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Uma nova cosmologia
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Foi num sábado, ao meio-dia, à vista de todos, em plena praça. Ela gritava a todos os pulmões. As palavras se deslocavam como fragmentos soltos de uma construção, em dias de tempestade. Xingamentos e expressões chulas voavam como pedras desencaixadas de um muro que ela própria construíra.
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Os vazamentos continuavam a se suceder também por gestos inusitados: ela levava as mãos aos cabelos, mexia as cadeiras, dava voltas em torno de si, apresentando um sorriso desvairado e quase selvagem de fêmea no cio, em pleno exercício de sua natureza. Os cabelos, agora soltos e eriçados, se elevavam acima da cabeça morena, desgalhados, e se desmanchavam em ondas negras a se chocar nos ombros, braços e pescoço, ao ritmo de suas gargalhadas.
Desarvorava-se. Destituía-se de raízes, abdicando de qualquer parcela de terreno firme. Refazia o caminho traçado pelo medo, desconstruindo
Aurane Garzedin
cada trecho. De lugares mais difíceis, saíam restos de infância incrustados de meias-verdades. Alguns lamentos que haviam se solidificado ameaçavam desfazer-se em pequenos gemidos, enquanto ela dançava freneticamente, agitando aquele lugar pacato.
Algumas pessoas haviam interrompido sua marcha rumo a algum lugar para se juntarem em um círculo curioso. Com os olhares presos em cada movimento daquela mulher, a assistência, masculina em sua maioria, esperava sem saber o quê, imobilizada por um impulso ancestral, biológico ou cultural, que não se preocupava em desafiar.
Caíam-lhe pelos braços as alças da blusa. Sob ela, suas carnes tremulavam, e os dois seios se alternavam em idas e vindas, desencontrados. Ouvem-se assovios e palmas. Ela abre os braços e parece convidar o mundo para o seu espetáculo particular.
De repente, a plateia atônita se divide entre o delírio e o desconcerto. Ela, de pronto, havia tirado a blusa, expondo os seios, e em seu colo, entre os dois mamilos, assinaladas por duas setas, estava escrito, em letras garrafais, as palavras vistas por todos: ALIMENTO O MUNDO!
Certa tensão se fez, aumentando a necessidade de ar. Exclamações e gritos dos presentes, agora em número bem maior, vindos de ruas próximas até onde os rumores haviam alcançado. As flores do tecido eram manchas de cor em movimentos líquidos, ao som que só ela escutava, enquanto as suas pernas se ocupavam em apoiar as ancas, ora para um lado, ora para o outro.
Em sua dança louca, ela começou a abaixar a saia, primeiro bem devagar, como se lhe fosse custar a vida revelar aquela verdade conhecida por todos, porém negada, escondida,
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
esquecida e aviltada. Seus olhos se fecharam por um momento, sentindo-se fraca para tão grande tarefa, como provavelmente um dia se sentiu quem revelou que o Sol não girava em torno da Terra.
Tomou coragem e, tirando do ventre toda a sua força e dele também toda a roupa, fez a sua saia resvalar pelas pernas, expondo a outra metade do corpo. Acima da virilha negra e escura como uma mata virgem, para ela apontava uma seta; e, para ausentar dúvidas, uma frase sobre a pele morena dizia:
DOU ORIGEM AO MUNDO!
Antes, ela estivera em uma delegacia de polícia, onde fora denunciar o homem com quem se casara há doze anos, com o qual tivera dois filhos e a quem não podia mais amar. Com o corpo machucado, havia se apresentado com um casaco por cima de um vestido rasgado, a atestar mais uma violência que sofrera, dessa vez por ter saído de casa com uma roupa que lhe parecera confortável para o calor sufocante daquele dia, mas cujo decote ele não aprovara.
Dois guardas se aproximavam do local com passos firmes, decididos a proteger a moral e a manter a ordem. Um tremor percorreu o corpo da mulher ao pensar em voltar para aquela repartição policial, para outra vez se sentir humilhada e desprestigiada.
Dane-se, não mais suportava uma cidadania de segunda classe, um tutorado perverso que lhe concedia uma liberdade vigiada, controlada e reduzida, mesmo sobre o seu corpo, seus anseios e sua libido. Partira para o confronto direto, escancarando-se ao mundo, não por ideologia, feminismo ou outros -ismos, mas porque aquele foi o caminho curto percorrido naquele dia pelas suas emoções reprimidas, fustigadas até a exaustão. Talvez soubesse, inconscientemente,
Aurane Garzedin
que um gesto era melhor que qualquer argumento para transformar algo dentro de si.
Abordaram-na os guardas, e ela levantou as mãos rendendo-se, vitoriosa, e exibindo um olhar límpido de quem fez uma faxina, removendo as algemas que lhe impediam de apropriar-se de seu corpo, seus sonhos e sua importância.
A plateia, então silenciosa, assistiu à mulher ser levada, não sem certa surpresa e um visível constrangimento. Ao caminhar em direção à viatura, ela, de cabeça erguida, deu as costas ao público, oferecendo a última cena aos seus celulares e, depois, ao mundo, levada pelas redes sociais. A foto mostraria uma mulher morena, de corpo nu, algemada, entre dois policiais. Em suas costas se lia: ESTE CORPO É MEU!
Em uma sala aquecida, em outro lugar do mundo, uma mulher jovem, com o corpo tatuado e um piercing na língua, ao ver aquela imagem postada por uma amiga, se pergunta vagamente: “E alguém ainda duvida disso?”
Simultaneamente, em outra parte do planeta, uma mulher de olhos negros e com um lenço na cabeça cobrindo os longos cabelos enrubesceu ao ver a curiosa cena, antes de fechar apressadamente o computador e voltar à cozinha.