Roteiro Tia Margarete

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Personagens

Tia Margarete de Leonardo Alkmim

MARGARETE – Ex-atriz, cega, que há vários anos vive reclusa em seu apartamento na companhia de seu sobrinho adotivo. Como a maioria dos idosos, não mantém muitos laços no presente. Sem família, sem amigos. A ação se passa na ocasião da festa de seus 80 anos. Esta festa é o único pedido que já fez ao sobrinho, pois espera que seja um acerto de contas com o passado. Considera a festa como uma despedida deste passado, ou simplesmente a entrada em uma nova fase uma nova vida.

JONAS – Entre 20 e 30 anos, é um jovem amável que quer a todo custo realizar o pedido de sua tia – sua festa de aniversário. Ele mantém um mistério, que consiste na necessidade de ir a um determinado lugar, no qual é chamado por pessoas ao telefone. Apesar da insistência “deles”, ele está determinado a ir apenas após cumprir sua promessa, realizando a festa.

DIOGO – Irmão mais novo de Margarete, que tem por volta de 70 anos. Por ser homossexual, rompeu há vários anos com a irmã, por causa do preconceito dela. Promete a Jonas ir à festa, mas no dia em questão, manda um cartão dizendo que não poderá comparecer, pois nasceu sua neta – ele o parceiro criaram como filho um menino, que agora se torna pai.

DAGMAR – Ex-atriz e antiga colega de Margarete, foi contactada por Diogo para ir à festa, promete ir, mas uma forte gripe a impede. Foi uma típica coquete, linda e pouco inteligente, famosa por sua ingenuidade e por suas

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gafes memoráveis. É casada há anos com o ex-maestro e arranjador italiano Giovanni. Também está por volta dos 70 anos.

GIOVANNI – Tem mais de 80 anos, mas ainda possui um humor inteligente e o ouvido absoluto. Foi um músico respeitado, que com o passar do tempo caiu no esquecimento. É ele quem telefona a Jonas dizendo que não poderão comparecer à festa.

DIONÍSIO – Fazendeiro rico do centro-oeste. Foi um amor não curado que Margarete teve quando estava na meia-idade. Abandonou a carreira quando estava no auge, por ele não admitir que sua mulher fosse uma artista. Por causa dele Margarete se afasta completamente de seu irmão Diogo e do meio artístico. 20 anos depois, quando ele termina seu relacionamento com ela, Margarete fica absolutamente sem nada. Nessa época ela encontra Jonas, um bebê deixado na porta de sua casa. Jonas passa a ser o motivo de sua existência. Dionísio não foi convidado para a festa. Na verdade já morreu há alguns anos.

Obs: Todos os personagens serão interpretados por Jonas. Não simplesmente pelo ator que fará Jonas, mas pelo próprio, numa maneira de realizar a festa da tia à qual ninguém compareceu.

Lugar

Sala da casa de Margarete e Jonas.

Tempo

A véspera e o dia do aniversário.

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CENA 1

JONAS, um rapaz entre vinte e trinta anos, está com um telefone nas mãos, tendo à sua frente uma velha agenda e uma lista de nomes. Mais ao fundo, MARGARETE, uma senhora idosa e cega está sentada

JONAS – Ilusão, tia. Tudo pura ilusão. Acho que não adianta mais procurar. Esse Dimas do Nascimento tipo desapareceu. Já liguei pra uns 4 números mas ninguém sabe dele.

MARGARETE – É uma pena. Pena mesmo. O Dimas era muito engraçado, meio bronco como quase todo cenotécnico, sabe?

JONAS – Na verdade eu não conheço esse pessoal de teatro. Quer dizer, só a senhora.

MARGARETE – Mulherengo, safado... Cada turnê que a companhia fazia ele arrumava uma feiosa e ficava contando vantagem. O Olavo, que era um outro técnico. Ah, anota aí. Olavo Castanho. A gente precisa procurar o Olavo, outro engraçadíssimo que sabe alegrar uma festa.

JONAS – (Procura na agenda) Olavo Castanho.

MARGARETE – Quando alguém dizia que o Dimas era mulherengo, o Olavo fazia uma cara séria e dizia: De jeito nenhum, o Dimas é homem de uma só... Uma vez só. Porque depois mulher nenhuma quer saber mais dele... (Ri nostálgica) E a gente caía na risada.

JONAS – Está chamando.

MARGARETE – Pra quem você está ligando?

JONAS – (Ao telefone) Alô. Bom dia. Aqui quem está falando é o Jonas Messias. Eu sou sobrinho da Sra. Margarete Messias. Margarete Messias.

MARGARETE – Ninguém se lembra mais.

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JONAS – (Ao telefone) Tudo bem. A questão é que eu estou procurando o Sr. Olavo Castanho. Esse telefone ainda é dele? (Tempo) Ah, eu sinto muito.

MARGARETE – Ih, mais um...

JONAS – (Ao telefone) Não, nada, quer dizer, é que a minha tia e o Sr. Olavo eles, eles tinham uma relação e... (Ouve) É, eles se conheciam, tiveram uma relação assim... (Ouve) Não, não, eles se conheceram como colegas de trabalho. (Ouve) Calma, a minha tia só estava tentando entrar em contato... (Ouve) Minha senhora, não é nada disso...

MARGARETE – (Rindo) Eu e o Olavo era só o que me faltava.

JONAS – (Ao telefone) Não, a minha tia só queria reencontrar... Não, a senhora não está entendendo...

MARGARETE – Desliga, desliga. Não podemos perder tempo, o relógio está correndo.

JONAS – Desculpe... Eu sinto muito...

MARGARETE – Desliga, Jonas, desliga.

JONAS – Desculpa, eu vou desligar... (Desliga). Caramba, ela ficou puta.

MARGARETE – Jonas!

JONAS – Desculpa, tia.

MARGARETE –Tudo bem. (Ri) Deve ser isso mesmo o que ela deve estar achando de mim. Uma destruidora de casamentos de defuntos.

JONAS – Bom, esse não vai vir pra sua festa.

MARGARETE – Espero que não. Quantos confirmaram?

JONAS – Hum, por enquanto só três. O padre Gastão...

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MARGARETE – Hum...

JONAS - Tem também essa Dagmar e o marido dela

MARGARETE – Giovanni. Um maestro talentosíssimo. Ouvido absoluto. Ela era uma atriz amiga minha. Excelente... amiga. Porque como atriz... Faz muito tempo que eu não ouço falar deles. Se bem que isso é bom, porque depois de um certo estágio da carreira, a única notícia que aparece é a notinha do obituário.

JONAS – Falta ligar pra alguns, mas a maioria já...

MARGARETE – Eu sei. Povinho apressado esse.

Tempo. Ele continua olhando a agenda.

MARGARETE – Jonas.

JONAS – Ah?

MARGARETE – Obrigada, viu?

JONAS – Não tem nada que agradecer. Eu não fiz nada ainda.

MARGARETE – Você está aqui. Você se lembrou.

JONAS – Depois de tudo o que a senhora fez por mim, era o mínimo.

O telefone toca. Eles se entreolham.

MARGARETE – Será que são eles querendo que você volte?

JONAS – (Ri) Claro que não. Eles não iam telefonar. Se fosse pra me levar eles apareciam e pronto.

MARGARETE – O prazo pra você voltar é amanhã mesmo?

JONAS – Amanhã de noite. (Atende) Alô. (Ouve) Não, não é daqui não. (Ouve) Tudo bem. (Desliga) Era engano.

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MARGARETE – Tem certeza que não vai te dar problema, Jonas?

JONAS – Eu tinha o direito de sair, tia. A gente faz sua festa e depois eu vou. Ninguém vai encher o saco.

MARAGARETE – Jonas!

JONAS – Desculpa, tia.

MARGARETE – Se for te prejudicar você pode...

JONAS – De jeito nenhum! Um desejo da senhora tia! E eu vou fazer a sua festa. Dessa vez eu vou fazer, não vou decepcionar a senhora que nem da última vez, pode ficar tranqüila.

MARGARETE – Eu sei.

Tempo.

