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Consultório sentimental
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Elisa resolveu ir para casa mais cedo naquele dia, o ar-condicionado do escritório dera pane e estava cansada. Ela tinha pesadelos à noite, desde a sua recente separação, e nos últimos dias dormia na casa da mãe, onde sempre se sentiu protegida. Era a mais nova de cinco irmãos em uma família alegre e barulhenta, que sabia aproveitar as coisas boas da vida e evitar os problemas. Sentia-se grata por isso, mas, às vezes, culpava essa boa herança pela forma como adiava o enfrentamento de medos ocultos que a acompanhavam, sabotando a sua alegria.
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Um dos seus medos era o de espaços abertos e bem ventilados; evitava, também, lugares muito movimentados e barulhentos, com muitas pessoas e veículos circulando. Por sorte, ao pisar na calçada em frente ao escritório, logo parou um táxi, após um aceno seu. Sentou-se no banco de trás, aliviada pela temperatura fresca que poderia desfrutar até sua casa, sentindo-se mais segura e confortável naquele ambiente fechado.
Aurane Garzedin
Assim que informou o destino ao motorista, ele, que não possuía máquina de cartão, lhe perguntou se ela dispunha de dinheiro trocado.
Olhou-o surpresa, e ele, com um sorriso simpático: — Estou separado há pouco tempo da minha mulher, e o meu filho, muito chateado, não deixa um centavo em minha carteira. Menino danado! Puxou ao gênio da mãe! — completou, antes de fazer uma pausa quase imperceptível para ver se vinha alguma reação do banco de trás. E continuou, mesmo sem ela ter se manifestado: — Não fui eu quem quis a separação. A mulher, do nada, botou na cabeça que não dá mais certo. Estou perdido! Afinal, foram catorze anos juntos, um filho, uma história em comum. Brigamos sim, mas qual o casal que não tem problemas? Acho muito triste voltar para a casa da minha mãe, com quarenta anos, mas agora faço companhia a ela, já idosa — prossegue falando, olhando para ela pelo retrovisor.
Elisa fecha os olhos para desencorajá-lo a continuar por aquele terreno íntimo e experimenta uma espécie de vertigem ao sentir o carro em movimento. Mas ele continua, determinado: — Sabe que eu ainda gosto dela? Ainda não consigo desistir, mas, como foi ela quem quis se separar, fica difícil. Eu tenho para mim que esse negócio de Facebook, WhatsApp, essas coisas de agora não são boas para o casal. As amigas postam coisas e fotos que deixam as outras com inveja. As mulheres ficam exigindo demais dos maridos.
Enquanto o motorista continuava a falar, ela abriu os olhos a tempo de observar, pelo vidro dianteiro do veículo, um casal de namorados atravessando a rua, de mãos dadas. Viu que ele não diminuiu a marcha e quase gritou assustada, mas não
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chegou a dizer nada. Os jovens haviam voltado para a calçada, temerosos um pelo outro, após um desencontro de tempos e avaliações da travessia. — Olha aí, é assim que morre o casal. Ninguém mais confia em seguir junto, disse o homem, sem reduzir a marcha do veículo e tentando fazer piada. Depois, sorriu descontraído: — É brincadeira, não ia acontecer nada...
Elisa agora fingia estar adormecida, até sentir o veículo ganhar velocidade na Avenida Garibaldi. Só então abriu os olhos para apreciar melhor os ipês-rosas do canteiro central que sabia estarem floridos nessa época e que, por alguns momentos, desfilaram majestosos pela janela, em uma breve cena urbana que até o falante motorista admirou, em seu breve silêncio.
