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Parto

Amanda Monteiro

foram sete, eu contei. na primeira respiração funda, meu irmão ainda falava ao telefone resolvendo trâmites de funeral. lá pela terceira, já mais funda, percebeu que precisaria desligar. eu já estava à beira da maca e tive certeza de que também da morte. na quinta, ele puxou um pai nosso e eu acompanhei, com os olhos pingando no lençol. seja feita a vossa vontade. a oitava não existiu. o que me restava de ar se foi num grito, num choro de criança guardado desde que entendi que o câncer levaria minha mãe. por quase todas as noites dividimos a cama, ela, eu e a morte, essa última sempre no meio de nós, de tudo que nos permeava, de cada pensamento antes de meus atos, medo de perder a única que me amaria, apesar de quem amo. e sabia que um dia acordaria sozinha, intutelada, corpo no mundo, vulnerável aos cortes da vida, dos outros. acordei sem ela e sem ter o que fazer quando foi transferida para a ala do hospital pra onde vão os que não têm mais jeito, a ala das despedidas, que poderia ser um nome carnavalesco, mas era só choro. o róseo-salmão da parede acalentava, as flores coloridas de plástico amenizavam, os corredores cheios de quadros psicologicamente pensados acolhiam, mas não o suficiente pra conter meu grito de quase vinte anos. os enfermeiros correram pra pedir silêncio, não pra olhá-la, já sabiam. bruno foi o único enfermeiro que não viu uma histérica ali, “eu sinto muito, moça”. também sinto muito, bruno, ali, eu era carne viva. trouxeram o aparelho pra checar os sinais vitais. nada. deveriam ter checado os meus, senti a desfalecência, ali também morri. antes de partir, ela me pariu de novo. na verdade, escolhi nascer, o que torna o parto mais difícil. gritei, como todos os bebês,

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reclamando do gelado do aço inoxidável na bunda enquanto são pesados. queria voltar para a barriga morna, segura e constantemente alimentada pelo próprio umbigo, sem estar à vista de outros. a fonte secou e eu precisaria ser expelida senão morreria junto. para além do desespero, choro é sinal de que o bebê está vivo, mesmo nascendo com o cordão umbilical enrolado no pescoço, quase morto. nasci roxa, rósea, lilás, vermelha, azul e prateada, cheia de glitter: a paleta de cores de sombras da minha mãe. nasci a cara dela. meu enxoval foi de cetim, linho, estampas elegantes em vestidos costurados artesanalmente por costureira profi ssional, a velha era chique. nasci já com as unhas alongadas e pintadas, sem cutícula, furos nas orelhas e penduricalhos enormes, dourados, folheados a ouro. herdei a feminilidade que foi presenteada a ela por gerações de mulheres que pouco nadavam nas praias dos interiores que nasceram, mas beberam a água salgada do mar de violências de seus pais, avôs, maridos, homens; afogadas, segurando a âncora gigante de seus pescadores. herdei e percebi minha grandeza por nada disso caber no meu corpo: nem penduricalhos, nem vestidos, nem homens. se nos encontrássemos hoje, ela não me reconheceria, não sou mais a boneca que mimou, vestiu, brincou. tenho minhas cores, namoradas e uso tecidos baratos. mas de umas coisas desconfi o que ela se orgulharia: mãe, eu só tenho quatro anos desde aquele dia e já sei andar sozinha, falar, cozinhar e, acredite: escrever.

Amanda Monteiro é uma mulher lésbica paraense. Cozinheira e fotógrafa por ofício, tem como profi ssão mais antiga a de escritora; desde os sete, enchendo folhas soltas. A primeira vez que decidiu dividir um texto publicamente resultou em ter sido uma das selecionadas do edital Trama das Águas, da Monomito Editorial, com um texto em que fala de alguns dos múltiplos cantos da sua vivência lésbica na Amazônia, escancarando pela primeira vez quem é. Outro projeto em que teve um texto selecionado foi um que reunirá escritoras lésbicas e bissexuais numa coletânea organizada pela Quintal Edições. Resiste como pode, escreve quando não dá conta.

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