JONAS – Eu não podia ter esquecido, tia. A senhora nunca me pediu nada e eu... A senhora me deu tudo e quando... Eu não dei importância. Como é que eu posso ter esquecido?

MARGARETE – Não precisa carregar esse peso.

JONAS - No dia seguinte, quando eu cheguei e encontrei aquele bolo na mesa, a senhora desacordada... Achei que a senhora tivesse... Sozinha, meu Deus!

MARGARETE – Eu não tive coragem.

JONAS - Tia, eu nunca mais ia conseguir dormir de novo.

JONAS – Tenho que confessar que não foi por você que eu desisti.

JONAS - No fundo eu achava que a senhora não tava falando sério com essa história de limite.

MARGARETE – Eu estava. Eu estou.

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JONAS – Eu sei, hoje eu sei.

MARGARETE – Mas sozinha era meio... meio..

JONAS – Muito triste.

MARGARETE – (Ri) A tristeza já não me impressiona há tempos. Mas era meio sem sentido. Nada é mais sem sentido que uma platéia vazia.

JONAS – Amanhã eu vou fazer sua festa. Ninguém vai me impedir de fazer isso, eu prometo.

MARGARETE - A vida inteira representando pra um dramaturgo maluco que muda a trama como um bêbado irresponsável. E eu sempre me resignei ao meu papel. Mas agora não, eu não posso deixar isso caminhar para um final qualquer. É minha única chance de controlar alguma coisa. Eu tenho esse direito, eu mereço isso e só você entende como isso é importante pra mim.

JONAS – Não sei se eu entendo. Mas eu aceito.

MARGARETE – Isso basta.

JONAS – (Muda o tom) Bom, mas vamos continuar com os convites, senão não tem festa.

MARGARETE – São tão excitante esses preparativos!

JONAS - Vou ligar pro seu irmão Diogo.

MARGARETE – Ah, ele não vem.

JONAS – Conversei com ele ontem. Ficou de confirmar.

MARGARETE – Não vem.

JONAS – Seu único irmão. Pareceu gostar da idéia.

MARGARETE – Não vem.

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JONAS – Posso ligar? Posso tentar?

MARGARETE – Quase 30 anos. Fui horrível com ele. Seria muito bom, mas ele não vem.

JONAS – Ô madame uruca, a senhora me dá licença?

MARGARETE – Eu vou pro meu quarto.

JONAS – Isso. Vai descansar que amanhã isso aqui vai estar cheio de gente querendo te abraçar.

Ela sai.

JONAS (Disca) – Alô. Senhor Diogo? Aqui é o Jonas. A gente falou ontem. (Ouve) Tá tudo bem, e o senhor? (Ouve) Eu tô ligando de novo por causa... É, é sobre a festa de aniversário da sua irmã. (Ouve) Graças a Deus! O senhor não sabe como é bom ouvir isso. Ela vai ficar muito feliz. (Ouve) Claro, vai ser um prazer conhecer o senhor.

A luz vai caindo lentamente enquanto Jonas continua alegre a conversa.

Escuridão.

CENA 2

Passagem de tempo.

JONAS corre de um lado para o outro ajeitando a decoração da festa. Coloca a mesa. Ajeita flores. Pendura um enfeite de Feliz Aniversário.

Sai de cena.

Escuridão.

CENA 3

JONAS volta terminando de se arrumar. Está vestido para a festa.

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JONAS – Tudo certo, vai dar tudo certo. Agora é esperar. É só ficar calmo.

Ele caminha ansioso arrumando alguns detalhes.

JONAS – Já tá quase na hora. Calma, calma, eles confirmaram, vai dar tudo certo.

A campainha toca

JONAS olha o relógio.

JONAS – Vieram! Que bom. Graças a Deus. Que bom.

Sai de cena.

JONAS – (De fora) Boa noite. (Pausa) Ah? O quê? Ah, tá, tá. Pode deixar comigo. Obrigado.

Volta com um ramalhete de flores.

Olha-o um pouco intrigado e percebe um cartão. Lê.

JONAS – Cara Margarete. Desejo felicidades no dia de hoje, mas não poderei comparecer à sua festa. Esta madrugada nasceu minha netinha. Minhas sinceras felicidades. Parabéns. Diogo.

JONAS amassa o cartão indignado.

JONAS – Mas que droga, essa menina não tinha um outro dia pra nascer?

MARGARETE – (De fora) Já chegou alguém, Jonas?

JONAS – (Escondendo o cartão) O quê?

MARGARETE – (De fora) A campainha, quem era?

JONAS

Nada, ninguém.

MARGARETE entra. Ela já está vestida para a festa.

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MARGARETE – Como ninguém?

JONAS – Flores.

MARGARETE – Quem mandou?

JONAS – Não sei.

MARGARETE – Não tinha um cartão?

JONAS – Não.

MARGARETE - Olha aí. Deve ter.

JONAS – Não tem, já olhei.

MARGARETE – Que coisa inútil.

JONAS – Um admirador anônimo.

MARGARETE – Anônimo com certeza, mas admirador?...

JONAS – Algum romântico.

MARGARETE – Na minha idade romantismo e senilidade são sinônimos.

JONAS – A senhora não está sendo justa com quem mandou esse presente.

MARGARETE – Se eu nem sei quem é! Inútil querer fazer mistério quando o tempo das descobertas já passou.

JONAS – Alguém enigmático que achou que seria reconhecido pelo tipo de flores, um código antigo entre vocês... Ou alguém que vai aparecer daqui a pouco inesperadamente... Ou alguém descuidado, que esqueceu de colocar o cartão... Sei lá, o fato é que as flores estão aqui. Alguém pensou em você, escolheu, comprou, enviou. É um presente.

Ela suspira e sorri.

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MARGARETE – Você está certo, meu filho. Se não há tempo para as respostas, é hora de começar a aceitar as coisas sem perguntas. São lindas as flores. Dá aqui.

JONAS entrega à tia o buquê no momento em que o telefone toca. Ele olha o relógio tenso e vai atender.

JONAS – Alô.

MARGARETE – (Perdendo-se em devaneio olhando as flores) O Haroldo gostava de copos de leite...

JONAS (Ao telefone) – Ah, senhor Giovanni. Sou eu sim.

MARGARETE – Ele dizia que minha pele parecia com as pétalas dos copos de leite. Branca e misteriosa.

JONAS – (Falando mais baixo e se afastando) Desculpa, eu não entendi.

MARGARETE – Dizia sentir um pudor lascivo ao ver minha pele. Que era como profanar um objeto sagrado, puro.

JONAS – Mas é algo sério? (Tentando não ser ouvido pela tia) Porque seria muito, muito importante que vocês viessem.

MARGERETE – Dizia que jamais sentiu a tentação do pecado com morenas lambidas e devassadas pelo sol.

JONAS – Mas senhor Giovanni, uma gripe não é um impedimento...

MARGARETE – Ah, Haroldo, que idéia sutil.

JONAS – Claro. Um outro dia, claro. (Desliga)

MARGARETE – Jonas, acho que eu sei quem mandou as flores. O Haroldo.

JONAS – (Abalado) Que bom, tia.

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MARGARETE – Talvez ele apareça.

JONAS – Muito bom.

MARGARETE – Se bem que quem gostava de fazer essas surpresas era a Laura. Já te falei da Laura?

JONAS – Tia, o senhor Giovanni ligou e...

MARGARETE – Ah, não vejo a hora deles aparecerem. Ele vai tocar piano pra nós. Você vai ver como o Giovanni é um gênio. Uma coisa mágica. Não é como na igreja do padre José, que tem aquele tecladinho pavoroso.

JONAS – (Para si) O Padre José! (Corre para o telefone).

MARGARETE – Uma vez, no Teatro São Pedro - o que é mesmo que estávamos levando naquela temporada?...

Enquanto JONAS vai ao telefone, MARGARETE se serve de vinho e começa a beber.

JONAS – (Disca) Quem sabe ele trás algumas pessoas? Algum coroinha, uma beata, nessa altura até carpideira tá valendo.

MARGARETE – Era alguma coisa...

JONAS – (Ao telefone) Alô. Por favor, o padre José.

