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La urbana Pietà
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Em uma bela cidade de um país vizinho, vaguei horas a fio, desocupando-me de ser turista de locais específicos. Gosto de não ter de ir a lugares ícones, destinos considerados obrigatórios, imagens de cartão-postal. Antes, prefiro aguçar os sentidos e deixar-me embalar por ritmos cotidianos e modos de ser distintos, em meio a novos sons, cores, texturas e cheiros. Deixo os meus olhos passear pela pele da cidade como fazem os dos amantes em encontros fortuitos, desprovidos das supostas certezas dos amores longos e das cegueiras que lhes correspondem.
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Viagens de ônibus a lugar nenhum são os meus passeios preferidos, no intuito de partilhar novas realidades urbanas. Nessas tantas horas lentas vividas nos transportes coletivos em Montevidéu, vi pessoas apressadas, tristes ou ensimesmadas; cruzei com olhares alegres, vibrantes e cheios de vida; surpreendi gentilezas e apreciei o valor de sorrisos; recuei diante de barreiras intransponíveis
Aurane Garzedin
e, quando também não fui uma, abri portas inesperadas.
Ter perdido o meu celular pouco tempo depois de estar lá contribuía para o meu estado de inteira presença, assim como me levava a tentar fixar mentalmente várias situações vividas, em lugar de fotografá-las. Enquanto aguardava um voo de conexão de volta para casa, uma cena parecia insistir em ser registrada, ainda que a posteriori.
Em uma clara manhã de verão, ao voltar de um desses itinerários aleatórios pela cidade, meu olhar ocupava-se em fazer uma espécie de inventário dos vários tipos de árvores que coloriam a cidade, outrora cinza. Além do ruído do motor do ônibus, ouvia-se uma inesquecível canção dos Beatles, escolhida pelo motorista para si naquele momento e, por tabela, para todos os passageiros, como costuma ser nos coletivos em Montevidéu.
Embalados pela música e pela marcha cadenciada do percurso com seus arranques e paradas, meus olhos cansados de verde se fixaram em uma cena urbana balançante: uma mulher profundamente adormecida em um banco em frente ao meu. Em seu colo, uma menina de não mais que dois anos também dormia profundamente, com a cabeça em seu peito e as pernas em balanço.
Era uma jovem mulher e poderia ser bela não fosse a aparência dos seus cabelos desbotados, secos, assim como a sua pele pálida e sem vida. Ou talvez fosse uma velha disfarçada, a julgar pelo peso que seu corpo parecia estar acostumado a carregar, talvez por anos a fio. Sua blusa eventualmente se abria no decote entregue ao vento, mas revelava pouco, assim como sua boca, cujos lábios, ao penderem relaxados, deixavam à mostra parte dos seus dentes gastos.
Em estado quase letárgico, o corpo oscilante e adormecido
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
da mãe, mergulhado em sonhos ou pesadelos, era apenas o vestígio de uma ausência, e não fosse a mão que mantinha a criança próxima ao peito, em um contato tênue, nada parecia ligá-lo à realidade.
Algumas tentativas de controle ocasionalmente se esboçavam: um penoso e rápido abrir de olhos sem, no entanto, nada mirar, um esforço para trazer a cabeça caída de volta ao eixo, sempre em vão.
Se, diante de mim, tudo parecia abandono e fragilidade, eu era pura tensão e expectativa à espera da hora de poder segurar a criança, caso aquela mão resvalasse, vencida, ou se erguesse embalada por um sonho ruim.
Pensava que talvez pudesse agasalhar melhor a pequenina criatura naquele dia fresco e abraçar as suas perninhas que se moviam inertes aos sacolejos do veículo.
Assim, passei um bom tempo a velar o sono das duas, já totalmente esquecida das árvores que se sucediam na janela do ônibus. Ao ver aproximar-se a minha morada provisória naquela cidade, pensei, então, em despertar a mãe e avisar-lhe que ia descer e que, a partir de então, seguiriam sozinhas.
Mas o que aconteceria? Ela emergiria de onde estava lançando para mim um olhar de brumas e voltaria ao seu mar profundo de ondas cadenciadas? Ou será que me devolveria um olhar de ódio pela ousadia de buscá-la em tão recôndito e rico mundo para tão corriqueira situação? Talvez, simplesmente, soltasse umas boas risadas zombando do meu zelo em controlar as coisas, presa a uma velha ilusão de segurança que a vida não cansava de burlar.
Com esforço, disfarcei o gesto, e a mão já quase estendida levei aos cabelos, ajeitei o cinto e me preparei para o mundo lá fora. Alguns passos adiante, com o vento soprando mais forte
Aurane Garzedin
em uma esquina à beira do Rio de la Plata, pude então respirar sem a presença das duas.
O equilíbrio instável daquela cena urbana talvez inspirasse um escultor a petrificá-la, em um gesto mais de proteção do que artístico. E, talvez, ainda assim a fizesse, tal como Michelangelo com a sua Pietà, transpor espaços e tempos, a representar a força e a delicadeza do vínculo mãe/filho, a fragilidade das fronteiras e da própria vida e outros tantos significados possíveis. A mim coube apenas esquecê-la assim que fechei a porta do apartamento... ou não...