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Este canto é meu

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Muros líquidos

Muros líquidos

SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro

Uma senhora idosa levantou-se da cama, arrastou os chinelos até a cozinha, tomou um gole de água e dois comprimidos para dormir. Fazia algumas horas que uma música frenética ecoava em toda a cidade. Em uma rede desbotada no fundo da casa ela esperou a droga fazer efeito ao som de “é o fim da nossa cama, não vale mais o drama, foi você que escolheu, agora eu vou em frente porque a fila anda, a fila anda…”

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Na casa vizinha, a mãe sacudia nervosamente o filho desperto e assustado. Às vezes, ela lhe cobria os ouvidos com as mãos em concha. Agora ela tentava cantar junto com o som eletrônico que entrava por todos os poros da casa “sai da toca, menina, quero você em minha vida …”

De vários pontos da cidade, pessoas atônitas ligaram para a delegacia de Polícia reclamando do grave e onipresente compasso que fazia tremer os alicerces em Santa Maria. Josué, o cabo de plantão, depois de repetir várias vezes “vamos averiguar o

Aurane Garzedin

caso e tomar as devidas providências”, não teve outro remédio senão levantar da cadeira e ir fazer o que dizia.

Na única praça da cidade estava estacionado um carro preto importado, com um símbolo prateado brilhando ao sol e o porta-malas aberto. Em volta dele, quatro rapazes, todos com um copo na mão, pareciam se divertir com o espanto que causavam naquela cidade pacata. Um deles, de cabelos cortados mais curtos nas laterais e rosto comprido, ao ver o homem franzino e fardado se aproximar, inflou o peito musculoso de modo que a camiseta justa ganhou em largura e perdeu em comprimento o suficiente para revelar o cabo do revólver que trazia na cintura.

A imponência do carro, a placa de fora e a arma tiveram um efeito imediato sobre a disposição do cabo, que atravessou a rua de paralelepípedos sentindo-se diminuir até chegar junto ao grupo. — Boa tarde, eu vim aqui…. — Veio por que mesmo? Não me diga que é proibido ouvir música neste fim de mundo? — Não, o que é isso, eu só queria pedir aos senhores para baixar um pouco o som. Só um pouquinho — falou com uma voz trêmula, unindo os dedos polegar e indicador.

Os homens que estavam em frente ao Bar da Praça viram os rapazes dar risadas enquanto o cabo sumia apressado, ao som do refrão da música “você está louca por mim, mas agora eu disse fim”, seguido de queixas e lamentos sobre um amor perdido e jamais esquecido. Tudo isso misturado ao forte cheiro de carne de carneiro e queijo frito.

Aquilo prometia algo mais que o tédio costumeiro, pensou Jonga, ao encher o primeiro copo, em sua mesa favorita em frente ao bar Floresta, do outro lado da praça. Ele era o

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alcoólatra mais famoso da cidade, temido pelas loucuras que fazia como motoqueiro e admirado pelo jeito diplomático e educado, que nunca perdia, em qualquer situação. Dizia-se que era filho de um homem muito rico, que tinha sido renegado pela família; o certo é que há cinco anos vivia sozinho em um sítio nos arredores de Santa Maria. Observando o grupo, Jonga serviu-se de um gole. — O som desta caixa preta furiosa tem o mesmo alcance em distância que os morteiros dos navios holandeses que atacaram Santa Maria pelo mar, em 1638. Por acaso, agora estamos sendo invadidos por terra? — Os holandeses eram um povo educado, aliás, foi uma desgraça nossa eles não terem conseguido vencer os portugueses. Esta rapaziada está mais para bárbaros invadindo a civilização — ele mesmo respondeu. — Civilização, Santa Maria? — falou o seu companheiro de tragos, um cara magro, de nariz enorme e olhos saltados, conhecido como Adelão. — Você já se esqueceu da surra que levou o Gomes, coitado, aqui na praça mesmo, só porque bebeu e resolveu andar como veio ao mundo? Acho eu que o caralho deste artefato sonoro é coisa de gente primitiva. Melhor o povo de Santa Maria começar a tocar os tambores e colocar as máscaras para afastar os inimigos. Vamos assistir, meu amigo, a uma luta tribal! — deu uma gargalhada.

As casas de Santa Maria pareciam ainda mais unidas em torno da praça. Janelas e portas fechadas, àquela hora do dia, realçavam seu ar de presépio colorido sob um céu sem nuvens. Até os cachorros que costumavam se espalhar por ali haviam sumido, e ao lado da única mesa ocupada do bar estava apenas um cão velho que desde a morte do dono tinha mania de dormir embaixo dos carros. Agora ele estava acordado, e atento.

