
3 minute read
O avesso de cada palavra
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Vejo tarde demais que deixei o melhor de mim em modo avião. E que não haverá aterrissagem, simplesmente porque não há voo. Se tivesse asas, escaparia; mas tenho quatro patas e não há tempo para rodeios. Sou uma asna mesmo. Sem carga, digo, sem bateria no celular. E encurralada neste prédio em chamas.
Advertisement
Que bizarro, vou morrer e escrevo uma carta que não será lida porque logo será cinzas como eu, nesta merda de apartamento, neste edifício perverso, sem escadas de fuga ou portas corta-fogo. É horrível saber que vou morrer acompanhada de pessoas desconhecidas, enquanto o mundo lá fora segue normal; pensar que não farei falta a você, que até desconhece que sempre foi o meu grande amor.
Por não poder ser muito em sua vida, optei por ser nada. Uma mulher religiosa não deve aceitar um homem comprometido. Mas nada salva e tudo me condena porque, ainda assim, só penso em você. Mesmo depois de tantas preces, eu vou
Aurane Garzedin
morrer, vejo que nem Deus é fiel, ele que me perdoe.
Escondi o jogo e agora quero desvirar as cartas; quero te mostrar o avesso de cada palavra dita, a energia em cada gesto evitado, a enorme paisagem por trás de cada janela fechada.
Sabe o café que não tomamos na semana passada porque eu estava atrasada para outro compromisso? Mentira. Enquanto eu me afastava subindo as escadas rolantes do shopping, sentia meu corpo descendo, na outra via, ao encontro do seu. Céu e inferno haviam trocado de lugar, alto e baixo, significados, nada fazia sentido, e eu só rezava.
Aquele dia em que nos beijamos na copa, na festa de confraternização da empresa, eu passei mal, sim, mas não foi o álcool que me levou a nocaute; ele só baixou a guarda, foi o pânico mesmo. Medo de ficar para sempre ligada naquela frequência cardíaca acelerada, sentindo o sangue chegando rápido a todas as extremidades, a pele quente querendo mais, o meu corpo em chamas. Ai, que metáfora estúpida nesta hora!
Em nosso último fim de semana juntos, nossa despedida oficial, eu mantive a altivez de quem está dando as cartas. Nos neguei tudo. Pura tática de sobrevivência, esperança de que o milagre acontecesse e virasse o leme daquele barco. Que em vez de ser eu a que afundava, fosse você a me implorar por mais carícias, tempo, trocas, tapas, sei lá o que mais. Que ao negar o que pedia, receberia em dobro, como se o jogo das demandas e as regras de mercado se aplicassem à valorização do amor ou pelo menos ao dimensionamento da sua perda.
Agora vem a parte mais difícil, não tenho nada mais a perder. Sabe aquela promoção que você tanto esperava e que não chegou? Desculpas, embora não seja dada a fanfarronice, e tenha até mais modéstia do que o nível considerado bom no mercado de trabalho, você sabe da minha competência e
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
da minha capacidade de articulação. O que você não sabe, nem eu sabia, é o tamanho e a potência da minha raiva. Aliás, acho que eu não lidei adequadamente com este sentimento. Menosprezei. Agora vejo que ele elevou ao máximo a minha capacidade de sedução. Me deixou corajosa, despudorada mesmo, e até ganhei senso de humor. Imagino que você sabe o quanto o nosso chefe é vulnerável a um elogio qualquer e às mulheres em geral. Confesso que não foram ruins as nossas poucas saídas e até me diverti escolhendo as palavras certas para puxar o seu tapete enquanto ele beijava o meu.
Sabe, o incrível é que esta parece ser a única coisa que valeu a pena. Não pelo resultado, confesso que agora tanto faz para mim que tenha perdido ou não a sua promoçãozinha. Olhando do alto desse voo despressurizado, esse gesto quase perverso me fez crescer, mesmo sentindo culpa e arrependimento. Não posso dizer o mesmo de tudo que não fiz por amor próprio, medo da crítica dos homens ou da punição divina.
Esses gestos abordados e todos os que não terei tempo de te revelar me fazem sentir pena de mim e uma vontade enorme de chorar. Tenho vontade de pedir perdão, amor, por tudo que eu não te fiz.
Aurane Garzedin