MARGARETE – Não importa. A questão é que tivemos que voltar ao palco sete vezes em uma noite.

JONAS – (Ao telefone) Não está? (Para si) Ah, então já deve estar vindo.

MARGARETE – Voltar duas ou três vezes era normal pra nós, mas sete?

JONAS – (Ao telefone) Ele falou se esse compromisso era uma festa de aniversário?

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MARGARETE – Jonas, vem cá Jonas.

JONAS – (Ao telefone) Como?

MARGARETE – Pode também ter sido o Jorge que mandou essas flores, Jonas.

JONAS – Um minuto tia. (Baixo ao telefone) Extrema-unção? A senhora deve ter se confundido. Ele tinha uma festa de aniversário hoje.

MARGARETE – O Jorge era tão distraído que uma vez a gente estava levando Antônio e Cleópatra e ele era um escravo.

JONAS – (Ao telefone) Tudo bem. Obrigado. (Desliga)

MARGARETE – Ouve essa Jonas. O Jorge tinha que ficar descalço. Mas era inverno e ele colocava umas pantufas nos bastidores. Daí ele estava distraído numa noite, alguém deu a deixa e ele não teve dúvidas, entrou em cena. De pantufas! (Ri) O Jorge era demais. Você precisava ter conhecido. Talvez ele venha aqui hoje e você vai se despregar de tanto rir.

JONAS – A senhora já está bebendo?

MARGARETE – Toma a sua taça. Vamos brindar a essas flores!

Brindam e bebem.

MARGARETE – Foi muito delicado todos eles terem se lembrado de mim depois de tanto tempo. Eles são tão animados, tão alegres. Por isso, é bom a gente já ir se aquecendo pra quando eles chegarem conseguir acompanhar o ritmo.

JONAS – Vai com calma, tia.

MARGARETE – Eu fico imaginando o que a Laura vai aprontar. Não telefonou nem nada, mas ela é assim, quer que a gente pense que ela esqueceu. Foi assim em 59 no meu aniversário de casamento com o Tadeu, meu primeiro marido. Aniversário de um ano! Pois ela convenceu o Tadeu a fingir que havia esquecido. O dia inteiro ele não falou um ai. Fiquei magoadíssima, imagina,

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um ano de casada e ele nem aí? Pois à noite, a gente fazia uma cena, uma peça francesa, eu era uma baronesa, coisa assim, e ele me dava um ramalhete de flores. Eu estava com tanta raiva que fiz a cena toda sem olhar pra cara dele. Daí ele me levantou o queixo e ao invés de flores, havia um anel de esmeraldas. Improvisou um texto dizendo que queria ficar casado comigo o resto da vida. Ele realmente cumpriu a promessa. Ficou comigo até o fim da vida... A dele pelo menos. Morreu seis meses depois.

JONAS – (Alheio) Sei.

MARGARETE – Um brinde ao Tadeu.

Bebem.

MARGARETE – Eu gostava do Tadeu. Não sei se era amor, mas ele me fazia ferver por dentro como se eu tivesse Alka Setzer nas veias.

JONAS – Eu sinto muito, tia.

MARGARETE – Na época eu também senti. Mas hoje, eu tenho a mais tranqüila consciência de que quando aquele bonde passou por cima do Tadeu, esmagou a cabeça dele e amputou meu casamento, teve uma coisa boa nisso tudo.

JONAS – Boa?

MARGARETE – Se ele não tivesse atravessado aquela rua, ia tudo ser diferente. E hoje, se eu pudesse escolher, não ia querer que ele ficasse parado na calçada esperando o bonde passar.

JONAS – Ô Tia, não fala assim. Dá esse vinho aqui.

MARGARETE – Estou falando sério. Minha vida ia acabar sendo muito diferente do que foi. Sabe? As coisas são encadeadinhas umas nas outras e quem me garante que se fosse diferente, anos depois, eu ia abrir a porta de casa e achar você enrolado naquela mantinha azul, com aquela touquinha branca cobrindo seus olhos?

JONAS – Tia...

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MARGARETE – Eu vivi muita coisa, mas minha vida inteira foi feita pra eu te achar naquele momento. Eu não mudava nada, porque aquele pacotinho azul de lã foi a coisa mais maravilhosa que alguém podia achar. Você foi meu presente.

Ela desliza sua cadeira até ele e segura suas mãos.

MARGARETE – Mas não vai chorar e estragar a minha festa, hein? (Muda de tom) Por falar nisso, que horas são?

JONAS – Quase nove.

MARGARETE – Hum... Eles estão meio atrasados. Mas também com esse trânsito! Daqui a pouco vai todo estar mundo aí. O bom de uma festa começar tarde é que não termina cedo.

Tempo. Ela está com uma excitação juvenil, em contraste com ele, que vai ficando cada vez mais soturno.

MARGARETE – É tão bom esperar por uma festa, não é? Tanto tempo que eu não sinto isso.

Tempo.

MARGARETE – Será que eles vão trazer muitos presentes?

Tempo.

MARGARETE – Você comprou bastante vinho? A pior coisa é a bebida acabar no meio.

JONAS – Tia, eu acho melhor...

MARGARETE – E você acha que o bolo vai dar pra todo mundo?

JONAS – Tia, na verdade...

A campainha toca.

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MARGARETE – (Alegre) São eles! Venceram o trânsito. Vai lá atender.

JONAS levanta-se confuso.

MARGARETE – Não, peraí. Como é que eu estou? Pareço uma jovem de oitenta anos?

JONAS – Tá ótima.

MARGARETE – Então vai. Eles já esperaram demais no engarrafamento.

JONAS vai hesitante até a porta.

JONAS (Baixo, para si) – Se forem aqueles desgraçados querendo me levar eu nem sei...

JONAS sai da visão do público.

MARGARETE se ajeita e bebe mais um pouco.

JONAS – (De fora) Recado do padre José? Tudo bem, eu já estava sabendo. Fala com ele que não tem problema.

JONAS volta.

MARGARETE – E então?

JONAS – Não era ninguém.

MARGARETE – (Ri) Ninguém? O mesmo ninguém que telefonou, o mesmo ninguém que mandou as flores? Puxa, esse ninguém é praticamente uma multidão.

JONAS – (Sorri, triste) É isso aí.

MARGARETE – Pode falar pra eles entrarem.

JONAS – Não tem ninguém, tia.

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MARGARETE – Você é um péssimo ator. Parece coisa da Laura. Quer que eu fique triste pra depois fazer todo mundo entrar gritando: surpresa! Não precisa dessa encenação toda.

JONAS – Tia, desculpa. Eu devia ter falado antes, mas aquele telefonema, aquelas flores...

MARGARETE - Bota esse pessoal todo em cena que o vinho está ótimo!

Ele não sabe o que fazer.

MARGARETE - Você é minha festa, filho. Você me prometeu essa festa, então faça acontecer!

JONAS fica parado um instante, ainda confuso, enquanto a tia bebe mais uma taça.

MARGARETE – Quem está aí com você? Hum, esse perfume... Diogo! Ah, meu Deus, você veio!... Eu falei pro Jonas que você não viria, mas ele é danado e conseguiu te arrastar, hein?

JONAS começa a caminhar pela sala, hesitante.

MARGARETE – Vem aqui, deixa eu te abraçar. Tantos anos depois, você ainda usa esse perfume horroroso?

JONAS muda seus trejeitos. Passa a ter a postura de um idoso e modos bastante afetados. Pega umas flores de um vaso e vai até ela. Raspa a garganta e muda também a voz.

DIOGO/JONAS – Coloquei especialmente pra ocasião. Em sua homenagem. Se você me quer na sua festa, então vai ter que aturar meu perfume.

Ele debruça-se na cadeira e a abraça.

MARGARETE – Hoje eu quero você do jeito que você é. Tanto tempo!

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DIOGO/JONAS – Sua festa está linda. Parabéns, Margô. Ainda posso te chamar assim, né?

MARGARETE – Claro, Diguinho.

DIOGO/JONAS – Ai, que horror, Margô. Você sabe que eu tenho urticária com esse apelido.

Ele percebe que ela está cega.

