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Filha de rio

Erika de Aquino

No princípio era o verbo. O espírito da criação habitava as águas, nelas estavam a vida. Todas nutriam seu saber original. Foram iniciadas no mundo dentro do líquido amniótico, águas acolhedoras, atemporais. A maré encheu, a maré vazou. Revoluções aconteceram. Corpos aprisionados, corpos cerceados, corpos abandonados.

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Veio a separação do cordão primordial.

Corpos inertes eram levados pelas águas, mas não se nutriam mais do verbo da criação. Tantos entes submersos, tantas escritas suplantadas. Ofélias enganadas. Silêncio, escute as águas. Há abundância de palavras em inação. A maré encheu, a maré vazou. Revoluções aconteceram. Corpos questionando, corpos se libertando, corpos acordando.

No fundo, muito fundo, um corpo se abisma entregue às sombras aquáticas. Vozes simultâneas são ouvidas e sentidas. Batizada perante o rio, criada em água doce. Quantas mulheres viu sofrendo e chorando? Quantas angústias a afogaram?

A criança interior tenta acordá-la e nada em seu líquido de vida, dança e canta uma canção de despertar. Breve estímulo, a canção a puxa, mas o corpo pesa entregue ao medo de emergir. Devaneios, alucinações, me deixe tocar o fundo, onde o abismo guarda todos os segredos…

A criança não desiste, agita-se e grita com toda a força que consegue para esbravejar. O corpo inerte, abre os olhos

repentinamente e se contorce sob a pressão das águas, braços e pernas se debatem e depois se alinham. Ela nada, abrindo caminho com as mãos, lembrando e venerando as lágrimas de todas as mulheres que a formaram.

Desmaia… mas despertada para a vida, o corpo fl utua para a terra. Ela acorda na margem, a marola tocando seu rosto. Levanta o dorso lentamente, vestida de folhas de mururés acaricia a terra, volta a abaixar o corpo para senti -la em todos os poros, rola e se cobre de abundância, crava pés e mãos no solo que irá receber sua semente interior. Momentos de terror e beleza a tomam. Apesar de líquida, sempre teve difi culdade em se nutrir. Planta agora a sua semente para romper em criação, criar raízes, dar fl ores, frutos e espalhar o pólen esvoaçante.

Uma borboleta amarela pousa em seu cabelo. É chegada a hora.

Erika de Aquino é professora de Literatura atuando no Ensino Básico em comunidades ribeirinhas do Baixo Tocantins. Ribeirinha-cosmopolita, perguntadeira de coisas e contadeira de histórias, sonhadora que não dorme no ponto. erika_aquino@id.uff .br.

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