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Passaporte para leveza
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Tinha quarenta anos e nunca havia feito uma viagem de férias sozinha. Uma grave crise conjugal a fez sair da zona de conforto e arriscar a dor ou o deleite da própria companhia. Agora, ela voltava para casa sentindo-se mais confiante e com melhor disposição para enfrentar a vida, que nunca é fácil, como lhe dizia a mãe.
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O avião sobrevoava o território brasileiro há uma hora, mas ela nem se dava conta, imersa na leitura de um romance de época. No momento, seguia atentamente uma carroça no século XIII, na qual viajava um barbeiro a curar, pela fé ou pela sorte, almas e corpos enfermos. Na poltrona ao seu lado, um homem moreno claro, magro, calvo e com ar circunspecto bebia vagarosamente a cerveja servida pela aeromoça, como se cada gole lhe ajudasse a deixar os próprios pensamentos e os músculos no modo pausa. Antes de acompanhar o barbeiro nas páginas do livro, as mãos daquele homem, com pelos bem distribuídos, haviam
Aurane Garzedin
chamado a atenção de Lívia.
A viagem transcorria normalmente, e os passos firmes da tripulação jovem e elegante que circulava pelo corredor em serviço de bordo pareciam evocar um terreno firme e seguro, fazendo-a esquecer que estavam a muitos pés de altura do chão. De repente, PLIM! — O aviso de apertar cintos. Lívia tirou os olhos da página para mirar em torno de si.
Viu um casal sentado em uma fileira de cadeiras próximas, que se tocava com as mãos suadas, mal disfarçando a excitação, marinheiros de primeiro voo e na atividade reprodutiva, ela a ostentar uma redonda barriga, e ele, uns olhos assustados. Ao lado deles, um rapaz alto, de rosto e mãos finas segurava uma revista dedicada a pessoas bem-sucedidas, informando-se sobre o que pensava e fazia uma artista, bela, magra e rica, que mostrava um sorriso de dentes bem brancos e alinhados, em foto de página inteira. Antes de voltar ao livro, ela ouviu, sem querer, a voz monótona de uma senhora idosa que conversava com alguém sobre a neta que comprava demasiado, que era mais vaidosa do que lhe parecia adequado à sua idade e como isso afetava sua vida naquele momento.
O aviso luminoso acendeu novamente — APERTAR CINTOS! —, seguido de mensagem de voz — TURBULÊNCIA!
Pouco tempo depois, um estremecimento sacudiu a todos de um lado para o outro, e a aeronave, como se estivesse percorrendo uma estrada com grandes buracos, começou a movimentar-se aos saltos, deixando todos em silencioso alerta.
Uma nova sucessão de movimentos mais bruscos e seu livro caiu ao chão. O ambiente se tornou tenso, exclamações se ouviam enquanto mãos procuravam agarrar-se nos assentos. Rezas e pedidos mudos encheram o espaço interno da aeronave,
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
que não parava de balançar. Lívia se sentia inteiramente viva e totalmente presente naquele ambiente estreito e comprido, entre asas, entre nuvens. Como se toda a sua história estivesse em suspensão, segurava o ar no pulmão com medo de que ele lhe saísse como último suspiro.
O avião embicou, em movimento para frente e para baixo, uma manobra perigosa que provocou a queda de objetos e gritos dos passageiros. Ela ouviu os gritos da mulher grávida em toda a sua perplexidade repetir: “Mi amor, mi amor!...”. A mesinha de sua poltrona, onde antes estava o livro, evitava agora que seu corpo se elevasse. Sentiu uma vertigem, e seu coração parecia haver se deslocado em direção à boca. Com olhos fechados, agarrou a mão do homem ao seu lado, ainda gelada da cerveja que antes tomava e que se esparramara no chão.
Ele apertou firme os dedos dela e abriu mais os olhos como a saudar alguém com quem vai se viver a eternidade de um destino comum e agora tão provável — uma moradia grande e espaçosa no fundo do mar. Ela se perguntava se haveria tempo em sua oração para algum verbo do tipo redimir, justificar, esclarecer ou algo próprio de se usar em ritos de passagem. Mas não lhe ocorria nenhum pensamento importante, digno de ser registrado na hora da morte de alguém. Não lhe vinham retrospectivas, uma espécie de filme da vida em alta velocidade, conforme ouvira em relatos que falavam de um quase fim; tampouco sentiu que ainda havia algo imprescindível a ser feito, como lhe ocorrera anos atrás, quando pensou que vivia o seu último dia.
Novas chacoalhadas, e a aeronave pareceu se estabilizar na altura, mas não no equilíbrio, e a agonia de todos permanecia, agora sob a forma de um silêncio abismal, cada minuto parecendo horas. Sentindo-se prestes a deixar a vida, ela imaginou seus dois
Aurane Garzedin
filhos já adultos e todas as pessoas que amava alheios ao que ali acontecia, ocupados com suas agendas diárias. Aquela cápsula que mantinha os passageiros apartados do mundo, agora desgovernada no céu, pareceu-lhe uma antessala da morte, sem recepcionista ou alguém que requeresse dos presentes qualquer registro ou inscrição.
Uma raiva impotente surgiu diante da impressão de absoluta insignificância e anonimato, o que a fez pensar que a sensação de morrer poderia ser pior que a morte em si. E então, como quem se pendura no único galho disponível em uma trajetória de queda livre, ela se agarrou ao pescoço daquele desconhecido. E o beijou. Sem tempo para falas ou explicações, ele correspondeu à sua companheira de viagem. Assim, de olhos fechados, cabeças e mãos juntas, eles permaneceram mesmo quando os movimentos bruscos da aeronave começaram a se espaçar.
Uma voz anunciou o pouso próximo. Lívia sentia-se uma outra mulher. Muita coisa havia sido eliminada da sua vida em apenas poucos minutos. Havia apenas o desejo, aquela mão, que ela ainda segurava, e que, depois veio a saber, pertencia a Alex, um homem gentil, solitário e muito calado, que naquele dia sobrevoava um país desconhecido.