DIOGO/JONAS – Ah, meu Deus. Margô, eu não sabia.

MARGARETE – O que?

DIOGO/JONAS – Como isso aconteceu?

MARGARETE – (Passa a mão nos olhos) Ah, isso. Não foi nada, as luzes simplesmente se apagaram. Não se preocupe com isso. Eu não me preocupo.

DIOGO/JONAS – (Entrega as flores) Pra você.

MARGARETE – Obrigada.

DIOGO/JONAS – Eu queria ter trazido um presente mais exclusivo. Mas foi tudo tão de última hora.

MARGARETE - Jonas, pega aqui e coloca junto daqueles copos de leite.

JONAS muda de posição e volta à sua voz normal.

JONAS – Me dá aqui tia. Muito obrigado, senhor Diogo.

JONAS muda de novo de posição e voz.

DIOGO/JONAS – Hum... Esse rapaz parece ser muito distinto. (Cochicha) Você é impossível mesmo. Onde encontrou uma coisinha dessas na sua idade?

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MARGARETE – Numa caixa de papelão.

DIOGO/JONAS – (Ri) Vai dizer que foi presente de Papai Noel...

MARGARETE – Mais ou menos isso. Uma história antiga, de quase trinta anos.

DIOGO/JONAS – Quanto tempo, heim Margô. É inacreditável. Mas você está ótima.

MARGARETE –Sabia que também ganhei flores de um admirador secreto?

DIOGO/JONAS – Hum, imagino que ainda existam muitos.

MARGARETE – Sirva uma taça de vinho para o Diogo, Jonas.

DIOGO/JONAS – Você vivia cercada de fãs.

MARGARETE – Bons tempos.

DIOGO/JONAS – Margarete Messias, a diva do teatro! Como eu te admirava! (Muda de tom) Até que você conheceu aquele brutamontes e foi se enterrar numa fazenda.

MARGARETE – Ah, Diogo, não vamos falar disso...

DIOGO/JONAS – E a diva sumiu e virou lenda.

MARGARETE – Que bom que você está aqui. Eu não consigo acreditar que a gente tenha ficado todos estes anos... Eu preciso tanto de pedir perdão.

DIOGO/JONAS – Agora isso é passado, Margô.

MARGARETE - Você era minha família, tudo o que eu tinha, e eu não... Não consegui brigar por você.

DIOGO/JONAS – É, foi bem duro.

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MARGARETE – Eu era uma tola. Naquela época é que eu era realmente cega. Meu Deus! Trinta anos sem você só por causa de um preconceito estúpido.

DIOGO/JONAS - O importante é que o brutamontes não está mais aqui e nós estamos juntos de novo. No final, nós vencemos.

MARGARETE – Vencemos? A culpa foi minha. Tudo que aconteceu foi culpa minha.

DIOGO/JONAS – Ih, vai querer fazer a Medeia agora? (Teatral) Ai, de mim! Ai, de mim!

MARGARETE – Eu não podia me despedir sem te abraçar de novo.

DIOGO/JONAS – Despedir? Do que você está falando?

JONAS muda de posição e voz.

JONAS – Nada. A tia tá falando bobagem. Fica emocionada e começa a falar besteira.

MARGARETE – Tem razão. Não é hora de despedidas. É hora de reencontro, de falar das novidades. Me fala de você.

JONAS volta à posição de DIOGO.

DIOGO/JONAS – Você nem pode imaginar! Aconteceu uma verdadeira glória na minha vida.

MARGARETE – Sem suspense que meu coração é fraco.

DIOGO/JONAS – Essa madrugada nasceu a minha netinha.

MARGARETE – Neta? Mas você se casou?

DIOGO/JONAS – Bom, você sabe... O Tércio.

MARGARETE – Ah, claro, o Tércio.

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DIOGO/JONAS – E ele e eu, nós...

MARGARETE – Vocês engravidaram?

JONAS se levanta.

JONAS – Tia!

MARGARETE – Calma, Jonas. Foi só uma brincadeira.

JONAS – Por causa desses “brincadeiras” que vocês se afastaram.

MARGARETE – O que afasta é a estupidez das coisas sérias. (Fala na direção onde estava Diogo) Você ficou chateado, Diogo?

JONAS volta para o lugar de DIOGO.

DIOGO/JONAS – Não, claro que não. (Como se fosse para JONAS) Está tudo bem, Jonas. Não poder rir é que é o problema. E pra falar a verdade, foi mesmo muito engraçado virar mãe. (Ri) Eu até enjoei.

MARGARETE – Também não exagera, Diogo.

DIOGO/JONAS – Palavra! Enjoava trocando as fraldas. Ai, que horror, só de lembrar daquelas diarréias... Sabe que eu nunca mais consegui comer doce-de-leite?

MARGARETE – (Ri) E o Tércio não ajudava?

DIOGO/JONAS – Tentava, coitado. Pegava nas fraldas assim com a pontinha dos dedos e aquela cara de “alguém me socorra”. Daí uma noite o pirralho estava mais animadinho e mirou aquela pasta de amendoim bem no peito dele.

MARGARETE – E o que ele fez?

DIOGO/JONAS – Olhou pra mim com dignidade e disse: Nunca imaginei que um sujeito ia cagar em mim... E eu ia gostar!

MARGARETE – (Ri) Você devem ter sido dois papais-coruja.

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DIOGO/JONAS – Acho que o Pedro não pode reclamar de falta de carinho.

MARGARETE – Pedro. Meu Deus, eu nem o conheço e agora ele já tem uma filha! Como isso é possível?

DIOGO/JONAS – Agora você vai ter tempo de conhecer todo mundo.

MARGARETE – Tempo. Não vamos falar de coisas poucas. Vamos falar de fartura. Da nossa saudade. Da vida da sua netinha. Dos convidados que estão chegando. Ouviu Jonas?

JONAS – (Mudando rapidamente de lugar) O que, tia?

MARGARETE – A campainha!

A campainha não tocou.

JONAS – Campainha?

MARGARETE – Está tocando. Vai lá abrir.

JONAS – Claro, claro.

Ele volta para onde estava DIOGO.

DIOGO/JONAS – Eu vou aproveitar que seus convidados estão chegando e vou me despedir.

MARGARETE – Mas já? A festa está só começando.

DIOGO/JONAS – Eu preciso. Tenho que ir ensinar a desajeitada da mulher do Pedro a limpar o doce-de-leite... Argh. Mas ser avô é isso, é padecer no paraíso... das noras!

MARGARETE – Tenha paciência com a moça. Como ela se chama?

DIOGO/JONAS – Tem certeza que você quer essa informação?

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MARGARETE – Qual o problema?

DIOGO/JONAS – Suelen Helena.

MARGARETE – Ah... Mas o importante é ter saúde, não é?

DIOGO/JONAS – Sem saúde estou ficando eu. Já está tarde e eu vim mesmo só pra de dar os parabéns e dizer que o que passou passou, e que você é e sempre será minha irmã querida.

MARGARETE – Obrigada. Queria te dar um abraço que valesse por trinta anos.

DIOGO – Eu te amo, Margô.

MARGARETE – Me perdoa?

DIOGO – Pára com isso que vai acabar borrando a maquiagem e seus convidados não merecem menos que o rosto de uma estrela para recebê-los. Tchau. A gente se vê.

MARGARETE – Adeus.

JONAS vai até a porta e abre.

JONAS – Por favor, entrem.

JONAS interpreta os convidados, mudando a voz e os gestos.

GIOVANNI/JONAS – Bona note! Você deve ser o Jonas.

JONAS – Muito prazer, maestro.

GIOVANNI/JONAS – Esta é a mia caríssima Dagmar.

JONAS faz voz feminina.

DAGMAR/JONAS – Encantada.

JONAS

Este é Diogo, irmão da minha tia.

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DIOGO/JONAS – Muito prazer. Me desculpem, mas eu já estava de saída. Adeus.

JONAS fecha a porta.

DAGMAR/JONAS – Mas a casa de vocês é linda! E como está a Margô?

JONAS – Muito bem. Obrigado por terem vindo.

GIOVANNI/JONAS – E quem poderia recusar um convite da grande Margarete Messias?

