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Sobre quatro patas há um lugar seguro

SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro

Na mais antiga lembrança que Celina tinha de si mesma, o chão sobre o qual se apoiava não era firme, mas era seguro. Ela se lembrava de ter sido levantada pela cintura e colocada sobre um tapete negro com manchas brancas, de ter ficado sentada sobre aquela textura áspera segurando algo sólido e meio rugoso, até o momento em que gritou de pavor quando sentiu o terreno se mover. Todos riram à sua volta.

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Em suas mãos, ela segurava a fotografia amarelada daquele momento que ela guardava como uma preciosa relíquia, pois era a única lembrança que tinha do pai, que partira logo depois daquele dia, e de quem nunca mais soubera. Um homem alto e magro, rosto ossudo, calças largas, camisa branca, chapéu panamá na cabeça, estava em pé junto a uma criança de rosto redondo ornado de pequenos cachos negros, vestido de cintura alta e

Aurane Garzedin

franzido. A menina sentada sobre o lombo de uma vaca segurava os chifres do animal, que olhava manso e pacientemente para a câmara, com olhos de eternidade. Compondo a foto daquele dia de festa, em volta dos dois, amigos e parentes conversavam e riam alegremente.

Agora ela entendia o amor e o respeito que tinha por animais de quatro patas, sobretudo os que derramavam leite de suas tetas, berravam o som mais profundo que já ouvira sobre o mundo, moviam-se com lentidão, comiam fragmentos de um tempo circular, batiam a cauda espantando moscas e permitiam que os pássaros e também as crianças brincassem em seu lombo.

Aos sete anos de idade, chegou a São Paulo tão assustada como a mãe, que se viu obrigada a reconstituir os prováveis passos do marido, que ali fora para arranjar trabalho.

Nos primeiros dias da chegada, mãe e filha, com os pertences reunidos em uma mala, mudaram-se de um lugar para outro, morando de favor na casa de parentes já assentados, embora precariamente, naquela cidade.

Sem nada encontrar do marido senão vagas referências, uma delas envolvendo uma viagem para Mato Grosso e, até mesmo, outra família, Celina passou a viver em casas de família, nas quais era aceita como uma extensão da mãe, desde que não ocupasse espaço, desde que não fizesse ruído, desde que se ausentasse em vida. Assim viveram as duas até a mãe alugar um quarto apertado, mas em que cabiam com mais folga as suas brincadeiras de menina.

Depois de concluir o ensino primário em bairro pobre, Celina viu suas esperanças de concluir o ginasial se desmoronarem quando a mãe perdeu o emprego e precisou dela em seus trabalhos informais. Já adolescente, ela foi vendedora em várias lojas e supermercados da periferia e, depois de outros tantos empregos,

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passou a morar com uma família rica, à qual se integrou como pôde num modo misto de conveniência e afeto, de necessidade e solidão, de ressentimento e gratidão.

Celina nunca se casou, embora tenha vivido alguns amores fracassados, alguns tristes, outros nem tanto, todos sem filhos, apegos ou lamentos que lhe impedissem outras tentativas. Quando a mãe morreu, achou que estava na hora de fazer o que sempre quis: ter a sua própria casa, em uma cidade pequena qualquer, onde teria vizinhos e flores. Também pensava em adotar um filho, desejo que não confessava a ninguém, nem a si mesma, para não ouvir de algum juiz que há muito tempo estava fora do jogo, que o seu tempo havia passado.

Com o dinheiro que economizou durante anos dormindo no emprego, e sem ter com quem gastar, Celina comprou uma passagem para uma pequena cidade na Bahia, a terra onde vivera quando criança com seus pais. A calmaria do lugar só era rompida pela feira que acontecia aos domingos, onde se vendia de tudo um pouco, como costumam ser as feiras em cidades do interior. Um dia aconteceu um bingo para reforma do coreto da praça, e ela resolveu participar para integrar-se mais às pessoas do lugar. Entre os prêmios oferecidos estava uma novilha, amarrada a uma árvore; junto a ela, um balde de água e um monte de capim.

Depois que o seu número de sorte foi pronunciado, ela não sabia o que fazer com aquele animal de pelo negro com manchas brancas que lhe foi entregue por um dos organizadores.

Celina possuía um terreno cercado, com uma casa simples, de telha-vã, e um pequeno pomar cercado e com um portão azul. Pensava em criar algumas galinhas e confeccionar peças de tricô para fazer frente às despesas da nova vida, somando-se à sua minguada aposentadoria. Considerou um bom presságio ver o animal com um enorme laço de fita no pescoço naquele pedaço

Aurane Garzedin

de chão que para ela seria a sua última morada, antes do túmulo.

Melícia, foi o nome que deu ao animal, que cresceu alimentado por ração e pelo capim que ela recolhia nos terrenos baldios da região.

Celina adorava contemplar da varanda a luz avermelhada do entardecer destacando a silhueta negra do animal, e sorria, enquanto a mão rápida, embora envelhecida, enrolava os fios em volta de uma agulha, fabricando abrigos para crianças que iam nascer.

