3 minute read

Mestre Nato arfando nos dias

Monique Malcher

Toque no meu peito, coloque os dedos cheios aqui nessa parte em que guio sua mão estranha ao toque do que não é seu, sinta a respiração que extrapola qualquer torácica caixa. Entenda que a casca do caranguejo é areia movediça. Que as anatomias perdem os títulos. O peito já não é o peito, é a gosma de meus medos, e quem voa tem tantos que não cabem em tabelas de Excel e em contas primárias de vinte dedos humanos, nem todos os humanos têm os vinte. Tenho cinquenta, cem, quatrocentos e trinta e oito. Tudo em mim é pena de ser e de proteção.

Advertisement

Por cima do oceano, por um minuto me sinto perdida na noite em que água sempre é espelho. Prazer em lhe conhecer desconhecida criança que esmago em meu peito. Sinta o arfar, não é preparo de voo, apenas, é o instante de toda a vida que não sabe sobre sentimento e ação em suas diferenças. Nem todo pássaro é captado pelas lentes com altivez. Escondo meus brilhos em meio ao barro, dizem que nesse oco não nasce a doença de chagas, mas sinto os furos nas minhas mãos. Tenho mãos diferentes das suas, repara.

Dentro de minha caixa mora Mestre Nato do Guamá, com sua alfaiataria moderna, de um lugar que os olhos de quem acha o voo coisa de privilegiados não consegue alcançar. Sou a pupila de Mestre Nato, cortando os cabelos dos atores e transformando na plumagem de figurinos que sobrevoaram o tempo. Sou o chão sujo da rua, que Nato dormiu

perto do museu de arte moderna. Sou a água que lavou os pés de Nato. Sou tudo e nada ao mesmo tempo.

Costurei pássaros na dimensão em que chamam de superação o que é trabalho de costura com cultura popular. Popular porque no peito dos pequenos pássaros navega o que é povo, e por isso maior, gigante. Sou apenas os olhos nas cabeças dos alfinetes. Sinta aqui, bem aqui, toca no meu peito pelo amor do seu deus podre. Vivo feito um beija-flor, a dois metros do chão, com várias fotografias que acabam no erregê, com pedaços do que é de dentro e do que é de fora. Sou o isolamento das vestes. Sou a nuvem que mostrou Nato ao mundo que não o quis ver, mas precisa dele. Ninguém sabe que precisa da liberdade.

Uma menina de cabelos curtos passeia numa bicicleta imaginária, ouve os pássaros cantando, não sabe que eles estão gritando para que o mundo os deixe em paz, o segredo da liberdade é uma abstração. Só há liberdade no que se move com amor, e nem se sabe nada sobre o amor, ele já foi ataque um dia.

O pássaro sabe que na labuta para si, nesse corpo que se cansa do voo com objetivo repetido, há mais do que liberdade, há esse arfar. No peito de cada um de nós, plumagem de arranque. No peito de cada um de nós, o medo das aproximações do que é humano e morreu pela ganância.

Cecília Meireles me disse essa tarde: escolha o seu sonho.

Me lembrou que o hino nacional diz de liberdades pela pátria. Que se foda a pátria! Desculpa, Cecília, pelo palavrão que encaixo aqui, mas só ele se encaixa na raiva de meu bico. Hinos que falam de asas de uma Babel que achamos ser livre. E Mestre Nato descansa sem asas, aqui, no meu peito. Sentiu?

Monique Malcher é escritora e artista plástica nascida em Santarém (1988), interior do Pará, mas viveu grande parte da vida em Belém. Publicado Flor de Gume pela Editora Jandaíra, com edição de Jarid Arraes, e as zines Trinstona (2019), E a gente nunca mais se viu (2019), Mas nem peixe? (2020), Aquenda (2020) e Zine Segredo (2021), essa como editora. É integrante do Clube de Escrita para Mulheres e também uma das coordenadoras do Clube de Escritoras Paraenses. É mestre em antropologia (UFPA) e doutoranda interdisciplinar em Ciências Humanas (UFSC), pesquisando literatura e quadrinhos produzidos por mulheres. Tem contos publicados na Revista Desvario, Poça, Circular Campina Cidade Velha, Anuário Filipa Edições e Ruído Manifesto. Realizou a curadoria do projeto Trama das Águas, publicado pela Monomito Editorial, e tem contos publicados nas coletâneas Parem as máquinas (Selo Off Flip), Fora dos centros: o sertão é o mundo (Editora Reformatório) e Abrindo a boca, mostrando línguas (Selo editorial paraLeLo13S). É fi nalista do Prêmio Jabuti 2021. instagram.com/moniquemalcher/ facebook.com/monique.malcher.1 tinyletter.com/moniquemalcher

This article is from: