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Cronograma amoroso
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Eles não se conheciam, mas ocupavam cadeiras vizinhas em um aeroporto, esperando um voo para um mesmo destino. Sem olhares ou cumprimentos, os dois passageiros avizinharam-se por meia hora, imersos em lagos internos e naturezas particulares, até o breve sorriso de Marta aparecer para Pedro junto a uma pergunta casual.
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As duas horas seguintes quase não foram percebidas e, ao final da viagem, eles haviam feito pontes e preparado o terreno para explorações mútuas. Durante um ano, tantas e tão apreciadas foram as incursões íntimas que, um ano depois, Pedro e Marta se casaram, em uma igreja simples, à frente de poucas pessoas, em uma cerimônia rápida como lhes convinha.
Usaram o dinheiro da festa para uma viagem de lua de mel em praias do Nordeste, por duas longas e inesquecíveis semanas, e se dedicaram com entusiasmo a explorar os próprios corpos até o primeiro choro de Alan, hoje com cinco anos bem
Aurane Garzedin
alimentados e bem cuidados.
Marta não tinha planejado ser a estudante grávida que despertava o olhar crítico dos professores e a simpatia das colegas. Tampouco lhe agradava estar sempre pedindo prazos, justificando atrasos e distribuindo simpatia para colher certa tolerância com suas atrapalhações e com as dificuldades de quem havia dado um passo maior que a perna.
Depois de casados, Pedro se dividiu entre os estudos e a administração da padaria do pai. A cada pão que saía do forno, via minguar a sua alegria, enquanto se mantinha em níveis mínimos o reservatório de suas expectativas de consumo e de aventuras.
Seu pai, já idoso, relutava em deixar o negócio que sustentava a família desde que aqui chegara, jovem aprendiz em país estranho, trabalhando de domingo a domingo com um tio, a troco, inicialmente, apenas de casa e comida. Depois de se estabelecer com uma parte no negócio, tendo economizado o bastante para abrir a sua própria empresa, ele fez da manutenção da vida a sua serventia. Seus filhos também nasceram para assegurar os próximos membros da família. Para ele, isso só não bastava para quem nasceu rico ou para loucos e artistas, uma categoria de gente que se gabava de mal conhecer.
Em um dia de sábado, Pedro, ao fazer a barba, deparou-se no espelho com um rosto moreno cansado e aproximou-se para apreciar melhor. Bem sobre a testa, viu horrorizado um saliente fio branco destacando-se na cabeleira negra que sempre lhe rendera elogios. Considerando isso um prenúncio, naquela noite saiu com amigos e não voltou para casa.
Marta ficou com Alan, amaldiçoando a dor de coluna que a incomodava nos fins de semana, culpando aquele trabalho no shopping, ao qual dedicava todo o seu dia, desde que tivera de deixar o curso de Arquitetura por falta de recursos para
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pagar a faculdade.
Ela acordou de madrugada com a ausência do marido no lado da cama e imaginou há quanto tempo estava a sonhar sem companhia. Com esforço, levantou-se e apanhou o celular em busca de uma mensagem dele. Mas em lugar disso encontrou algumas fotos de Pedro nas redes sociais. Atônita, voltou à cama e ali ficou a olhar o teto, sem saber o que pensar, com a sensação de estar em plena queda livre, enquanto o dia amanhecia.
Olhou em volta para aquele quarto atulhado de objetos, e ele lhe pareceu vazio e desabitado. Sentia-se uma linha articulada e dolorida sobre um colchão macio, conectando um turbilhão de pensamentos e sensações desencontrados a duas pernas curtas, agora imóveis, porque não queriam obedecer ou por não haver ordens claras.
Depois de algum tempo, deixou que seus pés a levassem até a janela. Já era dia e ela ficou olhando o movimento leve do trânsito lá embaixo, a contar os carros vermelhos que apareciam. Era assim que brincava com sua irmã na infância. Enquanto isso, desejos esquecidos nos porões da inconsciência subiam sem pressa escadas imaginárias, libertos. Ela sorriu.
Algumas horas antes, Pedro estava em uma praia da cidade. Há quanto tempo não via o sol nascer assim sobre o mar! Sentia-se radiante na companhia de dois amigos e uma linda jovem que conhecera, seguindo o ritmo daquela frenética noite em um bar, depois num dancing. Eram todos jovens e sorriam. Um deles registrou aquele momento em várias situações: os amigos todos juntos, brindando; Pedro e a menina, sozinhos; depois, Pedro, a menina e o beijo. E de pronto compartilhou!
“Bebi demais, peguei pesado”, pensou Pedro ao acordar com uma brutal dor de cabeça em uma cama de um quarto desconhecido, ao lado de uma jovem adormecida, de quem ele
Aurane Garzedin
quase nada sabia. Depois de vomitar, olhou em seu celular a mensagem escrita, mas não enviada. Aliviado, tomou uma rápida chuveirada e pegou um táxi para casa. Ao contrário da alegria que experimentara no dia anterior, sentia-se pesado.