Passados alguns meses, a novilha, sem qualquer rebeldia, passou a adiar a comida e a ficar cada vez mais tempo a enxotar moscas com a cauda, encostada na cerca junto a um mourão. Celina achou que era falta de espaço e, com uma espécie de coleira feita a quatro mãos com um sapateiro, começou a passear com ela aos finais de tarde, pelas ruas da cidade. Na primeira saída que fizeram, crianças corriam com medo, pessoas entravam em suas casas, e outras se perguntavam como podia alguém andar com um animal daquele porte, ao que ela respondia que tamanho não era o problema.

A cena se repetia ao entardecer, todos os dias, e durante quase um ano. Em algumas ruas da cidade, a vizinhança esperava uma mulher idosa de corpo arredondado, vestido estampado e tênis, acompanhada do seu animal de estimação, despontar em uma esquina e sumir na outra, até chegar a uma pequena praça. Ali, Samuel, um fotógrafo conhecido da região, tornou-se o lambe-lambe de plantão; todo dia, às cinco da tarde, registrava a mesma cena: uma criança a sorrir para o mundo, sobre o lombo do animal de quatro patas e olhos de mansidão.

Em um dia de outono, a pequena comitiva foi barrada por alguém fardado, que desceu de um veículo de repartição: — A senhora está proibida de fazer esses passeios pela

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cidade porque são uma ameaça à segurança do tráfego. — Mas aqui quase não passa carro — Celina argumentou surpresa. — A senhora deve saber, um animal deste porte oferece riscos à população. A senhora não pode sair por aí puxando uma novilha como saem à rua as pessoas com o seu cão. — Mas as pessoas estão acostumadas e tem gente que espera Melícia passar todas as tardes! — retrucou ela. — Entendo que ela seja como um filho para a senhora, mas a minha função é zelar pela segurança da população. — Mas a Melícia são quilos de mansidão, não oferece riscos, não! Parece até que ela entende os sinais de trânsito. Não suja a rua, faz tudo antes de sair de casa, garantiu Celina. — Me desculpe, mas devo proteger os interesses coletivos, disse o guarda.

Em casa, Celina chorou como há muito tempo não fazia. Depois disse para si mesma: se o animal der leite, terá uma função social; logo, será de interesse coletivo. E se os passeios forem nas primeiras horas da manhã, não haverá carros na rua nem também polícia. Ladrão, naquela cidade, quase não havia, graças da Deus, pensou ela, animada.

Conseguiu um touro de raça mestiça e boa constituição. O dono do animal, interessado no negócio que ela propôs, pagou o transporte de Melícia até a fazenda, que ficava fora da cidade, e a sua volta com a barriga cheia de vida, uma vaca, enfim, cumprindo a sina natural de fêmea: a reprodução. Em troca, Celina prometeu que doaria ao fazendeiro o bezerro, após o período de amamentação.

Depois de redobrar a ração para alimentar uma vaca recémparida e sua cria, Celina construiu sozinha um teto de palha junto ao depósito para proteger melhor o local onde ficavam os

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dois. Quando achou que estavam prontas, saíram, ela e a vaca, em nova missão. Durante dois meses seguidos, percorreram ruas da cidade ao amanhecer de cada dia. Os primeiros clientes a lhes darem atenção foram os gatos, que recebiam vasilhas de leite deixadas no portão. Depois, foram os seus donos, e Celina e sua vaca eram esperadas por mães solteiras, viúvos, madrugadores esportistas e insones de plantão.

Em um dia frio que anunciava o começo de uma nova estação, pouco depois de sair de casa, o ruído do chocalho da pequena comitiva que avançava lentamente foi bruscamente interrompido por uma camionete que vinha na direção contrária. Primeiro, uma nuvem de poeira levantou-se do piso da rua, com a manobra do carro, depois ouviu-se o canto de pneus, o ruído de freios e logo um baque surdo. Dois homens armados e de farda saltaram do veículo, deixando-o com as portas abertas e os faróis iluminando, sob a neblina, uma confusa cena invernal; uma mulher, uma vaca, sangue, patas, leite e gemidos.

Ajoelhada ao chão, Celina tentou se levantar, mas, em vez disso, cobriu com o seu corpo o da vaca, abraçando-a. Depois, gritou tentando inutilmente levantá-la, colocar de novo aquele corpo sobre quatro patas. O animal urrava agonizante.

Então, um deles tomou uma decisão. Levantou a arma, apontou para o ponto entre dois chifres, e onde dois olhos refletiam assustados as luzes do farol do veículo, e disparou, apagando-os. Em meio à neblina, via-se uma mulher curvada sobre um relevo difuso, em um solo manchado de preto, branco e vermelho.

Dias depois, na varanda de casa, com uma perna engessada e escoriações nos braços e mãos, Celina observava a cria de Melícia, correndo em saltos até o portão.

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