MARGARETE – Vocês vão ficar aí a noite toda e esquecer a pobre aniversariante aqui?

JONAS procura algo pelo ambiente que possa servir como um presente.

GIOVANNI/JONAS – Margô, Margô, sempre querendo ser o centro das atenções! Estamos justamente falando de você.

JONAS encontra um grande livro.

MARGARETE – À distância, falar mal é deselegante e falar bem é desperdício. Por isso, venham falar de mim aqui perto.

JONAS avança como se fosse DAGMAR.

DAGMAR/JONAS – Margô, querida! Que alegria te encontrar novamente!

JONAS abraça MARGARETE, que lhe apalpa a cintura.

MARGARETE – Ora, mas vejam só! Você ainda tem um corpinho de menina!

JONAS pega uma fita da cesta de costura da tia e faz um laço no livro.

DAGMAR/JONAS – Gentileza sua E você está com a aparência

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MARGARETE – De uma mala extraviada.

DAGMAR/JONAS – (Ri) Não fale assim, você está linda.

MARGARETE – Ora, Dagmar, a cega aqui sou eu. Você com essa silhueta de vedete e eu com esse corpo de uma prima-dona. Que desconsagração!

GIOVANNI/JONAS – Sinto discordar, Margô. Suas medidas não estão nem de longe do tamanho do seu talento.

MARGARETE – Venha cá, seu velho mentiroso. Deixe-me dar um abraço em você.

Rapidamente, JONAS coloca uma almofada sob a camisa e vai abraçar a tia.

MARGARETE – Que prazer, Maestro. (Apalpa-lhe a barriga) Continua um amigo inveterado das belas macarronadas, hein?

GIOVANNI/JONAS – Essa barriga é uma velha amiga que faço questão de tratar bem.

JONAS rodopia tirando a almofada e pegando o livro.

DAGMAR/JONAS – Aqui está, Margô. Um presentinho simples, não vá reparar.

MARGARETE – Ultimamente só consigo reparar na mudança de tempo quando me dói o reumatismo. Essa velha cega não consegue enxergar um palmo à sua frente. (Estende a mão) O que é?

DAGMAR/JONAS – É... Um livro.

MARGARETE – (Pega o livro) Mas que maravilha! Se for ilustrado então, melhor ainda.

DAGMAR/JONAS – Mas esse é um livro... Diferente.

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MARGARETE – Em braile? Vai ser muito bom me ocupar aprendendo essa nova técnica.

DAGMAR/JONAS – É... É um álbum de fotografias.

MARGARETE – Fotografias?

GIOVANNI/JONAS – São fotos de Margarete Messias em cena!

MARGARETE – Você está brincando.

GIOVANNI/JONAS – Fizemos uma seleção com as melhores fotos de sua carreira. É um tesouro.

MARGARETE – (Passando os dedos pelas páginas) Mas não estou sentindo as fotos.

DAGMAR/JONAS – É que... Nós mandamos imprimir.

GIOVANNI/JONAS – Isso! Os fãs se recusaram a dar os originais, pois não queriam se afastar de sua imagem. Mas ficou um trabalho belíssimo. Esta, por exemplo, foi sua estréia no Teatro Odeon. Lembra-se?

MARGARETE – A Morgadinha dos Canaviais? Eu não acredito!

DAGMAR/JONAS – Você está linda nesse vestido branco.

MARGARETE – Mas meu vestido era azul.

DAGMAR/JONAS – Acho que desbotou com o tempo...

GIOVANNI/JONAS – Tem essa outra. O Morro dos Ventos Uivantes.

MARGARETE – O Jorge Pastore fazia o Heatcliff.

DAGMAR/JONAS – Ele está aqui em primeiro plano.

MARGARETE – Eu detestava o Jorge.

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GIOVANNI/JONAS – Desfocado, o canastrão está completamente desfocado.

MARGARETE – O que mais?

GIOVANNI/JONAS – O Alienista. Madame Bovary.

DAGMAR/JONAS – O Vestido de Noiva.

MARGARETE – Mas eu não fiz essa peça.

GIOVANNI/JONAS – O vestido de noiva que você está usando, ela quis dizer.

MARGARETE – Ah, claro. Na montagem de Solteira Não Fico.

DAGMAR/JONAS – Era maravilhosa!

MARGARETE – Mas a peça foi um fracasso, Dagmar. Não se lembra?

GIOVANNI/JONAS – Você estava maravilhosa, foi o que a Dagmar quis dizer.

DAGMAR/JONAS – Claro, foi isso mesmo.

GIOVANNI/JONAS – (Como se fosse para Dagmar) Agora fica quieta que você sempre foi péssima em improviso.

DAGMAR/JONAS – Ai, me deixa ser eu mesma.

GIOVANNI/JONAS – Claro que deixo, mas não me responsabilizo pela catástrofe.

DAGMAR/JONAS - Como é que eu agüento, Margô? Me diz.

MARGARETE – Ah, vocês continuam maravilhosamente implicantes! Que saudade! Que presente comovente. Quero levar esse álbum agarradinho comigo.

DAGMAR/JONAS – Mas onde você está indo?

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JONAS muda de lugar e de tom, tentando mudar também o assunto.

JONAS – A lugar nenhum. Não começa a falar bobagem, tia.

MARGARETE – O Jonas sempre fica nervoso quando eu toco no assunto, mas é inevitável, meu filho.

JONAS – Mas ainda não é hora.

MARGARETE – Exatamente, agora é hora de beber. Jonas, taças para os nossos convidados. A minha está vazia.

JONAS serve a tia e bebe também.

MARGARETE – Tantos momentos, tanta magia.

GIOVANNI/JONAS – Magia é podermos estar juntos de novo diante de Margarete Messias.

MARGARETE – E você, Giovanni? Tem feito muitos arranjos? Muitas composições?

GIOVANNI/JONAS – Só tenho arranjado doenças ultimamente. E as únicas composições que me interessam são as bulas dos remédios.

MARGARETE – Não vá me dizer que virou um hipocondríaco.

GIOVANNI/JONAS – De maneira nenhuma, os hipocondríacos têm mania de doenças. Meu caso é diferente, as doenças é que têm mania de mim.

MARGARETE – A idade é realmente uma coisa desnecessária.

DAGMAR/JONAS – E tem gente que fala que a vida começa aos quarenta.

GIOVANNI/JONAS – Só se for a vida farmacológica. E aos sessenta começa a vida hospitalar.

MARGARETE – Eu não falei que ele era engraçadíssimo, Jonas?

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JONAS muda de lugar.

JONAS – O senhor Giovanni é mesmo muito espirituoso.

Volta para o lugar de GIOVANNI.

GIOVANNI/JONAS – Um espírito de porco!

DAGMAR/JONAS – Que besteira é essa Giggio?

GIOVANNI/JONAS – Espírito de porco, claro. Palmeirense! Palestra até os últimos fios de cabelo.

MARGARETE – Não, por favor, não. Eu adoro você maestro, mas a última coisa que quero é falar de futebol no dia do meu aniversário.

GIOVANNI/JONAS – Esqueçamos o ludopédio! Fora com o nobre esporte bretão! Falemos de... De mulheres!

DAGMAR/JONAS – Ih, ele vai começar, Margô.

GIOVANNI/JONAS – Jonas, meu rapaz, vamos falar das musas, das miríades, das sílfides, safos, ninfas. Um brinde às bundas de todas elas!

DAGMAR/JONAS – Dá essa taça aqui que você vai começar a me fazer passar vergonha.

GIOVANNI/JONAS – Vergonha? Mas se Drummond fez um poema sobre a bunda! Se James Joyce fez poesia sobre os sonoros peidos de sua amada! Se Pasolini fez odes à merda! Por que eu não posso?

DAGMAR/JONAS – Porque você não é poeta. É só um velho gagá que fica babando atrás de qualquer par de pernas cheia de varizes.

MARGARETE – Deixa, Dagmar. Se eu tivesse essa sua cinturinha de pilão, quem ia ter que se preocupar era ele.

GIOVANNI/JONAS – A Margô está certa, meu chuchuzinho. Você é minha florzinha, minha plantinha carnívora.

