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Guarde o meu lugar na fila
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Chamo-me Maristela. Tenho estatura mediana, olhos e sorriso comum. Sou baiana, e não gosto de samba. Filha do meio de uma família grande, me acostumei a ser invisível por timidez e silenciosa por excesso de autocrítica. Não tolero grandes reuniões (nem mesmo grupos de WhatsApp), não me hospedo em casa de ninguém e odeio filas — um trauma de infância.
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Maristela é uma somatória de respostas acumuladas em meu HD, que atua em dias e situações normais em conformidade com a história que me coube. Mas quando a vida exige mais, aciono a Fernanda, o meu alter ego. Ela burla a minha programação, possibilitando novos arranjos diante de situações e pessoas. Poderia chamá-la de minha Exu. Quando Fernanda assume o comando, eu falo, depois penso; o desejo é o Norte, e a liberdade é o mote de cada momento. Seduzo, se necessário, e ‘rodo a baiana’ quando a situação é insuportável. Com a ajuda
Aurane Garzedin
dela, consigo ser quase popular, administrar perfis e contatos nas redes sociais.
Ao invocar a Fernanda, imagino a sua boca grande de dentes enormes que se juntam em uma meia-lua, deixando dois vazios laterais entre eles e os lábios. Sua forma de gesticular com os braços finos e as mãos ágeis parece um jeito de embaralhar tudo sem tocar em nada. Sua bunda grande e espalhada se apoia em duas pernas, que quase bailam de tão leves e atrevidas. Ela gosta de deixar-se ir. E lá vamos nós.
Constatei que o IPVA do meu carro estava vencido, às vésperas de uma viagem. Comecei os trâmites burocráticos imediatamente e no dia seguinte cheguei ao departamento de trânsito da cidade, às seis da manhã. Para a minha surpresa, já havia uma fila grande. Às sete horas, ela era maior.
Sua forma, como toda fila nesta cidade tropical banhada pelo Atlântico, era regulada pelo astro rei. Inicialmente, formava uma linha onde o cheio e o vazio eram regulares; as pessoas, preservando uma pequena distância entre si, seguiam a sombra projetada pela cobertura do edifício. Ao final deste, fazia-se um hiato, que correspondia ao pátio cimentado sob o sol, onde ninguém aguentava permanecer. Mais adiante, a fila reaparecia acompanhando a sombra linear e estreita do poste que ficava no início do estacionamento. Nessa parte da trajetória, havia mais cheios que vazios (as pessoas ficavam mais juntas, um corpo fazendo sombra para o outro).
Suando e já prevendo o adiamento da viagem, senti os primeiros ventos de Fernanda: — O que está acontecendo, gente, a fila não anda e muitas pessoas estão passando direto? Perguntei, me abanando, meio afetada. — Normal, aqui o serviço é devagar mesmo! — disse uma
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voz feminina. — Acho que devíamos conferir se as pessoas que estão entrando direto no prédio estão sendo atendidas — insisti com a voz meio esganiçada. — Neste país, não adianta reclamar. Gente, eu tenho problemas de varizes, preciso ficar sentada. Vou deixar aqui as minhas sandálias guardando o meu lugar, viu?
Dizendo isso, a senhora gordinha de olhos espertos se deslocou sorrindo e saltitando sobre o piso quente e foi para o banco junto ao canteiro que beirava o muro. Logo seu exemplo foi seguido por duas outras mulheres que abdicaram também dos seus calçados e se sentaram à sombra dos hibiscos, com os pés nus. “Deus sabe o que faz. Às vezes é melhor tá em algum lugar assim, conhecendo pessoas, do que em casa, botando café pros outros. Não é? Eu aqui estou é descansando, minha filha.”
A cada dois minutos algum vendedor oferecia cafezinho, água ou lanches. Havia negociações. E a dinâmica interna da fila não parava de mudar. Com todos os bancos ocupados, era uma ordenação impossível de ser mapeada por quem chegava. “Onde é o fim da fila” tornou-se o mantra daquele desnorteio.
As pessoas sentadas conversavam, de olhos nos seus objetos imóveis na fila. Enquanto isso crescia a inquietação daquelas de pé. Um rapaz que trazia um violão ensacado tentava proteger o instrumento do calor, agarrando-se a ele. Um senhor, ao meu lado, que desfiava baixinho para o vizinho sua questão familiar do momento, me incluiu na conversa. — A senhora acha que um apartamento na Vitória, por menor que seja, vale mais que um em Nazaré?
