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Relatos de uma breve visão
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Entre outros gostos, ele tinha um interesse sincero por casas antigas, pelas camadas de risos, choros e silêncios que acreditava abrigarem-se na pátina densa do tempo que se incrustava em paredes e frestas, habitando seus espaços ocos. Entendia as casas como repositórios de saberes, acadêmicos ou não, em constante dinamismo, um testemunho silencioso das transformações urbanas e da sociedade.
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Pensava nisso enquanto sentia, ali, parado, um mal-estar no peito, ao olhar o terreno exposto em tons laranja com texturas de máquinas, no lugar onde existia uma casa térrea, situada bem em frente à sua, na rua em que vivia desde que nasceu.
Um muro provisório de chapas metálicas e uma placa de grandes dimensões propagavam o futuro daquele lote bem localizado e de entorno nobre, em cores vivas, sorrisos jovens e tons azuis de piscina e mar, para todos aqueles que pudessem pagar por aquele sonho anunciado. Sim, dali do terreno se veria facilmente o mar, ele constatou, surpreso por
Aurane Garzedin
nunca haver pensado nisso quando via aquela casa.
Demorou-se pensando nos futuros moradores dos últimos andares e achou que, além de uma visão privilegiada da cidade, eles possuiriam uma mobilidade mais fácil no mundo, não apenas pelo número de garagens ali anunciadas em destaque. Comparou-os a pássaros inquietos que esvoaçam livremente pelos galhos altos das árvores, em contraposição a outros animais como as lesmas, que se movem pela terra com lentidão.
Ao deitar-se, ainda pensava naquela velha casa, nas histórias secretas de seus habitantes. Fechando os olhos, sentiu-se, a contragosto, tomado por sons e imagens que obstruíam a zona da consciência liberando as amarras do encantamento e da fantasia. E foi assim que ouviu o relato que se segue:
Eu era uma casa desde meados dos anos 1970, quando, neste bairro, o verde ainda predominava quase absoluto, as águas da chuva penetravam no solo e também circulavam pelos canais dos fundos dos vales, como sempre fizeram desde que o mundo é mundo.
Poderia constar na página imobiliária de qualquer jornal da época como uma ‘casa de família’ de padrão bom, três quartos, suíte, sala, varanda, dependências e copa/cozinha, com terreno de 400 metros quadrados.
O desenho nada tinha de original e fora copiado de uma revista, com algumas modificações. Na essência, era uma casa funcional, setorizada, de inspiração modernista, mas o telhado e o piso de cerâmica rústica, o beiral e as janelas do tipo guilhotina faziam alusão ao colonial. Sabia que era uma mescla de estilos sem personalidade, e não uma presença identificável ou singular, como poucas da mesma rua. Com certo constrangimento e nenhuma dificuldade, me plasmei no verde frondoso do entorno e me sentia bem assim.
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Meus primeiros ocupantes chegaram apressados quando parte de mim ainda era tijolo e cimento, dispostos a poupar o resto das economias de que dispunham para garantir-me uma forma habitável. Ruidosa e alegre, a minha primeira família era composta de um simpático casal, três filhos (duas crianças e uma adolescente). De todos eles, a Maria José (peço desculpas por não lembrar o nome de todos), uma ajudante doméstica já quase de meia-idade, com suas mãos rápidas e experientes, me marcou pela forma como limpava meus compartimentos e superfícies com a disposição de quem precisa e com o gosto de quem aceita o desafio da idade.
Nessa primeira versão de mim mesma, havia uma copa, espaço que não tinha o status da sala de jantar nem a importância crucial da cozinha, com a qual se comunicava por meia-parede. Mas era ali, lembro bem, que se reunia a família, três vezes ao dia, e, em suas paredes vitrificadas de azulejo azul claro, os segredos familiares não pronunciados reverberavam até se tornarem outra coisa. Foi o caso da gravidez imprevista e do casamento acordado da filha mais velha do casal, Marília, aos 17 anos, resolvido sem choros nem alegrias. Em quinze anos, vi as crianças se tornarem adultas e o casal aumentar de volume e de patrimônio, enquanto a alegria e a paciência entre si tornavam-se cada vez mais raras. Assisti à decrepitude de Maria José com o seu onipresente radinho de pilha, e de quem não tive mais notícias, desde que, num domingo de março de 1988, me vi fechada para reformas, após ter sido vendida.
Tornaram-me outra. Portas e janelas de madeira foram substituídas por esquadrias de vidro e alumínio, paredes receberam massa corrida e tinta especial. A copa deixou de existir e foi integrada à cozinha. Um dos quartos uniu-se à sala, que por sua vez abriu-se, por uma ampla porta de correr,
Aurane Garzedin
para a área dos fundos. O espaço do antigo quintal ganhou novo paisagismo, e uma das suas passagens laterais foi fechada para comportar um canil.
O casal de médicos (Dr. Fernando e Dra. Meire) estava sempre fora de casa, e seus dois filhos adolescentes (Saulo e César) viviam envolvidos em atividades esportivas. A presença mais constante era Kadu, um pastor-alemão. Várias empregadas se sucederam, mas apenas uma delas ficou gravada em minha memória: a Dalvinha. Ela adorava plantas e pássaros, e dedicava parte do seu tempo a preencher superfícies desocupadas do terreno para fazer dali brotar cebolinhas e coentros, rosas e outras flores. Alimentava tudo com amor e casca de ovo, sob o olhar atento do cachorro e o desinteresse da patroa, que, como o marido, dedicava à profissão o melhor do seu tempo.
