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Lua Vermelha

Mayara La-Rocque

Madrugada, um fio de sangue me acordou entre as pernas, um alarme certeiro de engrenagem uterina me alavancando os olhos para além da janela, como se adivinhasse a exata hora em que uma neblina entre-azul entre-cobriria os prédios de uma forma tão densamente bonita que eu não poderia deixar de ver. Eu vi. Cheguei até a degustar a umidade na saliva, temperatura de rua calada, gosto acre-doce na garganta. Lembrou-me quando adolescente eu costumava crescer palavra com as horas antes da manhã, me apetecia tudo o que nascia nas vésperas do antes de tudo, antes que raiasse o dia e com ele crescessem os alaridos, berreiros, vozearias aleijadas de ouvidos que nem sequer estremecem ao silêncio do entre-azul que só ascende quando, em alva, a neblina beira as luzes hidroelétricas da urbe.

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Desde ali, eu já sabia, noticiário Google algum me contou: era tempo de arco crescente ocre amarelado sob o signo de câncer – ponta de agulha-caranguejo no céu. De pronto, inundei-me n’água-lama do crustáceo, tanto que cheguei até sonhar com a tal adolescente que fui, ela-eu estávamos mergulhadas em águas entre-azuis feitas da mesma neblina que antes contemplava, mas agora em sonho me subia por debaixo, me cobrindo desde a terra corpo acima, corpo adentro daquela que alguma vez no tempo era e ainda existe em mim. Afinal, isso a que insistem chamar de tempo parece mais cinema cuja tela ora retorna, ora engata, ora

recria ou revela o que por trás da lente não se via. Tão logo entre água entre tempo entre fios de sangue o azul todo se cobriu. Afoguei-me em meu corpo nu, era sonho, quando o primeiro sangue jorrou de mim. Atravessei um rio transparente, metade menina – caroço de peito doído, metade mulher, corpo estriado de raivas, vermelhos e medos – e do outro lado da margem me deram uma fantasia que não coube no meu novo corpo. Nem ao menos me disseram que o novo adereço que eu vestia se chamava mulher.

Acordei. Foi só um sonho.

Dizem, Reis e Luas tomam conta e giram nossas vidas como máscaras rodopiantes em cortejos, zumbaias, cordões, frevos, sambas, capoeiras, bumba meu boi, marujadas, marabaixos, carimbós, batuques, cuíras brincantes e todos os astros zombam de nossas vidas – des-encontros em folia de carnaval. É por isso que aqui de dentro do sangue se formam humores das mais variadas cores que refletem água e fogo em um só tempo-termômetro. Já ouvi dizer que por detrás de toda máscara reina um buraco negro gigantesco e que somente teatro é espaço-onde se contempla o vazio

Madrugada conta um conto: um anjo rapta seres humanos e, dentre eles, uma poeta. Ele os leva para visitar o Pades, paraíso morada das estrelas pétalas de Lótus ondas de marés e de confins da boca infinita do Oceano-Universo. Era néctar o que viram, eram Eras o repouso dos olhos no colo da Criação. Há quem acredite que é de Lá que nasce todo som, um eco de silêncio sem fim. E a história não acaba aí, há sempre o retorno. Na volta para a Terra, muitos enlouqueceram, bravejaram insultos, adormeceram incrédulos diante do que presenciaram, mas nunca puderam explicar. Foi então que a artesã-poeta, durante o caminho, extraiu e guardou,

como em caixa de Pandora, algumas cifras, alguns versos, retalhos e peles de tulipas, penas, revoadas, harpas e felinos.

Por dias e noites em vigília, ela se pôs a escrever incontáveis luas e voos sobre os dedos, melodias estalavam criando entidades, Mahadevis, Shaktis, Sarawatis, vinas, sitares, cítaras, alaúdes, bandolins. Ela nunca conseguia fi ndar a narrativa, era fi o abarrotando fi o, tecelagem ininterrupta de Penélope, pontas e crochês de Arpilleras, telas de Hilda, orquestras de Lília que não cansam de acender o luar. A escritora lembrou que outrora Lília lhe emprestou um livro – L’eau et les rêves – onde um poeta escreveu: “On rêve avant de contempler”. — Sim, Bachelard. Antes, o sonho: contemplamos! — consentiu a poeta, e dentro de seu palco-relicário-biblioteca, acrescentou: — Estou certa de que, para nós, mulheres, o vazio é buraco vermelho sem fi m

Madrugada líquido em brasa, reluzo em cinzas: uma ave-fábula em combustão.

Mayara La-Rocque é graduada em Letras com habilitação em língua francesa pela Universidade Federal do Pará, escritora, educadora e artista. Tem trabalhos independentes na área da poética, artes plásticas, performance e audiovisual. Em 2016, produziu o livro artesanal e a instalação “Atravessa a tua viagem” para a exposição Alfabeto de fi cções, da Associação Fotoativa. Em 2017, publicou o livro “Uma luminária pensa no céu”, pela Edições do Escriba. Em 2018, participou do curta-metragem “Literatura por Elas”, produzido pela Fundação Cultural do Pará. Em 2019, participou da exposição “Tenho medo de perder esse silêncio: cinco vozes femininas” na Casa das Artes, promovida pela Fundação Cultural do Pará. Em 2020, foi contemplada pelo Prêmio Rede Virtual de Arte e Cultura da Fundação Cultural do Pará, com o projeto “Caminhos Poéticos da Escrita”. Atualmente, desenvolve o curso “Escritas de si” e outros laboratórios voltados para experimentação e criação com a palavra.

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