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Andorinha-de-pescoço-vermelho

Alycia Miranda

Quis dizer a Alfredo o horror que vivi na madrugada de sábado passado. Enquanto ele se engasgava nas próprias desventuras, vaguei sozinha por ruas belenenses, o medo não se acentuava somente ao fato de pertencer ao grupo feminino, mas ao escândalo de ser cuspida dos cuidados de Deus. Também quis te ligar, mamãe, para avisá-la que, não se engane, aqui também já há cadáveres; quem sabe essa contínua reversão de morte-vida seja apenas um dos efeitos dos remédios de que, ansiosamente, espero me livrar daqui a seis meses. Mamãe, assim que isso acontecer, levantarei voo para o seu colo: toda intencionada a lhe devolver sua pequena menina, aquela que ria e sorria e cantava e dançava e libertava todos os sentidos humanizados e animalizados. Te prometo tudo isso, mamãe. Porque não vejo a hora dessa maresia cessar e assim ver a grande cidade que construíste à minha espera, um local feito para amparar as minhas fragilidades e ainda mais: a conhecendo e a observando, afirmo também que vais romper a corrente de ar, ou de gravidade, entre o céu e a terra para, de uma vez por todas, os voos virarem passos e nado e naufrágios. Mãe, ainda não estou bem, como uma garota que evita a rua deserta, obrigo-me dia após dia a suportar um genuíno enjoo, uma náusea de gravidade clínica, espiritual, psicológica, pois enquanto eu apreciar a química alcoólica meu corpo automático se guiará em direção ao abismo. E, por favor, mamãe, acredite

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em mim: eu bani a tirania. Rompi com o autoprazer de me autodestruir. Estou a melhorar a cada lembrança recuperada do meu passado. Afi nal de contas, transgredir um espelho maculado é, sobretudo, acompanhar o pretérito. Digo para a sua melhor compreensão, mãe: não basta não temer; a liberdade está na vivência contínua e regular da memória, pois sem essa, minha amada, deixo de ser menina, de ser moça, e sou largada, nem viciada, nem curada: abandonada.

Alycia Miranda é uma jovem negra, militante do Movimento Feminista e do Movimento Estudantil, tem 18 anos de idade, trabalha como professora de reforço e auxiliar de dança, almeja cursar Direito, e acredita na literatura como um ato de resistência ao tempo e às opressões, que por ele se perpetuam.

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