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Mãe solteira

Laiane Guedes

Estou falando do escritório onde trabalho, este é meu primeiro emprego e só o consegui depois que abandonei a vida de casada. Na verdade, antes desse emprego de recepcionista eu acreditava que só sabia ser dona de casa. Estou com 27 anos, dois filhos, um gato e uma cadela para criar, meu ex-marido me traiu com a filha da vizinha que morava na mesma vila que nós. Minha mãe me ajuda como pode, leva as crianças para a escola e cuida delas até eu voltar do trabalho.

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Ainda sofro muito pelo Bernardo, mesmo depois da separação. Ele foi meu primeiro namorado e único amor. Minhas amigas comentam comigo sobre uma possível reconciliação, mas dentro de mim algo diz que a vida logo vai se ajeitar e tudo isso vai passar.

O emprego não é o melhor do mundo, eu atendo o telefone, anoto recados, auxilio pessoas, ajudo na organização dos documentos do senhor João, meu chefe. Sinto-me útil, é um sentimento bom. Apesar do cansaço, é melhor do que retornar à posição de mãe e dona de casa. Eu sou mãe e serei também o pai, quando necessário, sei que Bernardo não vai se responsabilizar em fazer sua parte, mas também sei que faço de tudo por minhas crias.

Isabela, minha filha mais velha, está com seis anos e todos os dias pergunta pelo pai. Digo a ela que no fim de semana ele virá buscá-la para passear, ela dorme aquele sono inocente das crianças, com uma expectativa que dura da segunda à sexta. Isso ela não herdou de mim, eu sou mais pé no chão, do tipo que só acredita em uma promessa depois que vejo ela se cumprir. Lucas, seu

irmão, está com três, menino que vai com todo mundo, quando saio ele não chora porque se sente bem na minha ausência. Peço a Deus para que ele cresça com essa tendência a ser independente.

Uma mulher trabalhando é quase sempre para manter a família, as mocinhas que não têm muito compromisso fora do ambiente profissional não dão conta da rotina. Nós mães somos sempre as que seguram as pontas a qualquer custo, porque nosso bebê não pode dormir sem o jantar e não pode ir para a escola sem o café.

Na quinta, 24 de dezembro de 1993, véspera de Natal, eu tava saindo do trabalho, já bastante cansada, quando dei de cara com o Bernardo. Ele tá diferente, deixou a barba crescer, usa uma calça folgada, quase um estilo hippie. Veio a meu encontro, perguntou se viajaria com as crianças no feriado, respondi que iríamos para o interior visitar meu pai, as crianças estavam com muitas saudades do sítio. Bernardo me pediu para ir junto, respondi imediatamente que não. Ele seguiu insistindo na ideia de ir passar o Natal comigo e as crianças na casa do papai, no interior. Não consigo acreditar que pensa em “nós” como uma família depois do que aconteceu, segui em frente e deixei ele falando sozinho.

Hoje, no caminho de volta pra casa, sentada junto à janela do ônibus, penso na mulher que estou me tornando. Nunca é tarde para crescer. Pensava que ia viver para sempre com aquele homem, que até me amava – sim Bernardo gostou muito de mim –, mas só do lado de fora da casa consigo ver o tamanho da prisão: gaiola grande com dois quartos, quintal e piscina para as crianças, cozinha ampla para dar a sensação de que eu tinha espaço suficiente para cozinhar, servir a mesa e apreciar a vista da janela. A chave ficava até na minha mão, porque aquela era uma prisão da qual eu mesma não queria me libertar, era infeliz e não sabia, perdi tanto tempo ali. Bom, agora não adianta mais reclamar, é hora de dar um novo sentido à vida.

Próximo ao ponto, meu telefone toca, atendo, é mamãe dizendo que Bernardo apareceu em sua casa bêbado e levou as crianças embora.

Entro em pânico!

