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Um salto no caminho
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Aperna da passageira acomodada graciosamente sobre o joelho deixava o sapato de salto alto apontado para o corredor entre as cadeiras do ônibus, obstruindo a passagem e oferecendo-se à vista por um ângulo inusitado. Permaneci alguns instantes no caminho, sem decidir por um pedido de licença, como que magnetizada por aquele imponente obstáculo de aproximadamente 14 centímetros, que se projetava além de um solado brilhante, finalizado por um círculo de metal.
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Aquele objeto pontiagudo e bem conhecido de todos sempre foi, para mim, cercado de mistério e desconfiança, desde a infância. Em meu estranhamento, via no sapato de salto alto um desenho arrojado e elegante perfeitamente adequado a um objeto de decoração, destinado a ocupar um lugar privilegiado em cima de um móvel, para deleite e apreciação estética pelos seus variados materiais, formas e cores. Poderia
Aurane Garzedin
também ser uma arma mortífera, se movida em direção ao outro por um coração ferido ou uma vaidade aviltada. Mas, na visão corrente, era um objeto inofensivo, a não ser em seus efeitos psicológicos, sobretudo no sexo oposto ao que os portava.
O prestígio de um salto alto parece ser indiscutível no mundo da moda, e sua capacidade de reforçar e promover a imagem da mulher gira em torno de vários adjetivos: poder, sensualidade, decisão, elegância, leveza e tantos outros considerados bem-vindos à arte da sedução. Em minha cabeça, a me confundir, outra nuvem de palavras pulula em volta desse objeto: tortura, submissão, desconforto, desequilíbrio, insegurança e outros tantos vocábulos historicamente presentes no universo feminino.
Não há dúvidas de que os pés, esse acabamento do corpo que tem a função de nos sustentar sobre a terra e nos pôr em movimento, têm também o poder de levantar voos na imaginação erótica, em forma de fetiche. Impressionam-me muito as histórias que li sobre a atrofia dos pés femininos, tão comuns na China arcaica e tradicionalista. Recordome perfeitamente de um conto romântico no qual a jovem e amada esposa morre precocemente de uma insuficiência respiratória causada pela mobilidade apenas precária que seus minúsculos e venerados pés lhe permitiam.
Nos limites entre a infância e a adolescência, antes tão marcados, sapatos de salto alto estavam obrigatoriamente no caminho, como a primeira dança de salão ou a primeira depilação. Rejeitá-los naquele período foi uma das várias dificuldades que encontrei na afirmação de uma feminilidade desejada, mas que não se adequava às formas concebidas para sua expressão. E então, encontrar apelo estético nos sapatos
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
desprovidos de salto, em geral fabricados para pessoas idosas, tornou-se uma tarefa difícil.
Pela janela do ônibus via caminhar por uma calçada estreita e de piso irregular uma trôpega adolescente, com passos difíceis, apoiados em minúsculos pontos de contato. Sendo o corpo uma estrutura móvel e articulada destinada a funcionar em equilíbrio dinâmico, as acomodações necessárias à coluna, pés e panturrilhas para o arriscado ato de andar acima do solo só podem ser entendidas como parte do caminho preparatório para futuras recompensas. Esse caminho, embora menos penoso, não se encontra tão distante de um passado cheio de limites.
Alguém no ônibus toca a campainha avisando sua descida na próxima parada e, com os passos meio bêbados pelo veículo em movimento, finalmente, resolvi pedir passagem. Fui atendida prontamente com um rápido descruzar de pernas pela linda e simpática jovem, que me sorri com os dentes sujeitados por fios metálicos, aparentemente bem equipada para morder a fatia de prazer e de dor que lhe cabe neste mundo.
Aurane Garzedin