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Porque não se salvam as aranhas

SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro

Um bilhete é escrito com rapidez por uma mão de dedos longos e unhas cuidadosamente pintadas. Alguns anéis dourados vagalumeiam com o movimento da caneta sobre o papel ao registrar ordens precisas:

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Estarei em reunião até as13h. Cheque mais uma vez a passagem para Singapura. Ligue para marcar, por favor, uma depilação para mim no lugar de costume. Obrigada.

Depois de deixar as recomendações sobre a mesa da secretária, Alice sobe ao quarto andar do edifício onde trabalha como advogada de uma grande empresa. Após certificar-se de que os documentos estão à mão e a sua fala devidamente pronta para a reunião, ela vai ao banheiro para os últimos retoques. A roupa, a maquiagem, os

Aurane Garzedin

acessórios e até o perfume, tudo é repassado pelo seu olhar crítico que põe na mesma balança vaidade, poder, eficiência e ambição.

Alice olha para a imagem dos seus quarenta anos e aprova o resultado, com algumas restrições. Gosta de cultivar um ar inteligente e despachado de quem sabe o que quer. O jeito de olhar fixo e sério reflete, porém, certa rigidez de caráter e alguma intransigência na defesa de suas ideias, o que costuma lhe causar problemas, mas que ela tenta compensar com certa leveza nos gestos e na forma de se expressar. Abre a boca mostrando os dentes para relaxar os músculos da face e para treinar o sorriso.

Depois da reunião na empresa, que não foi exatamente um sucesso, em sua opinião, tampouco um fracasso do ponto de vista dos seus interesses, ela está cansada. Viajaria no dia seguinte para fora do país, a trabalho. Resolve que, após o almoço e depois da depilação, que detestava fazer, mas considerava um mal necessário, se permitiria um tempo livre para estar com Felipe. Combinam de encontrar-se na casa dele no final da tarde.

Há algum tempo, Felipe reclamava que só ele tinha de abrir mão da sua casa e ir para a dela, se quisessem passar o final de semana juntos. Alice reconhecia, sem confessar ao namorado, que toda vez que o visitava, apesar do aspecto limpo e arrumado da casa, vagos traços de sujidade no banheiro e na cozinha atraíam o seu olhar como se fossem moscas para o mel. Procurava, em vão, minimizar o fato de que pequeninas manchas de mofo e a aparência fosca dos metais, louças e vidros a incomodavam. Afinal, nem morava ali.

Chega mais cedo ao flat onde ele morava. Estava ansiosa com a viagem e não conseguia relaxar. Ao contrário, seu corpo

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precisava de movimento. Então, sem resistir a um impulso que parecia desafiar a sua razão, veste um short e uma camiseta e, munida de balde e esponja, começa a limpar aquele pequeno espaço como se estivesse decidida a eliminar daquelas superfícies todo o resíduo que o tempo acumulara.

Tira o pó de lugares quase inalcançáveis, vasculha o teto em busca de insetos e arrasta móveis de lugar. Dentro do guarda-roupa, encontra uma caixa de papelão fechada, em cuja tampa está escrito: FOTOGRAFIAS.

Alice pega a caixa, curiosa, mas antes que a abrisse uma pequena aranha de pernas elegantes e espaçadas sai desesperada do canto do armário onde costumava ficar. Assustada, ela levanta a mão que ainda segurava o pano de limpeza e a desce com toda a força sobre a prateleira do armário. Em seguida vem arrastando para fora o que havia pelos cantos, como se não quisesse perder daquela caça um mínimo pedaço. Com uma expressão de nojo e um quase grito, ela sacode o pano com a mão. Um minúsculo ponto preto, ou o que havia restado do que lhe pareceu um enorme inseto, caiu ao chão. A caixa continuou no mesmo lugar.

Após duas horas de muito trabalho e de se incluir na faxina, Alice está se sentindo muito bem, porém um pouco cansada. Recebe Felipe com olhos brilhantes. Ele põe na cozinha o que havia trazido para o jantar, vai ao quarto e, depois, ao banheiro. Mais tarde, saindo do banho e enxugando o cabelo, Felipe pergunta: — Amor, não encontro o meu pente. Você sabe onde está? — Aqui está ele, quase no mesmo lugar. A única coisa que fiz foi colocá-lo neste recipiente com tampa, diz ela.

