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Herança

Ana Carolina Gomes

O cheiro de jasmim entrava pelas janelas abertas para a noite de verão e fechava-lhe a garganta. O crepitar do gelo derretendo no copo de uísque parecia marcar o tempo daquela espera, enquanto H. tentava respirar. O burburinho que vinha do salão lá fora denunciava a elétrica euforia dos convidados à espera da meia-noite que traria um novo ano, a esperança infantilmente reacendida com as badaladas do sino. H. também queria renascer, mas para isso precisava de Lygia, e já fazia dezoito minutos e vinte e sete crepitadas de gelo desde que a havia convocado, com o olhar em código em meio à pequena multidão, para que lhe encontrasse no outro aposento.

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O cetim azul-claro encostado à escrivaninha de carvalho formava uma risca de suor sobre o quadril de H., e a umidade dava-lhe a sensação de estar mergulhada num líquido viscoso de onde só poderia ser içada pela presença magnífica que, sabia, traria a chave para todos os seus mistérios. A porta finalmente rangeu, e vozes não convidadas esgueiraram-se por um segundo para dentro da biblioteca, mas depois o mundo silenciou-se novamente. Ouvia-se o farfalhar da seda enquanto Lygia se aproximava, somente o rosto e o colo discerníveis entre a penumbra e o vestido preto. — Desculpe, minha querida, ficamos presos numa conversa interminável com o embaixador, que insistiu em relatar todos os detalhes da situação no Irã, demorei a conseguir

me desvencilhar. Por que está aqui nesta escuridão? Vamos lá para fora, já é quase meia-noite. — Estou afundada em um pântano tão denso que não sei nem se conseguirei sobreviver aos próximos minutos e chegar a ver o novo ano. Eu tenho a certeza de que 1954 é o ano em que eu vou morrer.

O pragmatismo de Lygia chocou-se contra a amargura cerimoniosa de H. — Ora, deixe de bobagens. Isso é demais, até para você. Pois eu sei que este será o seu ano, o ano em que você vai finalmente abraçar o ofício, aprender a voar. — Este ano eu faço vinte e quatro anos. Lembra o que aconteceu com o meu pai aos vinte e quatro anos? Lembra o quanto ele lutou, inutilmente? Eu sinto o mesmo mal tomar conta de mim, Lygia. Eu sinto a loucura me envolver enquanto escrevo. É como uma fumaça espessa que sobe pelos meus braços, toma o ar à minha volta, adere às paredes, ao teto. Fecha-se em mim e lança-me em espiral ao poço escuro. Eu sei que algum dia não conseguirei mais sair, estarei ali perdida para sempre e terei aqueles mesmos olhos baços e enevoados do meu pai. Merda! Eu me esforço para deixar de escrever, para ficar longe do papel e da máquina. Mas é uma maldição, a mesma loucura me impele sempre a voltar. — Olha, quisera eu poder mergulhar ao fundo do poço, sabe? Fico sempre pairando à superfície, numa eterna prontidão, à espera do aviso dele sobre algum jantar ou visita ilustre. Aquela que escreve fica desbotada em um plano longínquo. Eu me sinto ridícula quando não escrevo. E, quando escrevo, o que sai é lindo e superficial, como tudo à minha volta. Tudo arrumado. Mas me falta um poço para mergulhar. Escuta, você pode me doar um pouco dessa loucura? Prometo que você não morrerá em 1954. Eu vou lhe puxar

de volta, até você aprender a voar sozinha para fora do poço. Venha, vamos voltar à festa.

H. deixou-se conduzir pela sala, o cetim empapado colado às costas, afastada por Lygia da beira do abismo, mais uma vez. Mas, antes de emergirem as duas à superfície alegre do salão, Lygia notou que o olhar de H. de fato parecia um pouco enevoado.

Nascida e criada em Belém, Ana Carolina Gomes viveu por dez anos no Rio de Janeiro e há três mudou-se para o Porto, em Portugal. Sempre cercada pelo sotaque chiado, a língua portuguesa é um dos seus grandes amores. É bacharela em Direito, tem MBA em Relações Internacionais e trabalha como consultora em projetos de cooperação internacional. A gaveta de Ana Carolina guarda muitos textos não lidos por mais ninguém. Um dia desses aconteceu que um conto rompeu o cerco e vai ser publicado na coletânea Bonde Cuspindo Gente, organizada por Caco Ishak, a ser editada pela Patuá. E agora que Pandora abriu a caixa, não há como voltar atrás. Melhor assumir que o hábito pode virar ofício, temperado de suor, lágrimas e sotaque chiado.

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