriam mais os mesmos. Cheguei com pressa em casa, debaixo da chuva que havia aumentado. Senti aquele sumo quente e incômodo pouco antes de descer do ônibus; lá estava o caminho do sangue, que já havia ido e voltado outras tantas vezes. Depois do banho e do absorvente, a tv mostrava o que já se imaginava: a doença chegou no Brasil, no Pará, em Belém, nos caminhos das ruas e muitos corpos. Nós não poderíamos mais ir e vir, naquele momento fecharam-se os caminhos. Caminhos fechados, corpos abertos. E uma grande interrogação. Os prazos seriam mudados, compromissos desmarcados, mudanças de percursos, a apostila seria condensada, não haveria mais estudos, voltas de ônibus, terapias presenciais ou caminhadas pelas ruas de Belém. Nem no dia posterior, uma terça, menos ainda nos outros dias. O sangue tecia seu trajeto mensal. Daquele mês em diante, não teceríamos mais os nossos próprios trajetos.

Roseany Karimme Silva Fonseca (Karimme Silva) é paraense, mestra em Artes pela Universidade Federal do Pará, artista-pesquisadora de processos criativos, atriz-cantante, intérprete no projeto musical MANTO, escritora e artesã de cena, palavra e som. E-mail: rose.karimme@gmail.com

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