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Coletivo 042

SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro

Com licença, diz o rapaz, acomodando-se no ônibus, ao lado de Michele. “Conseguir lugar sentado esse horário não é fácil”, diz ela, sorrindo, como se o conhecesse, pois sempre o via entrar no ônibus naquele horário. Ele concorda, mas diante dos lábios cor de rosa da moça fica em silêncio. Arruma a mochila no colo. O ônibus segue por uma ladeira comprida com a marcha de força acionada. Ela mantém o celular nas mãos de dedos longos e unhas azuis; a do indicador tem uma flor desenhada. Gil não consegue desviar os olhos dela. Um freio brusco faz cair o aparelho no assento entre os dois. Ele o recupera com rapidez e, ao fazê-lo, traz consigo a ponta do vestido florido dela. Uma coxa muito branca aparece na atmosfera azulada do veículo. “Epa”, diz ele, constrangido, e o celular vai ao chão. “Pode deixar, eu mesma pego”, diz ela, inclinando o corpo em direção ao piso do ônibus. Ele se levanta, deixando a busca dela mais livre. Naquela posição, vê os cabelos

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Aurane Garzedin

pintados de loiro escorrendo pelos lados do pescoço, e as costas tatuadas, que o vestido não cobria. Ao voltar-se à posição vertical, Michele encontra a mochila pesada dele no meio do caminho. “Ai, caramba!”, ela solta um grito. Todos olham para Gil. O ônibus para e ele se dirige com passos rápidos até a porta. Desce em uma parada que não é a sua. D. Janete, ao chegar à casa onde morava com a família, contou para uma das irmãs: — Um rapaz alto, bem moreno, bonito, mas com os cabelos grandes assanhados, sentou-se no ônibus ao lado de uma moça que estava à minha frente, tipo uma falsa loura, do cabelo alisado, sabe? Vi eles conversando e ela sorrindo para ele. Era bonitinha, ela, embora meio gordinha, cadeiruda. Sabe? Tinha as unhas enormes, eu vi pois não soltava o celular. Como todo jovem hoje, né? Ele parecia encolhido, e ela ocupava a cadeira toda em um vestido florido e muito curto. Provavelmente por isso que ele olhava tanto para ela. Como ela não percebeu? Para mim, ela sabia e estava provocando-o. Não sei o que aconteceu, mas eu vi que o vestido dela se levantou e ela falou alguma coisa. Fez que se assustou. O ônibus deu um freio, péssimo esse motorista, merecia uma queixa, mas quem tem tempo pra reclamar de tanta coisa errada? Daí o celular dela caiu no chão e ele tentou pegar. Mas ela foi mais rápida e apanhou o aparelho. Ele a agrediu com algo escondido na mochila e saiu correndo para a porta dos fundos. É assim, ninguém está mais a salvo nesses transportes, é tanta coisa que acontece…

Gil, ao sair do ônibus quase correndo, preferiu ir andando para a casa de um amigo em vez de tomar uma segunda condução até em casa. Precisava de tempo para digerir o que acontecera. E enquanto tomavam uma cerveja, ele não

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parava de falar: — Fazia muito calor e as janelas do ônibus estavam emperradas. Eu estava em pé, como sempre, naquele horário. Um pouco adiante, vejo ela. Os cabelos pareciam mais louros e mais lisos. Diferentes. O passageiro ao seu lado se ergueu e eu me adiantei. Sentei com a mochila no colo e olhei para ela. Ela me sorriu e comentou alguma coisa. É ainda mais bonita do que eu pensava! Sempre a via no ônibus e nunca pude me aproximar. Tem que ser agora, pensei. Sentia a perna dela quase tocando a minha, o tecido macio e bem colorido. Não me ocorria o que lhe dizer, o ônibus parecia bem barulhento e ela não parava de olhar o celular. Via as suas mãos teclando, talvez estivesse falando com o namorado. De repente, o ônibus freou e o aparelho caiu entre nós dois, no banco. Eu o peguei e, não sei como, o vestido veio junto. Imagine o susto que ela levou. E eu, com que cara fiquei? Soltei o celular, que caiu ao chão. Ela se abaixou para procurá-lo, dizendo alguma coisa que eu nem entendi. Resolvi ficar em pé para facilitar a busca. Mas o pior aconteceu: quando ela se levantou, bateu a cabeça na garrafa de vidro com água polarizada que eu levava na mochila. Soltou um grito e todos olharam para mim no ônibus. Que vexame, eu quis sumir! Desci na primeira parada e andei até em casa. Não tenho sorte com as mulheres.

Michele, a moça do vestido colorido que todos os dias pegava o ônibus 042, neste momento, ainda se deslocava pela cidade. Hoje, excepcionalmente, em vez de descer na esquina da Rua Bela Vista com a Napoli, seguiu até o Terminal e de lá pegou outra condução até o Bar do Anísio, para um happy hour com as amigas. Mas não conseguiu esperar para falar pessoalmente e ligou para uma delas. — Oi, amiga, tudo bem? Estou no caminho, viu? Mas

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preciso te falar: Sabe aquele moreno alto e bonito que eu te falei que sempre encontrava no 042, quando voltava do trabalho? A gente nunca conversou, mas tinha uns olhares... enfim, hoje rolou um encontro. — Nossa, que legal! — Pois é, quando ele se sentou eu fiquei toda animada e pensei: É hoje! Falei com ele alguma coisa, para puxar conversa, mas ele não disse nada. Eu sorri e ele só me olhou. E acho que é tímido, ou não estava em um bom dia, sei lá. Daí o meu chefe começou a mandar mensagens, que saco! Não entende quando acaba o expediente. O rapaz continuava calado, mas eu sentia que me olhava. Uma freada brusca do ônibus e o meu celular caiu no assento, entre nós dois. Daí ele foi rápido e pegou o aparelho. E então, amiga, sei lá se foi de propósito ou não, a sua mão levantou o meu vestido e quase me deixou nua! Imagina! Tomei um susto, claro! E sabe o que ele disse? Nada! Apenas falou um “Epa”. Sequer pediu desculpas, e ainda deixou o celular cair no chão. Eu, na hora, me abaixei para pegá-lo. E quando me levantei, bati a cabeça em sua mochila. Caramba, soltei um grito! Era uma garrafa de vidro! E o cara não teve nenhuma reação, você acredita? Ficou me olhando, com uma cara de bobo por trás de sua enorme mochila. Por sorte não aconteceu nada grave. Mas, poxa, o encanto acabou! O príncipe encantado virou sapo e desapareceu. Saltou. Quando vi, já não estava mais. E não era a parada dele. Isso eu sei.

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