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Voos ancestrais

Ester Corrêa

Dei-me conta recentemente de que, na minha linha ancestral, a escrita é um privilégio não experimentado por minhas avós e bisavós. Revirando os documentos de família, milagrosamente encontrei a certidão de casamento da minha bisavó paterna. Ela não pôde assinar o livro de casamento, por não ser alfabetizada. “Asignando a rogo da nobente por dizer não saber ler nem escrever” diz o documento escrito à mão, de caneta azul, no ano de mil novecentos e trinta e oito. Outro homem assinou por ela.

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Iniciei naquelas linhas um voo ancestral. Surgiu a necessidade da escrita da história das minhas mais velhas. Por meio da escrita poderia me tornar porta-voz das que vieram antes de mim. Uma forma de justiça e reparação que quebrava as últimas barreiras a separar minha história a das minhas avós. Mas como a gente sobrevoa o passado? Como a gente coordena as asas e ajusta o olhar? A representação é necessária, mas como fazer isso se nem toda poesia do mundo consegue captar as fortalezas que se armaram ao redor das vidas das mulheres que nunca assinaram seus nomes e histórias em um papel?

Iniciei uma busca! Um voo sobre papéis e oralidades. Encontro nomes. Sobrevoo as histórias contadas. Busco cores, localizações, compartilho sabores e saberes. Teriam elas plantado alguma árvore que me faz sombra agora? Há algum resquício debaixo do solo? Não sei se um dia saberei.

Sinto-me atraída a exercer uma arqueologia que me traga materialidades dessas existências. Percorro caminhos e trilhas ancestrais. As palavras aparecem – essas que ficaram soltas no ar – inscritas no não-dito, no não-assinado. E elas se repetem, cruzando meu sobrevoo. Elas sobrevivem. No ar. No lugar. Nas pessoas. Em mim.

Tânia Miranda

Tomei algumas taças de vinho agora à noite, então minhas incoerências aqui nesta página provavelmente serão mais floridas que de costume ou descoloridas, quem sabe incoerentes, imprudentes, insolentes... Me encontro sentada, olhando para uma página em branco na tela do meu notebook há algumas horas, tentando começar. Escrever tem sido minha companhia, me refugiei entre papéis, canetas, lápis, computadores; paisagens e imagens simples, outras desoladoras, neste tenebroso tempo de dois mil e vinte um. Escrevo, não escrevo. Escrevo. O que escrever? Sobre o que escrever?

Não é sobre mim, é mais que isso: é sobre gentes, gentes, sobre a gente. Porém ao meu modo, uma maneira simples de pegar a essência intangível de mim mesma e torná-la tangível. Me dei conta Me encontrei Caminhei E sei

Não há caminhos isentos de choro Se houver, me recuso a percorrê-los Os caminhos que encontrei, as esquinas por que passei, por onde andei Confiante e desviante Morri em vida para sobreviver Confiante no caminho encontrei gentes, gentes, gentes

Dispostas a me socorrer, me dilacerar; o corpo e a alma de carinhos e carícias Desviantes no caminho amei sem pensar, sem chorar, sem perdoar Assumi os riscos do meu caminhar Em pensamentos, e às vezes em palavras, sonhando, muitas vezes voando, outras com os pés descalços queimando-os na areia, no asfalto, nas ruas e rios da Amazônia E de tanto amar, tanto amar; parei para chorar, fiz um sorriso brotar Lembrei de nós loucos, alucinados e crianças Meu amor, meu tesão, minha paixão, minha sedução, meu todo bonito! Lembrei do calor, olhos nos olhos, pele sob pele, das travessuras de noites eternas Da confusão das nossas pernas É assim que me sinto contigo, inocente e indecente Sim, tudo era sagrado! Tudo era divino em nossas almas Em outra vida, em outro tempo e Ultimamente, quando não consigo dormir Essa outra vida e esse tempo é para onde vou

E meu pensamento se torna vapor: desaparece ao vento

Por isso, registro as palavras... porque palavras podem ser para sempre, ou perto disso! Posso colocar minha alma no papel e amanhã voltar e checar-me: Sou Eu? Sim, sou Eu, ainda sou Eu, mesmo perdida no tempo, o que escrevo é como uma espécie de bússola Escrevendo... Me sinto LIVRE!

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