Ele arruma os cabelos, em frente ao espelho, levantando uma das sobrancelhas, como invariavelmente fazia nesses

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momentos, sem perceber. Ela, atrás dele, olhando satisfeita para a superfície limpa e brilhante que refletia a imagem dos dois, pergunta: — Felipe, você não está vendo nada de diferente em sua casa? — Não. Por quê?

Ele olha para o reflexo dela no espelho sem se virar. Ela está séria. Ele recua, olha em volta e, com a toalha presa na cintura, vai até o quarto em que já estivera e depois à sala, onde deixara a mochila ao chegar. Vê o copo de água pela metade sobre a mesa. Vira-se para ela, buscando pistas, de novo, com um olhar interrogativo. — Você não consegue ver nada de diferente? — ela pergunta com um tom quase acusativo. — Não acredito que eu passei duas horas limpando, faxinando, deixando a sua casa arrumada e linda para você, e fiz tudo isso para nada?

Felipe olha em volta, ainda tentando ver os indícios do que ela falava, mas apenas diz constrangido: — Querida, imagino que você tenha trabalhado muito. Acredito mesmo nisso, mas, sinceramente, não estou vendo qualquer mudança neste infeliz apartamento.

Ela baixa os olhos, decepcionada. Ele segura os seus ombros e puxa-a para si. Ela se solta delicadamente. — Tudo bem, mas eu preciso ir para casa, depois a gente se fala — diz Alice pegando a bolsa.

Logo a seguir, sai fechando a porta. Felipe vai até o sofá e permanece ali sentado uns momentos, muito irritado. Depois, aciona o controle remoto da televisão. — Não é TOC, não é TOC — pensa Alice, enquanto dirige com rapidez, a caminho de casa. — Por que ele não viu nada?

Na sala bem decorada do seu apartamento, ela abre as janelas deixando a lua a descoberto. Sentada no sofá, fica olhando a

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luz suave refletida sobre o tapete, iluminando uma faixa de cor azul, bege e laranja, em desenhos abstratos. Depois, pega o telefone ao seu lado. — Mãe, você lembra que eu não depilava as axilas e não suportava salão de beleza? — Claro, todo mundo falava disso, era uma coisa que dava impressão de sujeira. — Você lembra por que eu fiquei fora de casa um mês, na casa de tia Marli? — Eu não aguentava a sua bagunça de adolescente. Com ela, que é mais organizada e exigente que eu, achei que você ia aprender a deixar a casa arrumada, ou pelo menos o seu quarto.

Ao ouvir isso, Alice desliga o telefone. Ele toca algumas vezes, mas ela não se mexe, deitada no sofá. Onde se escondia aquela menina quando a mulher se olhava no espelho afiando as garras para conquistar o mundo? Que batalhas haveria ela verdadeiramente vencido?

Sem sair do lugar, assiste, deitada no sofá, a um desfile imaginário de inúmeras mãos femininas que se movem no ar a dançar, à sua revelia, ali na sala, uma música sem som.

Naquela procissão fantasmagórica de mãos sem braços e sem corpo que se move dando voltas à mesa e passando diante do sofá, há mãos calejadas com unhas disformes; mãos negras e fortes; mãos magras e ossudas; mas também mãos pálidas e cansadas e mãos salpicadas de veias escuras e manchas senis. Todas elas ostentam infindáveis padrões de gestos e seus correspondentes utensílios: panos de chão, fogões, baldes, vassouras, ferros de engomar com fole e brasa, pilões, tanques, caldeirões, barras de sabão, escovas, escovões e outros mais.

Vê a si própria percorrendo um imenso sótão, entre móveis e antiguidades de família, iluminando com uma lanterna nuvens

Aurane Garzedin

de poeira e emaranhados fios de aranha. Ao tentar matar com uma vassoura um desses insetos gigantes, suas pernas tropeçam e ela cai em suas teias, de onde desperta arquejante, molhada de suor.

Pela manhã, ao tomar café na mesa pequena, mas de bom gosto, da sua moderna cozinha, Alice vê com surpresa, sob o armário na parede, um fio que brilhava ao sol, ligando-se à janela por onde a luz entrava no ambiente. Lá, em um dos extremos recônditos do fio, observa uma pequena aranha doméstica e inofensiva a trabalhar em silêncio o corpo de um mosquito já seco. Tem nojo, mas nenhuma disposição a move para afastá-la.

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