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DAGMAR/JONAS – Sai pra lá. Não vem com essa mão cheia de dedos.

GIOVANNI/JONAS – Deixa eu tocar você, minha pianola desafinada.

DAGMAR/JONAS – Viu como é, Margô? Depois dos oitenta os homens só falam sandices.

MARGARETE – E as mulheres também, minha querida. Por isso, oitenta é o meu limite.

JONAS levanta-se.

JONAS – Mas vamos mudar de assunto.

MARGARETE - Já que você falou em tocar, porque não toca alguma coisa pra nós, Giggio?

JONAS senta-se novamente.

GIOVANNI – Ora, Margô. Já não domino nem as notas de dinheiro, quanto mais as musicais. As únicas peças que eu consigo tocar são as minhas peças de baixo. E ninguém está interessado em cuecas e ceroulas, não é verdade?

MARGARETE – Deixe a modéstia para os medíocres, maestro.

GIOVANNI/JONAS – Prefiro não submeter o velho piano a uma sessão de espancamento.

MARGARETE – Atenção senhoras e senhores, com vocês o maior talento do Teatro Odeon, o grande maestro Giovanni Tomasinni! (Pausa) Ninguém vai aplaudir?

JONAS – Tia, parece que o senhor Giovanni não está mesmo disposto.

DAGMAR/JONAS – Toca lá, Giggio.

JONAS parece se surpreender com sua própria resposta de DAGMAR e passa a discutir consigo mesmo.

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JONAS – Não, dona Dagmar. Melhor ele não tocar.

DAGMAR/JONAS - Antes tocando que contando piadas.

JONAS (Sussura) – Mas eu não sei tocar, dona.

DAGMAR/JONAS – Mas menino, quem vai tocar não é você, é ele!

JONAS – (Para si) Eu acho que isso está começando a ficar meio confuso...

MARGARETE – Por favor, maestro, nós lhe rogamos um pouco de seu talento. (Bate com a colher na taça) Que nota é essa?

Pausa.

JONAS – (Sussura) Viu, dona Dagmar? E agora, quem vai responder? Eu ou ele?

GIOVANNI/JONAS – Respondo io. É um si sustenido.

MARGARETE – (Ri) Si sustenido? Essa nota não existe, maestro.

GIOVANNI/JONAS – Como no?

MARGARETE - Você mesmo me ensinou. O si é a nota incompleta, instável, desarmônica, porque o seu sustenido é uma ilusão da partitura. Na realidade, sua posição na escala é ocupada pelo dó bemol.

DAGMAR/JONAS – (Ri) Ih... Parece que o grande maestro se enganou.

GIOVANNI/JONAS – Em música, io nunca me engano.

DAGMAR/JONAS – Não adianta, Margô. O ouvido já não é o mesmo, mas o ego continua enorme como a barriga.

GIOVANNI/JONAS - Pois pra mim, soou como um si sustenido.

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MARGARETE – (Bate de novo na taça) Talvez ele tenha razão. Esta é a noite das ilusões. Por isso, com vocês ao piano, o grande Giovanni Tomasini interpretando a sonata número 1, opus 1, em si sustenido.

JONAS aplaude batendo as mãos nas coxas, como se fossem duas pessoas.

GIOVANNI/JONAS – Vá lá, vá lá. Preparem-se, ou melhor, protejamse.

JONAS vai até o piano e dedilha algumas musiquinhas infantis.

MARGERETE – Esse Giovanni é mesmo uma pândega! Música de verdade, maestro! Algo forte. A Polonaise de Chopin, ou uma das Overtures de Wagner!

JONAS ataca o teclado produzindo acordes fortes e aleatórios. Dedilha com fúria, executa movimentos rápidos e quebra o ritmo de maneira abrupta.

MARGARETE – (Falando acima da “música”) Prokofiev enlouqueceria! Stravinsky teria delírios! Isso é modernidade! Isso é música de ruptura!

JONAS pára tão repentinamente como começou.

MARGARETE – Maestro, você consegue fazer o silêncio soar numa desarmonia vibrante! É uma composição sua?

GIOVANNI/JONAS – Experimentos, nada mais.

MARGARETE - Você é um gênio, Giovanni. Você está muito à frente do nosso tempo. Obrigada. Obrigada.

GIOVANNI/JONAS – Você é com certeza a única capaz de perceber beleza em meus desatinos musicais.

MARGARETE – Mas agora toque algo mais suave. Algo do nosso tempo.

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GIOVANNI/JONAS – Nosso tempo está além das minhas memórias. Não consigo, Margô.

MARGARETE – Por favor. Quero virar essa página da minha vida embalada pelo som do passado. Quero encontrar meu futuro nas partituras esquecidas.

JONAS – Não vai ser possível, tia.

MARGARETE – Por favor, toque. Apenas toque.

JONAS volta-se perdido para o teclado e dedilha-o suavemente. Apesar do som continuar sendo aleatório, MARGARETE fecha os olhos e parece enlevada.

O som de uma sonata vai se sobrepondo às notas desencontradas de JONAS.

MARGARETE – Nada mais é necessário. Nada é tão essencial. Esta é a resposta. O tempo eterno. O balé das notas. Os momentos, as sensações, a vida. Essa era a nossa música. Só nós dois flutuando no lago silencioso. Ele e eu éramos música. Ele e eu dançando juntos pra sempre.

JONAS – Do que a senhora está falando, tia?

MARGARETE – Não pare. Toque, apenas continue. Continue. Deixe que ele me leve, dançando. O toque, o hálito. Nossa música.

JONAS – Tia, melhor não.

MARGARETE – Continue, apenas continue. Eu não posso esquecê-lo. Ele é meu agora, ele é meu pra sempre. Ele é meu amor dionisíaco.

JONAS – Tia, a senhora prometeu nunca mais falar desse sujeito.

MARGARETE – Chhiiii... É ele. Eu posso sentir.

JONAS levanta-se, mas a música continua.

JONAS – Tia, esse cara...

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MARGARETE – Não adianta lutar contra a música. Ele está aqui com ela.

JONAS – Esse miserável não existe mais!

MARGARETE – (Suavemente) Miserável, canalha, filho-de-uma-puta... Tudo isso e muito mais. Mas é esse muito mais que ninguém entende. É esse muito mais que me pertence e que só ele pode continuar me dando. Eu o quero aqui, Jonas.

JONAS – Não, tia. Isso não!

MARGARETE – Uma vida é uma vida. Crueldade, frieza, ingratidão, tudo são apenas detalhes de uma vida. O que importa é a música que soa no vazio. Ele é meu vazio, e é minha música. Ruim ou péssimo, é ele que me preenche. Eu quero o Dionísio na minha festa de aniversário.

JONAS – Não, a senhora não quer. A senhora não pode querer quem te destruiu.

GIOVANNI/JONAS – Calma, meu jovem, a Margô não é nenhum edifício demolido.

JONAS – Esse cara foi o maior erro da minha tia.

DAGMAR/JONAS – Cuidado ao querer reparar os defeitos de alguém, porque você não sabe qual deles sustenta o castelo.

JONAS – Não, peraí, acho que eu não podia fazer vocês falarem isso.

MARGARETE – Traga-o pra mim, Jonas.

JONAS – Eu não posso fazer isso, tia!

DAGMAR/JONAS – Claro que pode. Você nos trouxe, não foi?

GIOVANNI/JONAS – O si sustenido está soando. Tudo é possível esta noite.

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JONAS – Tia, você não tem nada que reviver com esse sujeito. Isso é loucura!

DAGMAR/JONAS – Isso é amor.

GIOVANNI/JONAS – A gente tem que enfrentar nossas loucuras se quiser manter um mínimo de lucidez.

JONAS – Olha, esse assunto todo já é muito complicado e eu não preciso que vocês fiquem complicando ainda mais a minha cabeça.

GIOVANNI/JONAS – Nós sabemos que ele significou o fim da carreira da Margô. E eu, mais do que ninguém, senti isso como uma morte dentro de mim.

JONAS – Justamente. E não vou ser eu que vou trazer tudo isso de volta.

