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E Luzia acordou diferente
SOBRE QUATRO PATAS há um lugar seguro
Álvaro desceu do ambiente refrigerado do ônibus e foi logo envolvido pelo calor daquela pequena cidade que ele bem conhecia, mas pouco se lembrava, desde que tinha estado ali, há duas décadas. Procurou um táxi em frente à rodoviária, e só havia um motorista adormecido dentro do carro parado. Resolveu ir andando até a casa da sua mãe.
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Mais tarde, sentado à mesa da cozinha e mais aliviado dos momentos mais difíceis da chegada, Álvaro observava Luzia em seus movimentos junto à pia. A curvatura daquelas costas lhe pareceu mais proeminente, as pernas pareciam mais finas. O cabelo ralo, de uma cor difusa, deixava à mostra trechos do rosado couro cabeludo. As unhas dos pés pintadas de rosa não combinavam com a figura austera daquela mulher, nem com o piso antigo e fosco de cor indefinida do chão da cozinha.
Coando café, Luzia mencionava o calor que fazia, os vizinhos que haviam morrido, o cachorro que tinha sido adotado pelos moradores do prédio
Aurane Garzedin
e outras coisas mais. As palavras se perdiam ante o vestido dela, de flores laranja em um fundo bege que contrastava com o azul celeste do armário antigo de fórmica sob a pia. Era só o que ele via.
Hum, o cheiro do café! Que estranho poder exercia sobre ele o cheiro do café! Em qualquer lugar do mundo, esse perfume era a senha para um lugar mítico, em que haveria um eterno e suave encontro familiar. Talvez tenha sido esta imagem de sua memória afetiva a responsável por ter percorrido o que lhe parece uma enorme distância no tempo e no espaço para estar ali agora, como se nunca tivesse saído, mas com a mesma sensação de que não era aquele o seu lugar. — Você está bem? — pergunta ela. — Sim, mãe, um pouco cansado da viagem.
E ela continuou a falar, agora à sua frente, com a mesma voz forte que ele conhecia, enquanto comia uns biscoitos molhando a pontinha de cada um no café. Álvaro fingia interesse.
Aquele cômodo de cores desbotadas parecia ter vida apenas pela presença dela; o armário dos pratos com as portas de vidro, a fruteira sobre o balcão, as cortinas de renda no basculante sobre a pia e os vasos com flores plásticas, emoldurados pela claridade lá de fora. Na porta de madeira pintada de branco, uma caixa cheia de boletos de pagamento. Que espécie de fonte alimentava o perene e estranho gosto da mãe pela vida, e que parecia inalterável pela rotina, perguntou-se.
Após o café, Álvaro saiu para andar um pouco, precisava tomar um pouco de ar fresco, ver o mar. Uma hora depois, entrou em casa muito pálido e ofegante. Sentou-se na poltrona marcada pelo peso da mãe, em frente à televisão. Fechou os olhos. Enquanto isso, era observado de soslaio pela mulher idosa com ar preocupado, que fingia arrumar a sala, com as
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mãos um pouco trêmulas. — Mãe, não ando me sentindo bem, acho que vou morrer...
Ela se aproximou e levou a mão à boca do filho, calando-o: — Nunca mais diga isso! Você sempre foi um pouco exagerado e sensível! Ao contrário do seu irmão, pensa muito e tem a imaginação fértil. Seu pai sempre disse que você era um artista.
Álvaro recuou e olhou para ela surpreso. Ela mentia. Uma das frases marcantes da sua infância fora pronunciada pelo pai, depois de jogar fora o João, um boneco de pano que o menino fizera, que havia se tornado o seu fiel companheiro e até dormia ao seu lado. Naquela noite, ele ouviu a mãe dizer: — Ele é um menino criativo...
Ao que o pai respondera: — Um fraco da cabeça, isso sim!
Sem querer, ele pôs a mão no nariz torto para a esquerda, uma inclinação que para ele havia custado algumas conquistas amorosas e parte de sua autoestima. Lembrava-se exatamente da surra que levou de um colega e do olhar cheio de desprezo que recebeu do pai ao chegar em casa.
O telefone celular de Álvaro toca. Ele olha para o visor, olha para a mãe e não atende. Um pouco constrangida, ela comenta: — A gente não escolhe a quem amar, meu filho. Eu me apaixonei pelo seu pai, ele era um homem bom, mas um tirano. Não há como julgar, mesmo quando a gente não quer aceitar. Mais tarde, deitado na cama, Álvaro pensa nas palavras da mãe. Sempre estranhou a ausência de perguntas dela sobre mulheres, casamento e filhos. Toda mulher quer netos... Não tem o emprego fixo e a estabilidade que o pai tanto prezava. A poesia foi o que sempre lhe interessou. Com as mulheres, nunca teve um relacionamento satisfatório; na verdade, as temia. Agora, necessitava de coragem
Aurane Garzedin
para romper uma relação com a pessoa que é o amor de sua vida, mas que não lhe merece mais. Sente-se um fraco. Talvez esteja mesmo muito doente, não apenas estressado.
Luzia roncava no quarto ao lado. Antes, havia tomado uma dose de comprimidos para driblar o sentimento de mãe abandonada e outros indesejáveis que costumavam ressurgir em fila sempre que ia para a cama. Lembrou-se da última vez que esteve na casa do filho, no centro antigo de Recife. Recordase perfeitamente de dois postais dentro de um livro sobre a escrivaninha. Um deles falava sobre Morro de São Paulo, um lugar paradisíaco na Bahia, relembrando o momento onde Álvaro e outro homem haviam se conhecido. O outro, o desenho de um rosto atormentado, no verso trazia firmado o compromisso de uma viagem de lua de mel à Itália juntos.
Desde então ela não mais se queixou da distância dele e apenas as conversas banais ao telefone uma vez por mês os unia. Luzia se ocupava das coisas próximas. “Ah, hum! Só os mimados acham que podem ter tudo na vida; a gente tem o que pode ter”, ela dizia. O sono chegou, mas a aparência envelhecida do filho não lhe saiu da cabeça.
Luzia acordou diferente.
Álvaro já estava desperto e olhou curioso para o rosto animado da mãe entrando em seu quarto sem pedir licença. Ela lhe devolveu um sorriso estranho e foi mancando, decidida, até à janela, mas não conseguiu abri-la sozinha; estava emperrada. Então, ela pediu com os olhos mais quentes e a voz poderosa de sempre: — Venha, meu filho, ajude, vamos arejar a casa.