Surpresa, disse apenas um “depende”. Ele insistiu, detalhando o caso do cunhado, “um boa-vida que o passara para trás em uma herança”.
Aurane Garzedin
Foi interrompido com uma leve pancada na cabeça. — Olha para onde anda, moleque, não está me vendo não?
O rapazinho, que vendia sombrinhas para o sol, pediu desculpas sem interromper a sua cantilena de vendas: “Chega de queimação, olha o câncer de pele, minha tia, olha a careca, meu tio, sombrinha a dez reais…”
Uma gota de suor me escorreu pelas costas. Ui, me sacudi levemente e decidi. — Vou ver o que está acontecendo. Por favor, amigo, guarde o meu lugar na fila — falei para o homem e em bom som para todos.
Entrei no prédio e fui até os guichês. Mandaram-me falar com o fiscal. O cara se antecipou e veio a mim perguntando qual era o meu problema, com um jeito nada simpático. Diante dele, cocei o lábio superior com o indicador e passei a mão pelo queixo, finalizando o gesto com a mão fechada, como se estivesse trazendo algo dali. Era o sinal de Fernanda, o tempo de ela entrar em cena. — Por que a fila oficial não anda e o movimento paralelo segue muito bem? O senhor pode explicar? — falei com a voz firme, as mãos na cadeira e o queixo empinado.
O fiscal disse que era impressão minha, que as pessoas já estavam agendadas. Quando ameacei confirmar esta informação com a mulher que tinha visto entrar há pouco e que estava sendo atendida, ele disse com ar conciliador: — Senhora, se acalme, diga o que precisa e vamos lhe atender agora mesmo. — Eu preciso que esta instituição funcione, que o fiscal abra os olhos e que a fila ande! É isso que quero, para poder viajar por uma estrada ruim, pagar um pedágio alto e milhares de impostos embutidos nas taxas do carro e no combustível.
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Todos agora olhavam para mim. A Fernanda começou a gostar da sua performance e moveu as pernas finas sobre os quadris. O fiscal olhou em volta e, falando baixo, convidoume ao gabinete do superintendente para agilizar a solução do “meu” problema. — Sou igual a todo mundo, não quero ser privilegiada, não aceito ser retirada da fila nem ter meu lugar nela alterado, entendeu? — Já me ofereci para resolver o “seu” problema. Ah, a senhora é uma comunista e quer fazer balbúrdia, já vi tudo. — Eu também já entendi o seu serviço: fiscalizar para que todos tenham um serviço precário, sem reclamar. E aos insatisfeitos a instituição oferece o privilégio de atender no tempo justo em troca de propina. Não é? Como é o nome dessa ideologia?
O homem, tomado de raiva, tocou o meu braço. Insistia que eu fosse ao gabinete do seu chefe, confiando que eu era um caso para um ente acima de si na hierarquia. Soltei-me rapidamente. As pessoas se aproximaram. Logo eu me vi no centro de uma pequena multidão. Veio o pânico e a vontade de encolher de volta ao meu silêncio habitual. — Peraí, dá um tempo, Maristela! — Fernanda reagiu.
Abri a bolsa, tirei o batom vermelho, passei em volta dos olhos e depois contornei uma boca imensa em volta de uma língua solta. Imantada com esta imagem, comecei a rir diante de um fiscal abobalhado e de uma plateia curiosa. — Vamos lá, minha gente, quando um problema não tem solução, a gente rebola. Eu vou ficar aqui dançando, o tempo todo, enquanto a fila estiver parada!
Senti a minha bunda mexendo e os pés inquietos. A Fernanda assumiu uma dança engraçada. Um dos rapazes que
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me olhavam com a cara divertida estendeu a mão convidando para uns passos a dois. Da porta dos fundos apareceu o cara da fila que portava o violão. A música tomou conta de todo o salão.
Imediatamente, uma equipe de funcionários pediu silêncio e comunicou que a fila seria transferida para dentro do prédio. E que em 40 minutos, no máximo, todos estaríamos atendidos.
A fila se refez, com a mesma ordem de participantes. Mas o clima era outro, não só pelo ar condicionado do salão. Todos conversavam sobre o que acontecia ali, sobre o país, sobre o mundo. As vozes estavam um tom acima e o lugar parecia energizado. Agora formávamos realmente uma “fila indiana”, um pé no rastro do outro.