O almoço era rápido e nem todos comiam à mesma hora. A televisão sempre ligada marcava, com a sua programação, o ritmo da casa com um som homogêneo e perturbador, geralmente interrompido por latidos e buzinas de carros, cujo trânsito se intensificava ao nosso redor.
Quando um filho casou e o outro foi morar fora do país, o casal mudou-se para um apartamento e a Dalvinha levou consigo o cachorro, para não vê-lo em mãos desconhecidas.
A partir de uma tarde de verão de 2005 até o inverno daquele mesmo ano, permaneci fechada. Formigas e outros insetos passeavam livremente por plantas secas, ervas daninhas e por toda parte. Internamente, os armários habitados por cupins tornavam-se mais leves a cada dia, ao mesmo tempo que pesava o ar umedecido pela falta de luz. Dessa vida miúda e interativa, fui mais que apenas território, fui também alimento com o meu corpo em decomposição.
Finalmente, um dia, novos habitantes chegaram arejando-me
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os cômodos que cheiravam a mofo, como se, naqueles gestos, as suas almas também se abrissem ao mundo renovadas e, por meio de mim, vislumbrassem uma nova vida. E logo o mundo parecia desfazer-se em água, tinta, inseticida, detergentes e vernizes, rompendo a cadeia de nascimento e morte que era a minha deterioração.
Minha aparência externa se iluminou com um amarelo ouro contrastando com a vestimenta roxa da buganvília que sobrevivera ao abandono e, desde então, me namorava o telhado. À minha frente, a parte de gradil deu lugar a uma alvenaria cega mais alta, e um porteiro eletrônico instalado em suas entranhas passou a intermediar a minha relação com a rua.
Os novos moradores eram um casal de idosos, Sr. Joaldo e D. Irene, sua filha divorciada e um par de netos gêmeos que estudavam para o vestibular. Traziam também um papagaio e um canarinho de estimação, que acrescentaram novos sons ao quintal, frequentado apenas pelo Sr. Joaldo.
Três anos mais tarde, após um assalto nas redondezas e muitas precauções, reativaram o velho canil com a presença de um cão de guarda intolerante, que ficava preso durante o dia destilando sua raiva em latidos que acompanhavam sistematicamente qualquer manifestação sonora do papagaio. Naquela época, parte da área verde do quintal foi substituída por um cimentado duro e áspero, mais fácil de manter, segundo disseram.
Após um período de doença no qual o ar tornou-se triste, o Sr. Joaldo ausentou-se para sempre, deixando a sua companheira inconsolável. Mais ou menos seis meses mais tarde, quando alguns sorrisos e ruídos cotidianos haviam se restaurado, eu me vi de novo vazia e escura. As cortinas foram deixadas cerradas, a assinalar-me como uma espécie de túmulo, muito embora recebesse visitas de potenciais moradores.
Aurane Garzedin
Uma transformação radical em minha aparência e a instalação de um letreiro luminoso me deixaram apta a uma nova função. O muro desfeito permitiu o contato direto com a rua. A varanda, agora envidraçada, tornou-se uma vitrine que me expunha sem pudor aos transeuntes.
Para tanto, acharam necessária a derrubada da enorme cássia-azul, que há vários anos havia sido plantada pelo primeiro morador na minha calçada e que soltava flores em meu regaço. Paredes foram retiradas, e a minha organização interna se estruturava, então, em dois grandes espaços interligados, um escritório e um depósito. A área do jardim em frente foi pavimentada para servir de estacionamento a clientes motorizados, e a parte posterior caiu no ostracismo, depósito de inutilidades.
Esse novo status me manteve disponível aos olhos e ao deleite do público feminino durante pouco tempo e teve o seu limite no dia 22 de um maio ensolarado do ano de 2010, quando o movimento de fregueses, que já vinha escasseando, cessou de vez.
Mais uma vez, encontrei-me desabitada. Antes que me acostumasse com a minha nova fase de latência, operários silenciosos e rápidos retiraram tudo o que em mim podia ter algum valor no mercado.
Depois disso, assustada, passei a sonhar com a visita de famílias, que haveriam de chegar animadas e me fariam de novo sentir-me segura em suas mãos, como parte de seus sonhos e de seus projetos de vida.
Por duas semanas, estive encerrada a exalar a memória de tudo e de todos que por mim passaram, a vasculhar vestígios de histórias antigas, a sentir cheiros pretéritos, a ouvir vozes póstumas.
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Em algumas manhãs, quando o sol incidia mais forte e brilhante sobre a buganvília teimosa e ainda faceira, eu tinha espasmos de esperança e acreditava nas imagens fortuitas do outdoor ali fincado; esperava que uma família linda como a que ali estava exposta me trouxesse de volta ao mundo das coisas habitadas e tocadas.
Mas elas não chegaram... E também não vieram cachorros ou pássaros...
Aurane Garzedin