SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Uma nova cosmologia
F
oi num sábado, ao meio-dia, à vista de todos, em plena praça. Ela gritava a todos os pulmões. As palavras se deslocavam como fragmentos soltos de uma construção, em dias de tempestade. Xingamentos e expressões chulas voavam como pedras desencaixadas de um muro que ela própria construíra. Os vazamentos continuavam a se suceder também por gestos inusitados: ela levava as mãos aos cabelos, mexia as cadeiras, dava voltas em torno de si, apresentando um sorriso desvairado e quase selvagem de fêmea no cio, em pleno exercício de sua natureza. Os cabelos, agora soltos e eriçados, se elevavam acima da cabeça morena, desgalhados, e se desmanchavam em ondas negras a se chocar nos ombros, braços e pescoço, ao ritmo de suas gargalhadas. Desarvorava-se. Destituía-se de raízes, abdicando de qualquer parcela de terreno firme. Refazia o caminho traçado pelo medo, desconstruindo 55
SOBRE QUATRO PATAS.indd 55
25/07/2022 17:08:31