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Muros líquidos

SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro

Depois das tantas idas e vindas que constituíam o seu costumeiro itinerário da manhã, sentara-se ali, já não sabia desde quando, perdida há décadas. Daquele muro à sua frente, ela já havia esquadrinhado suas medidas, percebido seus volumes, apreciado suas cores e fixado seus mínimos detalhes.

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O muro baixo e despretensioso crescera lentamente aos seus olhos e, em vez da foto 3x4 que sempre fora, transformara-se no cartão-postal daquele dia lamacento e triste. Nada tinha de especial, mas crescera há mais ou menos dois metros de distância do hemisfério esquerdo da varanda, único local iluminado pelo sol naquela casa, parte do mundo que um dia comprara ao chegar naquela cidade.

Aquela construção lhe parecia agora um organismo incrivelmente complexo. Suas partes não eram iguais, e a homogeneidade banal do todo não resistiu ao olhar atento e cuidadoso

Aurane Garzedin

que ora lhe dedicava. Em algumas áreas, a massa de cimento que unia as pedras de arenito rosa parecia mais densa e mais escura. Em outros locais, já não se alojava certinha entre dois blocos de pedra, mas se derramava desatenta e fluida. Havia ainda alguns lugares em que a argamassa cinza se espalhava grosseiramente, espatifada, como se houvesse sido vítima de um gesto não calculado ou cheio de ira. Como boa cozinheira que era, sempre pensava: “A boa receita não garante inteiramente o produto; havia os suores e os humores”. Provavelmente, também sabiam disso os pedreiros.

Na região central daquela construção, algumas pedras se sobressaíam oferecendo sem pudores ao sol as rugosidades e as saliências da sua geometria. Levantou-se da cadeira movida por um impulso de tocá-las, como se quisesse colocá-las de volta ao alinhamento e eliminar daquela superfície mural qualquer figuração.

Olhando para ele, pensou em uma frase conhecida: “De perto, ninguém é normal”. E como que dialogando com alguém, retrucou que o mais adequado seria: “De perto, nada é igual”. Tudo bem, não havia ninguém para lhe contestar mesmo. “Ficamos de acordo, então”.

Foi em direção à pedra mais saliente, mas, ao aproximar-se, sua atenção foi fisgada para um mundo de acontecimentos estranhos e novos figurantes. Uma, duas, três... várias formigas escalavam um dos lados da pedra. Com esforço, iam chegando organizadamente, uma de cada vez. A cena se estruturava assim: de um lado, uma pequena concentração de pontos minúsculos formava uma mancha escura e frenética; do lado oposto, bem no extremo da pedra, ou à beira do precipício, uma única e solitária formiga constituía um ponto negro imóvel, do qual se destacavam apenas antenas em movimento.

SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro

À espera de novos acontecimentos, a mulher observava a solitária formiga em angustiante indecisão. Seria uma duvidosa e solitária desistência da banalidade da vida de inseto? Um gesto de desespero diante de sofrimento maior que o suportável? Quem sabe, estivesse diante de uma espécie de linchamento a um modo não humano? Estariam, então, uns a exigir a morte de outro ser de sua espécie, ou induzindo-o a isso, por atitudes transgressoras ou consideradas negativas à sobrevivência de uma vida comunitária?

Essas e outras perguntas de igual dramaticidade povoaram a mente ágil daquela mulher, a dar cores escuras aos fatos. Mas, em seguida, como se uma luz cálida redefinisse a cena, suavizando seus duros contrastes anteriores, ela cogitou, ainda que debilmente e quase a contragosto, que a solidão, o desprezo, o rechaço, a exclusão, a baixa autoestima e todos os outros sentimentos presentes em sua interpretação da cena formigueira não estavam lá, no muro. E duvidou se haveriam seus olhos escolhido, sem saber que o faziam, um único feixe de possibilidades de leitura, retirando daquele animal solitário a mexer as antenas a possibilidade de ser protagonista de outras versões mais alegres e até festivas da cena presenciada.

Ao dar a meia-volta, essa dúvida que crescia em seu adentro lhe chegou ao peito e, por fim, aos olhos, liquefazendo-se. Então, ela sentiu o peso e o volume (mas não ainda o conteúdo) da tristeza que há muito carregava incógnita, por não saber identificar-lhe as causas. Esse sentimento, como uma presença sorrateira e subterrânea, projetava sombras, como refletores ao revés, em tudo o que os seus olhos tocavam.

Seres racionais tendem a considerar realidade apenas aquilo que podem entender, e essa é a sua maior desgraça e pequenez — o perceber-se tão maior que uma formiga a escalar um

Aurane Garzedin

muro —, ela pensou. A verdadeira grandeza humana estava soterrada sob a falsa dicotomia entre observador e objeto e tudo o que supunha estar entre ele e o mundo.

Nada era sempre o mesmo. Cada olhar era uma construção feita de cimento e sentimentos; de matéria concreta e da energia associadas ao sentido que era atribuído, individual ou coletivamente, ao que era visto. Aquele muro, antes um limite ou uma separação, agora não era senão a passagem rugosa e cheia de arestas que a conduzira às profundezas dos seus porões. Quando retornou à cadeira, o céu de nuvens esparsas daquele dia de maio surgiu nítido e luminoso. Fechou os olhos sem muros. Sim, agora o via.

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