Ligo para a polícia e começo a chorar. O telefone toca outra vez, agora é Bernardo dizendo que está me esperando em nossa casa, coloca as crianças ao telefone, consigo perceber que estão bem. Me tranquilizo. Desço do ônibus e me preparo para ir até eles, são instantes tensos, desses que nos mostram o que nos move na vida, percebo que meus fi lhos são minha razão de ser e estar viva. Sinto o passado como uma sombra que não quer me desacompanhar. Seja lá o que for que aquele louco esteja planejando, só vou entrar lá, pegar meus fi lhos e partir. Entro no primeiro táxi que aparece, a cada rua no trajeto me vem uma lembrança com aquele homem doente. Eu não posso lembrar de momentos bons com ele, o passado, quase como uma pessoa, diz coisas que me fazem lembrar a vida que tive ao seu lado. O táxi para em um sinal demorado, me dá tempo de pensar em quantas outras ruas na cidade ainda não conheço, aquele homem não me deixaria avançar nem mais um metro se com ele fi casse. Vou com frio na barriga, meus fi lhos podem estar em perigo, eu sou a mãe, se algo acontecer é capaz do Bernardo sair ileso e eu como culpada. Eu mataria aquele desgraçado.

Chego na casa, desço do carro, corro pra abraçar as crianças que brincam tranquilamente no pátio. Quando olho pra dentro da sala, Bernardo está sentado, dormindo profundamente, sinto que a ressaca vai doer, respiro fundo com as crianças no colo, saio pelo portão e deixo o passado dormir.

Vou embora sem olhar pra trás. Se acordar, não estarei mais lá.

Laiane Guedes é cientista social, feminista, bissexual, escritora e percussionista. Começou sua trajetória na literatura com o texto “fulga” no livro Alfredo uma entrenarrativa de viagem, publicou o conto “As estações do rádio lunar” na coletânea Tramas das Águas, publicada pela Monomito Editorial, produziu eventos virtuais e presenciais de fomento à cultura voltados para mulheres e pesquisa e brinca com a escrita em seu cotidiano. laiguedes.medium.com laianeguedes21@gmail.com

Paloma Costa

Já, meu bem? Tira a roupa. Vem deitar. Deita, Mas não dorme. Sei que os dias estão difíceis Que é mais silêncio que risada Mas bota a cabeça aqui No meu peito É tua paz, eu sei, Vem.

Lá dentro é desespero, sabe? Chorar não pode. Rir é proibido. Se esbarram porque correm depressa demais naqueles corredores e já esqueci a forma dos rostos dos meus colegas de trabalho. Ontem uma menina de cinco anos foi achada morta em um terreno abandonado – precisei chamar a mãe pra identificar o corpinho da filha. Beira o insuportável. A garganta fica sendo, mais uma vez, aquela represa que torço pra não romper, pra não me matar sufocada. Lembras quando foi a tua vez? A tua mãe perdeu todas as forças naquele dia. Precisei fazer o teu reconhecimento. Quem podia imaginar que em uma ida à festa alguém iria te abater na encruzilhada? Já te esperava em frente à igreja, segurando aquele travesseiro de arco-íris que tu tanto querias ganhar de aniversário. Lembras que eras tu que me aguar-

davas chegar em casa às madrugadas só pra poder dizer sorrindo que eu podia me deitar mas não dormir? E não dormíamos. Era o nosso tempo e de mais ninguém. Fico olhando aquele caderno de colagens que tinhas e rio sozinha da nossa “futura família das iguais” – duas adultas e uma criança com vestidos iguais, pijamas iguais, maquiagens iguais e inúmeros cachorros e gatos coloridos à nossa volta. Eu dizia que tu viajavas nas projeções, mas a realidade era que eu amava a tua criação e amava mais ainda poder estar contida nela.

Ah! Quase esqueci de te falar: pintei as asas daqueles querubins nas paredes de casa e ela fi cou mais alegre; aos poucos tenho fi cado assim também. Lembra de voar por aqui de vez em quando, tudo bem? Tenho estado em paz, tu sabes, e te agradeço sempre.

Paloma é licenciada em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade do Estado Pará (UEPA) e Bacharel em Museologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Além disso, é contadora de histórias do Grupo de Extensão Griô, discente do Curso Técnico em Cenografi a da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA) e integrante do Coletivo Aparelho desde 2016. Também é fotógrafa em formação e desenvolve essa linguagem se especializando na fotografi a de rua, fotopaisagem e fotografi a familiar. Em 2020, participou do “Mundos Imaginados – Laboratório Experimentais de Criação em Rede”, promovido pela Raio Verde, e também do projeto “Trama das Águas”, publicado pela Monomito Editorial.

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