Olhou o relógio, que marcava 17h, e se apressou em subir as escadas do edifício em que vivia no segundo andar. Antes de abrir, tocou a campainha da porta. Mas teve de usar a própria chave para conferir o silêncio onde esperava encontrar mulher e filho.
Na sala, sobre a mesa, estava um bilhete escrito à mão com um batom rosa encarnado:
Pedro,
Há muito tempo vinha economizando para comprar a nossa casa, mas tinha vontade de conhecer o Rio; também queria ouvir sinos de igreja em algum lugar, tomando sorvete de biquíni. O Alan adorou a ideia de ficar um tempo com os meus pais.
Marta
Ele não acreditou e chamou a mulher várias vezes ao celular, antes de correr para a casa dos pais dela, onde pensou encontrá-la. Ainda no táxi, recebeu uma fotomensagem: uma gaiola aberta, um pássaro voando para longe e um texto: O sonho, o amor liberta.
Chegando ao apartamento dos sogros, foi recebido por Alan com um sorriso. — Pai, a mãe me disse que precisou viajar, e eu vou ficar aqui e com você também, mas é por um tempinho.
Ele mal ouviu e perguntou: — Cadê ela?
Encontraram-se no aeroporto. Marta carregava uma mala apenas e estava vestida de modo simples, com sandália baixa e nenhuma maquiagem. Sentia-se imbuída de coragem, mas não se enganava; a liberdade que ansiava precisou do aval de um gesto correspondente de Pedro. Há muito tempo sua vontade
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vinha ganhando terreno para o desejo, a praticidade para a sua criatividade, e a segurança para o amor; tudo sob o reino abstrato do medo, sentimento que se instalara desde que o conhecera, desde que sentiu o imenso prazer em viver que a ele atribuía, e que não queria perder. — Me perdoa, por favor — ele falou de várias maneiras.
Ela apenas olhava para ele, impassível. Queria culpá-lo, mas não conseguia vê-lo inteiramente como algoz, seu marido traidor. Não sabia quem traía quando os sonhos se perdiam, se era aquele que agia ou quem apenas esperava. — Não se culpe, eu preciso ir, meu voo já teve sua última chamada.
A reação fria de Marta doeu mais em Pedro que a fúria esperada. Dirigiu sem rumo pelas ruas da cidade, com a imagem dela em sua mente e cuspindo palavras velhas e termos usados por seu pai em alguma ocasião, por esportistas em seus vestiários, pelos homens traídos. Com certeza, a vadia tinha outro, a disfarçada, a santa puta, a vagabunda!
Depois, em casa, derramou lágrimas quentes e constrangidas de quem descobre que, quando se foi, a festa não acabou, o jogo sem ele continuou e, pior, o time ganhou.
No dia seguinte, Pedro não voltou à padaria. Foi à praia fazer surf, esporte que sempre fizera desde adolescente. Nenhum dinheiro compraria o prazer de pegar ondas frias nas primeiras horas da manhã e depois voltar para casa com cheiro de mar. Vendeu o terreno que tinha na ilha de Itaparica e passou a dar instruções de mergulho e aulas de natação em uma praia da cidade, depois de um quase rompimento com o pai, que, inconformado, continuava a questioná-lo sobre o futuro, a idade, a segurança da família. Também passou a brincar com Alan e a desfrutar mais da sua companhia.
Aurane Garzedin
Marta falava com o filho quase todos os dias e mandava fotos. Andou por algumas praias do Sul e depois foi passar um tempo com uma tia no Rio, onde fez aulas avulsas de artes, ioga e começou a praticar meditação. Decidiu que, quando voltasse para casa, iria fazer um novo vestibular para o curso de Artes Visuais, ainda que para custear os estudos tivesse de voltar a trabalhar no shopping.
Agora, três meses depois que a mulher se fora e há sete anos do dia em que se conheceram, Pedro estava sentado na sala do aeroporto, em frente ao desembarque doméstico, esperando o retorno de Marta. Aproximando o rosto ansioso ao do filho sorridente, afastou o braço e clicou os dois. Depois, escreveu sobre a foto que postou do celular: “Eu e Alan, ansiosos, esperando você”.
Antes disso, ele havia recebido de Marta uma foto da obra de um artista mexicano, cujo título ela traduzira: “Até encontrar outra Schwalbe amarela”. O artista havia andado com uma motoneta dessa marca durante três meses pela Alemanha, buscando outra da mesma marca e cor. Quando encontrou, registrou a imagem das duas juntas. Mais que a fotografia final, a obra era também ou, sobretudo, o próprio processo de busca, explicou ela.
O avião pousou no pátio e, dentro dele, ainda na poltrona, antes de a aeronave parar completamente, Marta abriu um sorriso para o homem e o menino na foto, que lhe mandam beijos com as mãos.