Com todos os semáforos em verde, o veículo chegou ao Rio Vermelho, bairro em que ela vive há nove anos, e diminuiu a velocidade ao passar por uma rua pavimentada com paralelepípedos. Sentindo-se refém e com olhos atentos ao percurso, Elisa sabia que devia fazer algo, sair da passividade em que se encontrava, mas não se movia. Olhou para o retrovisor buscando mais referências do seu condutor e viu duas sobrancelhas grossas a se juntar sobre dois olhos que pareciam grandes e inocentes. Um sentimento de empatia a tranquilizou. Ela própria vivia momentos dolorosos por uma separação que não envolvia filhos ou bens comuns. E sentia-se um pouco triste e amedrontada. Teve pena daquele homem, confuso e perdido, na tentativa de entender os desacertos da sua vida amorosa. — Homem não gosta de perder o que é seu. Mesmo quando faz bobagem e até quando não quer muito o relacionamento — disse o motorista, após uma breve pausa. — Acho que é por medo de ficar só.
Aurane Garzedin
— O senhor vai virar à esquerda — lembrou ela. — Mulher é mais corajosa — disse ele após frear o veículo para fazer o que ela lhe indicava.
O semblante de Elisa voltou a se contrair. Passaram ao lado do rio que dá nome ao tradicional bairro, mas que corre triste e confinado no lugar em que antes se fazia largo e espaçoso. Ela não via as suas águas, mas sentia o seu cheiro de esgoto. — Por favor, o senhor siga o rio e depois vire à esquerda — pediu, apontando para um canal de concreto, entre duas pistas. — Também, não vou negar, eu já aprontei algumas. Homem faz isso; não sei se todos, mas a maioria. E eu caí em tentação várias vezes. Não é que o sexo fosse ruim. Não, entre a gente a coisa sempre ia bem. Mesmo depois que o menino nasceu, isso não mudou muito.
Enquanto o homem falava, os olhos dele acompanhavam uma jovem que seguia pela calçada levando um enorme cão pela coleira. Elisa sentiu um frio no estômago. Percebeu-se confinada em um espaço pequeno e móvel, conduzida por um estranho, de cuja sanidade mental não tinha qualquer garantia. Tinha cara de boa gente e parecia mesmo alguém que sofria. Parecendo adivinhar-lhe os pensamentos, ele falou: — A senhora me desculpe. Estou lhe incomodando?
E continuou: — Ela era linda. Um pouco cheinha, é verdade, mas eu não ligo para isso. A gente se conheceu na porta do Colégio Central, onde ela estudava. O pai dela não queria, mas teve de aceitar, porque ela não desistiu. Eu sinto a falta dela e até das nossas brigas.
A voz dele agora soou diferente, como a de alguém prestes a chorar. Já se sentindo perto de casa, Elisa ficou mais tranquila. — O senhor pode diminuir a marcha que o meu prédio é
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logo ali, na próxima quadra.
Enquanto ele obedecia, ela continuou: — Olha, moço, não se preocupe, a separação é dolorosa, mas posso lhe garantir que a vida volta ao normal. Eu mesma estou passando por isso e, a cada dia que passa, me sinto melhor sozinha. — A senhora não pensa em voltar com o seu marido? — Não, de jeito nenhum! Fui eu quem quis me separar.
Então, com o veículo já estacionado, Elisa assistiu atônita ao motorista desabar no choro, curvado sobre o volante. Esperou por alguns instantes ele se recuperar, com o pagamento da corrida suspenso no ar, sem saber o que fazer. Depois, tocando timidamente o ombro dele, falou: — Moço, tudo é passageiro. Logo, logo, o senhor vai ficar bem, tenho certeza. Olha aqui o dinheiro, e o troco dê para seu filho, mas não brigue com ele, tá?
O homem se recompôs rapidamente, pôs a mão sobre a dela e, olhando para ela com olhos molhados, disse: — Agradeço muito o seu apoio. O que a senhora quiser, pode me chamar e estarei aqui a seu dispor. Tome aqui o meu cartão.
Puxando a mão para si rapidamente, sem olhar para ele, Elisa abriu a porta e se curvou para sair do veículo. Mas antes ouviu: — Obrigado, linda!
Elisa esperou o táxi seguir pela rua até sumir em uma esquina. Caminhou rápido mais uma quadra até o prédio onde morava sua mãe e entrou em casa com uma certeza. Precisava urgentemente comprar um carro!
Aurane Garzedin