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Duas garotas se dirigiam à “Nalvinha lanches”, uma delas com uma mochila, e, ao passarem pelo grupo, um dos rapazes as conduziu, envergonhadas, até o carro. Uma das meninas queria ir embora, mas teve que dançar. A outra agora dançava com um baixinho de pernas arqueadas, ao som da música: “Se tu não sabe o que quer, eu sei o que te dar… Para ser minha mulher, vai ter que rebolar.” — Olha, Jonga, primeiro foi o regimento de farda e agora alguém da inteligência; duas espiãs foram introduzidas no agrupamento inimigo. Estão se fazendo de difíceis, mas toparam a parada. Uma das moças tentou sair, mas foi puxada pela mão pelo rapaz que portava o revólver e que parecia ser o líder do grupo. — Os outros riam. — Cara, isso é um sequestro, não vê? A guerra só está começando. — Jonga fez uma careta.

Apertando os olhos e levantando os óculos escuros, Adelão gritou: — Olha lá, agora temos em campo a diplomacia, alguém resolveu negociar.

Um homem idoso se deslocava pela praça ao lado do coreto malcuidado, em direção ao grupo de rapazes. Talvez não se trate de negociar, mas de apelar para a piedade — pensou Jonga ao ver a cena. Porém, o ritmo seguro dos passos comandados pela bengala que avançava como um batedor apressado chamou a sua atenção. Se arrumou na cadeira curioso.

O homem chegou junto ao carro e pronunciou algumas palavras, que se perderam, abafadas pela música estrondosa. Ele não desistiu. Se aprumou e, do alto da magreza que o cinto amarrava ao meio, falou com a voz potente para todos ouvirem: — Boa tarde, amigos, eu sei que o som de vocês é muito bom. Mas, se não for incomodar, eu queria pedir para

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analisarem o volume. — E por que a gente deveria fazer isso, vovô? — Eu perdi a vista e não pude fazer nada, foi Deus quem quis. Em compensação, me deixou os ouvidos muito bons, e isso eu não posso perder. — E eu com isso? Ah, quer saber, saia daqui agora seu ceguinho gagá — falou um dos rapazes. — Vá, aproveite que estamos de bom humor — disse outro.

O homem encarou o vazio com o rosto vermelho de raiva. Levantou a bengala do chão e andou com ela apontada para frente. O conjunto ganhou uma velocidade inesperada até o fundo do carro. Um dos rapazes, surpreso, ainda tentou detê-lo, inutilmente. A bengala desceu firme sobre a caixa de som, deixando-a muda e arruinada.

Quase no mesmo instante, ouviu-se um estampido e depois um baque. O velho homem caiu ao solo, como um pacote de ossos desconjuntados, e ali ficou. Imóvel. A bengala atirada ao longe, os olhos abertos a enxergar o nada, uma perna para o lado e um fio de sangue escorrendo pela testa até o chão.

Os rapazes do grupo pareciam paralisados. As portas foram se abrindo aqui e ali. O agressor olhou em volta, sentindo o silêncio pesado ao seu redor, e em seguida, o vozerio de homens e mulheres que chegavam de todos os lados da praça. — O que fizeram com seu João, seus desgraçados?

Alguém com um porrete na mão, gritava: — Não deixem os marginais fugirem, acabou a festa!

O rapaz forte empunhou a arma e com os olhos meio esbugalhados mantinha as pessoas do lugar à distância, enquanto seus companheiros moviam-se rápido até o carro. Ele foi o último a entrar no veículo, que arrancou em disparada, com o porta-malas aberto, pela via principal, deixando atrás

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de si um rastro de poeira. Jonga e o amigo se surpreenderam ao ver que iam em direção ao mar, e não à rodovia. — Esta rapaziada tá mais pra animal em busca de fêmea. Parecem pássaros em busca de acasalamento. Mas acham que é a potência, e não o canto mesmo que cativa as bichinhas. — Sei não, às vezes o cara tem tudo, mas sente falta de emoção...

Jonga colocou a mão na boca, mas não conseguiu conter uma tosse velha. Depois ficaram calados, observando o movimento dos grupos que se formavam na praça. Mais de vinte homens em quatro carros partiram em direção à rodovia. Na saída da cidade montaram uma barricada.

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