DAGMAR/JONAS – Mas se ela ainda o deseja, é porque tudo o que ela largou é menos importante que a história que eles tiveram.

JONAS – (Para si) Meu Deus, eu não posso estar discutindo comigo mesmo! E perdendo a discussão!

MARGARETE – Traga-o pra mim.

JONAS – Tia.

GIOVANNI/JONAS – Faça isso, rapaz.

DAGMAR/JONAS – Ela tem esse direito.

MARGARETE – Por favor.

JONAS – Tá certo, tá certo, são três contra um...

Tempo.

JONAS – Tudo bem. A festa é sua, pode convidar quem quiser.

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DAGMAR/JONAS – Parece que vamos ter um reencontro amoroso aqui.

GIOVANNI/JONAS – Então acho melhor irmos embora, Dagmar.

MARGARETE – Me desculpem amigos, mas vocês entendem, não é?

DAGMAR/JONAS – Claro, querida. Nunca concordei com essa sua obsessão, mas enfim...

GIOVANNI/JONAS – As obsessões devem ser respeitadas. Tiao, Margô. E parabéns mais uma vez.

MARGARETE – Obrigada. Como eu estou, Dagmar?

DAGMAR/JONAS – Linda, como sempre.

GIOVANNI/JONAS – Divina.

JONAS vai até a porta. Abre.

Tempo.

Volta para a sala.

JONAS – O senhor... pode entrar.

JONAS assume a postura de um homem rústico e decidido.

DIONÍSIO/JONAS – Muito bem, eu estou aqui. Será que eu posso saber por que?

JONAS – Minha tia, ela...

DIONÍSIO/JONAS – Margarete? Bom, isso é uma surpresa e tanto. O que você quer?

MARGARETE – Um ‘feliz aniversário’ já seria um bom começo.

DIONÍSIO/JONAS – Ah... Tá ficando mais velha, hein?

MARGARETE – Estamos, Dionísio.

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DIONÍSIO/JONAS – Eu não. Pra mim essa galopada já parou, achei que você soubesse

MARGARETE – Faz oito anos, não é?

DIONÍSIO/JONAS – É? Não sei. Pra falar a verdade, essa coisa de tempo agora... Oito, dezoito, oitenta. Na minha situação dá mesma. Tudo é uma grande eternidade, assim como um pasto vazio, sem cerca e sem sombra.

MARGARETE – Quarenta e cinco anos, Dionísio.

DIONÍSIO/JONAS – De quê?

MARGARETE – Quarenta e cinco anos que você entrou no meu camarim pela primeira vez.

DIONÍSIO/JONAS – Peraí. Vamo’ encurtar essa conversa. Se me trouxe aqui pra voltar lá do começo isso vai demorar pra burro.

MARGARETE – Está com pressa? Algum compromisso? Um encontro? Uma fazenda pra comprar?

DIONÍSIO/JONAS – Tempo não me falta, mas paciência é uma coisa que eu nunca tive. Por isso, fala logo o que você quer.

MARGARETE – Sempre tão direto, sempre indo ao ponto. Você não mudou nada. Não quer se sentar?

DIONÍSIO/JONAS – Tô bem assim.

MARGARETE – Mas eu ficaria mais confortável se você se sentasse. Por favor, me dê alguns minutos distendidos de presente de aniversário.

DIONÍSIO/JONAS – (Senta-se) Tudo bem.

Tempo.

MARGARETE – Você é um homem correto.

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DIONÍSIO/JONAS – Hum.

MARGARETE – Nunca mentiu pra mim. Você me machucou da maneira mais cruel que alguém pode machucar, mas nunca...

DIONÍSIO/JONAS – (Levanta-se) Esse Jonas foi me buscar pra eu ficar ouvindo sermão?

MARGARETE – (Sobe o tom) Nunca te acusei. Nunca te cobrei nada. Nunca joguei nada na sua cara. Nunca sequer reclamei de você. (Pausa) Não é verdade?

DIONÍSIO – É, é verdade. (Senta-se) Você é, sempre foi, uma mulher... (Procura a palavra) Uma mulher... Uma mulher!

MARGARETE – Pode ficar tranqüilo que não vai ser agora que eu vou desperdiçar meu tempo, meu curto e valioso tempo, te acusando ou pedindo explicações.

DIONÍSIO – Posso beber desse troço aqui?

MARGARETE – Você me teve completamente inteira. E eu tenho certeza que por quinze anos você também foi meu por completo. Duvido que exista plenitude maior que aquela. Mesmo hoje, seja lá onde você está, duvido que...

DIONÍSIO/JONAS – Nada se compara àquele tempo. Muito menos esse meu deserto eterno.

MARGARETE – Mas daí acabou.

DIONÍSIO/JONAS – É, Margarete, acabou. E quando acaba...

MARGARETE - Você simplesmente me botou de lado e me jogou fora. (Ele faz menção de protestar mas ela emenda rápida) Não, isso não é uma acusação. Isso é um fato. Simplesmente um fato.

DIONÍSIO/JONAS – É, acho que no fim das contas foi assim mesmo. Mas eu...

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MARGARETE - Eu não quero saber por quê. Aconteceu. Eu não estou tão gagá ao ponto de querer uma explicação tanto tempo depois.

DIONÍSIO/JONAS – Que bom, porque eu nunca consegui explicar nem pra mim.

MARGARETE – Eu abandonei tudo pra ser sua. Abandonei meu único irmão porque você não suportava conviver com um... degenerado.

DIONÍSIO/JONAS – Tá, tá. Entendi. Você quer que eu te peça perdão, não é?

MARGARETE – Não. Não. Isso nunca me passou pela cabeça. Eu fiz as minhas opções, depois você fez as suas.

DIONÍSIO/JONAS – É, foi isso. Eu só queria que você entendesse que não era porque você tinha largado tudo que eu ia te obrigar a viver com um homem que não te amava mais.

MARGARETE – Eu sempre entendi isso, é por isso que eu te amo ainda. Você foi absolutamente honesto comigo.

DIONÍSIO/JONAS – Eu não podia, entende? Não podia te dar o que eu não tinha mais. E depois de tudo, caramba! Você não merecia ficar catando farelos. Eu não ia poder fingir que gostava da mulher que eu mais amei.

MARGARETE – Você não sabe como eu te agradeço por isso.

JONAS levanta-se e muda de atitude.

JONAS – Desculpa, eu não queria me meter nesse assunto de vocês...

MARGARETE – Não percebi que você ainda estava aí, filho. Aproveita e coloca um pouco mais de vinho pra mim.

JONAS – Chega de beber, tia. Eu preciso...

MARGARETE – Você me serve o vinho, Dionísio? O Jonas não entende que só você é capaz de me inebriar e me deixar lúcida ao mesmo tempo.

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Tempo. Ela fica com a taça erguida. Jonas a serve. Ela bebe.

MARGARETE – Ah, o vinho de Dionísio... A loucura da consciência...

JONAS – Tia. Não quero estragar esse momento, mas esse Dionísio aí, esse senhor que a senhora tá agradecendo, acabou com seu futuro.

MARGARETE – Sabe? No teatro, a primeira coisa que a gente aprende é sobre os gregos. O teatro nasceu de um ritual grego, sabia?

JONAS – (Impaciente) A senhora já me falou disso, tia. Mas o que isso...

MARGARETE – E nos rituais dionisíacos sempre havia um bode pra ser sacrificado, pra expiar a culpa de todos. Mas esse Dionísio aqui – e eu sempre gostei dessa ironia – nunca teve nada a ver com o teatro. Ele não é esse bode pra eu botar a culpa, porque não me obrigou a me apaixonar.

JONAS – Mas te obrigou a largar tudo.

MARGARETE – Obrigou? Não. O Dionísio foi a pessoa mais preconceituosa e sem sensibilidade que eu já conheci, mas ele nunca...

JONAS – E a senhora ainda fala que vocês viviam flutuando em música!...

MARGARETE – A arte não precisa de artistas para existir.

JONAS – Ele te sufocou!

MARGARETE – Nossas vidas eram incompatíveis. Mas eu quis ser compatível. Eu quis.

