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Escola para borboletas e camaleões
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Carol o chamava de “Meu Metamorfose Ambulante”, “Meta”, ou simplesmente “Mê”. Sabia que os olhos do marido iam de castanhos a mel puro quando ele sentia desejo sexual, fome ou carência, que assumiam de verde-oliva a um verdeesperança se ele estava pouco ou muito alegre, tornavam-se azuis ao menor sinal de tristeza ou nostalgia, e negros como duas azeitonas sob efeito da raiva ou do medo.
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Para compensar a indiscrição involuntária dos seus olhos, que o deixava em estado de transparência no mundo, Erick era seletivo e poucas eram as pessoas que podiam se aproximar dele. Os óculos escuros haviam se tornado o seu escudo invisível, a tarja preta para fotos impublicáveis, a máscara precária que protegia a sua intimidade, seus sentimentos, algo que surge internamente e costuma ter a expressão e
Aurane Garzedin
publicidade controlada pelo sujeito. Erick se via privado desse direito pois possuía olhos que mudavam de cor, de acordo com o estado psicológico e de humor.
Tudo ia bem até ela trazer a gata para casa. O animal o mantinha à distância, ignorando-o completamente. Com o tempo, ele começou a nutrir uma raiva secreta pela gata, que se arrepiava, levantava o peito e mantinha uma pata no ar quando ele tentava uma brincadeirinha ou um afago. Um dia, com uma bolinha amarela nas mãos e um sorriso falso entre os lábios, ouviu a voz da mulher em tom de ironia: — Amor, seus olhos estão mais negros que o pelo de Safira…
Erick começou a se sentir como um livro aberto entre as duas. Mas a luz vermelha com a mulher se acendeu mais tarde. Estavam com amigos em um bar, já tinham tomado muitas cervejas, e uma das garçonetes, que era conhecida do grupo, sentou-se ao lado de Erick. Carol, sentada em frente, prestava atenção aos dois, mas fingia interesse na conversa da amiga ao lado. Em determinado momento, ao cruzar o seu olhar com o do marido, percebeu uma luz alaranjada que tornava os seus olhos castanhos feito mel, da mesma cor que permaneceram durante o primeiro final de semana juntos sem sair da cama. Aquele brilho dourado foi como raio em noite de tempestades e Carol foi direto ao desfiladeiro entre os seios da mulher ao lado do marido, como se ali tivesse caído a descarga elétrica ou talvez fosse ali a origem e não o destino. Com a voz um pouco alterada pelo álcool, falou para ele: — Pensava que seu olhar era mais seletivo, mas vejo que me enganei. Basta um par de melões para amarelar as suas pupilas, hein?
Não satisfeita, dirigiu-se à garçonete: — E você, mocinha, o que está fazendo aqui, não está
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trabalhando?
Daí em diante ele usava artifícios para prevenir sinais visuais que pudessem ser mal interpretados pela mulher. Foi assim que, ao ser atendido em uma emergência hospitalar por uma enfermeira muito charmosa, morena de cabelos sedosos e de saltos altos, ao ver as curvas da moça de costas para ele, começou a pensar em cenouras e alfaces. Carol o acompanhava na consulta.
Para Carol não era fácil. Temia que Erick percebesse que a sua alma era para ela um território mapeado e que os olhos multicores balizavam as ações e reações dela na vida de casal. Quando ele perdeu o emprego e acordava no meio da noite com pesadelos de que alguém invadia a sua casa, ela acolhia a criança de olhos negros até o sono vir novamente. Disfarçava a alegria quando brigavam e ele, por orgulho, fingia indiferença, mas os seus olhos, quando se encontravam, estavam de um castanho claríssimo de desejo. Daí para as pazes bastava um toque casual por baixo dos lençóis.
Se o verde custava a aparecer nos olhos de Erick, ainda que ele apresentasse um sorriso amarelo, ela se culpava pela infelicidade do marido ou o acusava por não sentir mais prazer em sua companhia. Com o tempo passou a suspeitar quando ele usava óculos escuros em casa. E quando queria fazer amor sem a luz do abajur. Brigavam cada vez mais. Preferia não ter acesso aos sótãos e catacumbas do marido, melhor seria nadar apenas na profundidade permitida entre pessoas normais, circular por espaços psicológicos sem ajuda dos olhos de metamorfose, lampiões da alma alheia.
Um dia, ao chegar em casa, encontrou Erick com a gata nas mãos. Quando ele a viu, abriu um sorriso largo, mas a Carol não passou despercebido o pânico do animal, o brilho escuro
Aurane Garzedin
do olhar de Erick...e as janelas abertas. — Oi amor, você brincando com Safira? — Acho que ela é muito sozinha, precisa sair um pouco... — É verdade, vou ter que visitar a minha mãe em Teresópolis e acho que ela vai gostar de ir comigo. — Se quiser, posso cuidar dela — disse ele, olhando pela janela para o jardim do prédio onde moravam. Naquele momento os seus olhos ficaram mais verdes do que nunca, não por mimese, mas porque esta é a cor dos seus olhos quando ele se sente alegre. Teria todo o fim de semana para si, o primeiro depois de dois anos.
Carol tinha viajado para a casa dos pais e levado Safira, aquele felino genioso e cheio de caprichos que defendia seu território com unhas e miados, sobretudo aquela janela do quarto que servia de escritório.
Erick tomou uma ducha rápida, vestiu um calção, resgatou a prancha sob um monte de malas no armário da área de serviço e saiu para surfar na praia do Arpoador. “Nossa, como passei tanto tempo sem fazer o que mais gosto?”
Ao final da tarde, concluía que a mistura olhos verdes e pele bronzeada alcançava excelente cotação no mercado de possibilidades amorosas. Tentou manter este arranjo físico durante todo o final de semana recorrendo até a imagens felizes do passado; o primeiro trenzinho que ganhou, aquele momento na piscina com os amigos, os primeiros dias com Carol... Ora, quem nunca fez isso?