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Quem és tu?

Yasmin N. Moita

Aconchegante, a escuridão me abriga. Ela me cria, me nutre, me consola. Como um abraço quente e longo depois de um dia triste que se arrastava. Um dia de muitas horas. Tinha cansado de trombar com obstáculos e de fugir de perigos: quase tudo era tão grande! Um tempo antes da escuridão chegar, lembro que encontrei uma criatura estranha no lago, e logo perguntei a ela: — Quem és tu?

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Era a água. Que também era eu. Parada, que a tudo refletia e distância alguma alcançava. Ciente de minha pequenez, já perdendo com os revezes a esperança, pensei bastante. De que me serviam as pernas que não tinham me levado longe? Para que destilar tanto veneno em quem me incomodava?

Até que a natureza me interrompeu. Disse-me para me fechar e enfim descansar das inúmeras quase pisadas e quase capturas. E ela me forçou a olhar para o lugar mais detestável da Terra: para mim mesma. Não era um instante na água parada, mas dias em mim mesma, trancada, questionando-me, como fiz com aquela criatura: — Quem és tu?

E o ócio me fez responder. Eu era a jovem com a cabeça nas nuvens. A garota dos sonhos impossíveis. Admirava flores, pássaros e borboletas. Queria descrever a beleza de tudo. A que tinha pernas desajeitadas, que atrapalhavam o maior sonho: descobrir o que tinha do outro lado do lago.

Era a moça que queria ver o mundo. E também a garota que ouviu que deveria desistir. E que, agora, a própria natureza tinha deixado de castigo, confi nada a um casulo apertado e escuro, que era cada vez menor.

Que agonia! Crise inesperada! Que desconforto! Quais serão os desígnios da natureza agora? Me agito. Me contorço. Natureza, que queres? Vejo a frondosa copa da árvore. Devo ter morrido. Ou não. Sinto-me pesada. Mexome mais. Bato minhas asas com fúria. Eu tenho asas! Saio do casulo. Caminho carregando nas costas um novo peso. Bato as asas mais três vezes, inquieta. Dou um salto maior e saio do galho que me abrigava até então. Mas e agora? Abaixo está o espelho d’água parada, eterno zombador e eterna fronteira. E ali estou eu, refl etida, prestes a cair nele. Eu, borboleta. Que bate as asas desesperadamente, enquanto se aproxima cada vez mais da água. O medo não me paralisa dessa vez. Pelo contrário: me faz voar. E eu subo. Vejo as copas das outras árvores. E um majestoso rio barrento, grande o sufi ciente para não se ver a outra margem: um oceano que vai desaguar em outro. Sigo, maravilhada, o curso da água corrente. E sinto em meu âmago. E respondo fi nalmente: sou borboleta.

Yasmin Moita é advogada e natural de Belém do Pará. Orgulhosamente amazônica e brasileira. Inquieta. Fã de fi cção científi ca, Filosofi a, Ciências Políticas, música, chocolate e tapioca.

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