JONAS – E depois ele se cansou e a senhora se enfurnou nessa casa.

MARGARETE – Minha paixão pelo teatro acabou, a dele por mim acabou, e eu fiquei sem nada. Simples, cruel e sem culpa.

JONAS

Mas se a senhora não tivesse ido com ele...

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MARGARETE – Você não estaria aqui comigo me fazendo essa festa de aniversário maravilhosa.

JONAS – Festa, tia? Festa? Isso tudo foi...

MARGARETE – (Incisiva) Festa sim! Minha festa. O presente que você meu deu!

JONAS – Claro, tia.

MARGARETE – Por isso, seja um bom menino e me deixa terminar a conversa com o Dionísio. Que horas são?

JONAS – Quase meia-noite.

MARGARETE – Então, não vai demorar. Deixe-nos a sós.

JONAS – Tá certo.

JONAS volta a se sentar.

MARGARETE – Mas estávamos falando?...

DIONÍSIO/JONAS – Eu já nem sei.

MARGARETE – Não importa. Eu só queria mesmo te fazer uma pergunta.

DIONÍSIO/JONAS – Qual?

MARGARETE – Você ainda ouve a música? Ou eu estou dançando sozinha esse tempo todo?

DIONÍSIO/JONAS – Eu me casei mais duas vezes. E fiz muito barulho com um monte de mulheres lindas e ordinárias. E...

MARGARETE – E...

DIONÍSIO/JONAS – E nunca mais ouvi música nenhuma.

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Ela suspira profundamente.

MARGARETE – Eu sabia que podia contar com a sua sinceridade. É isso. Era só isso.

DIONÍSIO/JONAS – Mas faz oito anos... Oito anos você disse, né? Mas faz oito anos que pra mim é só o silêncio. E esse silêncio é escuro e fundo como uma lagoa numa noite sem lua e sem vento. E lá no fundo desse silêncio, Margarete. Lá no fundo... Me desculpa, é muito difícil falar isso pra você. É que, nesse nada todo onde eu... ah... vivo. Engraçado falar assim, né? Eu posso beber mais um pouco? (Bebe) Bom, é que lá no fundo desse escuro, desse silêncio... Você começou a cantar pra mim. (Levanta-se) Tá, tá, é claro que não era você cantando, claro. Mas era a sua voz, quero dizer, lá no fundo do silêncio e do nada, eu comecei a ouvir sua voz de novo. Como naquela noite, naquele teatro, há quarenta anos.

MARGARETE – Então você ainda ouve?

DIONÍSIO/JONAS – No fundo do escuro.

MARGARETE – Você ouve.

DIONÍSIO/JONAS – Mas caramba! Eu não tenho mais direito de ouvir isso de novo. Depois de tudo o que eu fiz eu não posso querer...

MARGARETE – Silêncio, chhiii... fica quietinho.

Tempo. Volta a música bem suavemente.

DIONÍSIO/JONAS – Você me perdoa?

MARGARETE – Fica calado. Apenas ouça.

DIONÍSIO/JONAS – Margarete.

MARGARETE – Você está ouvindo?

DIONÍSIO/JONAS – Claro. Claro que eu estou. Claro que eu ouço.

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MARGARETE – Então, vem cá. Eu quero dançar.

DIONÍSIO/JONAS – Me perdoa?

MARGARETE – Pelo amor de Deus, cala essa boca e dança comigo.

JONAS vai até ela e a abraça. Logo eles começam a se movimentar pateticamente, ele dançando com ela na cadeira de rodas.

MARGARETE – Eu posso ainda te pedir um favor?

DIONÍSIO/JONAS – Claro.

MARGARETE – Agora eu tenho tudo o que precisava. E quero beber a isso. Você pega uma pequena garrafa que está ali naquele móvel pra mim?

JONAS se afasta dela. A música pára.

JONAS – A senhora não precisa fazer isso, tia.

MARGARETE – Jonas? Você ainda está aqui? Eu falei pra você me deixar sozinha. Vai pro seu quarto, menino.

JONAS – Não, eu não vou deixar a senhora...

MARGARETE – Filho, nos já falamos tanto sobre isso.

JONAS – Eu não posso.

MARGARETE – Você vai querer estragar minha festa agora? Nos combinamos essa festa de despedida e foi tudo tão perfeito. Vem cá, me dá um beijo de adeus e vai pro seu quarto.

JONAS – Não.

MARGARETE – Você tem que se arrumar. Já está passando da hora de você voltar e se apresentar, filho.

JONAS – Isso não interessa.

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MARGARETE – Não seja bobo, Jonas. Você sabe que precisa voltar.

JONAS – Eu preciso ficar com a senhora.

MARGARETE – Jonas, eles têm nosso endereço. Se você não for eles vêm te buscar.

JONAS – Mas nós podemos...

MARGARETE – O que? Fugir? Não Jonas. Nem que quiséssemos. Eu fiquei muito orgulhosa de você assumir as conseqüências do que você fez. Você é um bom menino, precisa voltar, e precisa me deixar ir embora.

JONAS – Tia...

MARGARETE – Você vai ter logo a sua liberdade. Não queira me tirar a minha. Agora me dá a garrafa.

JONAS – Não, ainda não. Eu posso convidar mais alguém. Eu trago quem você quiser. A gente pode fazer essa festa até o amanhecer.

MARGARETE – Eu estou mandando, Jonas. Me dá essa garrafa e vai pro seu quarto se arrumar.

Ele pega a garrafa e entrega a ela.

MARGARETE – (Pega a garrafa e o beija) Eu te amo.

JONAS – Adeus, tia.

MARGARETE – Adeus, filho. E não tenha medo do tempo. Ele só assusta quando a gente olha de frente, mas ele logo dá as costas, e sabe de uma coisa? É até muito engraçado vê-lo se afastar rebolando.

A música volta suave.

MARGARTE – Ah, a música! Onde está você, Dionísio?

DIONÍSIO

Sempre estive aqui.

44

MARGARETE – (Levanta a garrafa) Como diria meu amigo Giggio, vamos fazer um brinde à bunda ridícula e balançante do tempo! Ele está indo embora, ele está nos deixando em paz, você percebe?

DIONÍSIO – Desse aí eu já escapei faz oito anos.

MARGARETE – Então me leva com você.

Dançam mais um pouco, enquanto ela abre a garrafa.

DIONÍSIO – Você quer mesmo fazer isso?

MARGARETE – Eu quero nossa música no fundo da lagoa junto com você.

DIONÍSIO – Tem certeza?

MARGARETE – A peça está acabando e eu não quero ficar num teatro vazio.

DIONÍSIO – Então, vamos.

Ela bebe. Continuam a dançar. Logo ela começa a estertorar. Tem espasmos que se transformam em convulsões.

JONAS – Tia. Tia. Ah, meu Deus, eu não podia ter deixado a senhora fazer isso...

A luz vai caindo. Escuridão.

JONAS – (Ele chora) Tia! Tia!

Sons de passagem de tempo vão encobrindo a voz dele.

Luzes.

JONAS está sozinho na sala. Anda apressado juntando alguns pertences em uma mala.

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A campainha toca.

JONAS – Mas não é possível! Eu falei que ia! (Vai até a porta) Será que vocês não têm nada mais importante pra fazer que ficar atrás de mim? Será que eu sou tão perigoso assim?

Ele abre a porta e fala para fora.

JONAS – Padre? (Pausa) Ah...Infelizmente a festa já acabou. (Pausa) É, eu sei, o senhor teve que fazer uma extrema-unção, não é? De certa forma acho que foi isso que aconteceu aqui. (Pausa) Olha, o senhor me desculpe não convidar pra entrar, mas é que eu até já estou de saída. (Pega sua mala) É, eu tenho que me apresentar até a meia noite. Puxa! Já tô atrasado. O senhor pode me dar uma carona? Senão eles vão achar que eu fugi. Idiotas! (Pausa) Não, a tia está bem. Já foi dormir. (Vai saindo) Não se preocupe, agora ela está bem. Está no escuro, no silêncio. Vamos?

Sai. A luz cai lentamente. Escuridão.

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