FESTA, FÉ & ARTE - Manifestações da Cultura Popular em Petrolândia

Page 1



FESTA, FÉ & ARTE MANIFESTAÇÕES DA CULTURA POPULAR EM PETROLÂNDIA

Paula Rubens

Petrolândia/PE 2022


INFORMAÇÃO DE DIREITOS E REGISTRO INTELECTUAL FESTA, FÉ & ARTE paularubens09@gmail.com Copyright © 2021 by Paula Rubens Todos os direitos reservados ao autor. Nenhuma parte desta publicação pode ser armazenada, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos, eletrônicos ou outros quaisquer sem a prévia autorização o autor. _____________________________________________________________ EQUIPE RESPONSÁVEL PELA PRODUÇÃO Revisão Gilberlândio Francisco Imagem da Capa Thais Rubens Capa & Diagramação Antonio dos Anjos Produção Editorial Dos Anjos Serviços __________________________________________________________________ Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) _____________________________________________________________ Rubens, Paula Cultura Popular de Petrolândia/Paula Rubens – 2022 166 f.: 1ª Ed. História Regional – Dos Anjos Serviços – 2022 ISBN: 978-65-00-21519-9 1. Literatura brasileira; 2. Petrolândia (PE); 3. História; 4. Folclore; 5. Dança; 6. Culinária Nordestina; 7. Artesanato; 8. Cultura Indígena; I. Título CDD. 981.34 CDU. 82-94 _____________________________________________________________ REVISADO CONFORME O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO. _____________________________________________________________ Paula Francinete Rubens de Menezes Avenida Sabino Costa, 96 – Quadra 07 Petrolândia/PE, CEP: 56.460-000 paularubens09@gmail.com


A Dona Afonsina Cavalcante (in memória), que me ajudou a enxergar a cultura popular com respeito. A todos os anônimos produtores culturais do Brasil, com gratidão.



Sumário Introdução .............................................................. 9 Influências............................................................ 11 O Ciclo do Natal .................................................... 23 Festejos Natalinos ................................................. 25 Presépio ou Lapinha ............................................. 30 Pastoril ................................................................. 38 Reisado................................................................. 53 Entrudo ................................................................ 69 Carnaval ............................................................... 71 Os Penitentes ....................................................... 86 Quadrilhas Juninas ............................................ 101 Dança de São Gonçalo ........................................ 106 Rituais Índígenas ................................................ 112 Corrida do Umbu ................................................ 113 Toré .................................................................... 118 O Menino do Rancho .......................................... 120 Banda de Pífano ................................................. 121 Artesanato .......................................................... 123 Culinária ............................................................ 131 Alfenim (puxa-puxa) ........................................... 132


Aluá de Tamarindo ............................................. 134 Beiju de Ouricuri na Palha.................................. 136 Farofa Doce de Murici ......................................... 138 Licor de Murici ................................................... 139 Cachimbo ........................................................... 141 Anexos:............................................................... 143 Referências ......................................................... 159


Introdução Para que serve um baú de relíquias escondidas, sem uso? Com essa pergunta a inquietar-me, venço o pudor e tomo coragem de publicar este apanhado de memórias registradas a partir de cadernos amarelados, maravilhosas conversas sob as sombras de mangueiras, terraços ventilados ou em torno de um bom café em acolhedoras cozinhas amigas cada vez mais raras. São memórias coletivas, raízes identitárias de um povo, tesouro que não me pertence com exclusividade. Sinto-me obrigada a compartilhar para não correr o risco de deixar que se perca. É com esse espírito que este livro, modestamente, pretende contribuir para a preservação do Patrimônio Cultural Imaterial de Petrolândia e, quem sabe, animar produtores de cultura e educadores a manter viva essa rica herança. O baú está aberto, o tesouro é de todos nós.

9


10


Influências Banhada pelo rio São Francisco, Petrolândia localiza-se no Sertão de Itaparica, região do Submédio São Francisco, muito próximo das fronteiras dos Estados de Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergipe. Nascida de Tacaratu, da qual se tornou vila e sede do município em momentos alternados, mudou de nome três vezes: foi JATOBÁ, depois ITAPARICA e por último PETROLÂNDIA. Em sua história recente, 1988, mudou também de território por força da inundação da cidade em decorrência da construção da Usina Hidroelétrica Luiz Gonzaga. Sua ocupação se deu pelos índios que, desde a pré-história, foram se fixando à terra a partir do aprendizado de técnicas de agricultura e em função do rio. Depois, pelo aldeamento de Brejo dos Padres implantado pelas missões religiosas e pelos portugueses e suas fazendas de gado. Por fim, pela implantação da ferrovia PiranhasJatobá, inaugurada em 1883, atraindo novos moradores a ponto de transformar o local em centro urbano, convergindo para si o movimento comercial de Vargem Redonda, Brejinho, Volta do Moxotó, Tacaratu, Floresta, Delmiro Gouveia e Piranhas,

11


principalmente. O trem funcionou regularmente até 1964. Desde a implantação da ferrovia, o município tem sido alvo de projetos federais que, entre períodos de progresso e decadência, geraram importantes oportunidades, muitos problemas e interessante intercâmbio cultural. Ainda durante a construção da estrada de ferro, foi ponto de partida da Comissão Hidráulica do Império para novos estudos visando à navegabilidade do rio. Nos anos 30, serviu de piloto à primeira experiência de fecundação artificial de peixes de água doce em água corrente. Um projeto da Comissão Técnica de Piscicultura do Nordeste, subordinado à Inspetoria Federal de Obras contra a Seca, órgão este, com escritório e Posto de Saúde na cidade e no povoado de Icó, gerando assim, diversos empregos. Em 1943, foi modelo no Nordeste do primeiro projeto nacional de implantação de colônias agrícolas, com a criação do Núcleo Colonial de Barreiras, sob a condução da Comissão do Vale do São Francisco, atraindo diversas famílias de colonos da região. Por último, dos anos 70 a 80, recebeu as obras de construção da barragem, executada pela CHESF e suas diversas empreiteiras. Escritórios e canteiros de obra foram instalados, dobrando o número de habitantes do município em apenas uma década. 12


Todas essas intervenções geraram interações marcantes a influenciar na organização social e no modo de vida do povo. Embora a herança cultural mais forte seja a do povo indígena originário do lugar, a fase de formação urbana ocorreu sob forte influência da migração provocada pela chegada da estrada de ferro, trazendo ares de modernidade ao Sertão agrário. A facilidade de locomoção para o Estado vizinho através do trem, por oito décadas e a fixação de residência das famílias dos funcionários da Estrada de Ferro, tornou conhecidos os costumes, a moda, a culinária e as festas populares do povo alagoano. Principalmente de Piranhas, ponto inicial da Estrada de Ferro Paulo Afonso e local de origem dos empregados responsáveis pela administração da estação ferroviária. A herança indígena é marcante em praticamente todas as manifestações culturais da região, desde o gosto pelo consumo do murici e umbu (frutas nativas), o modo de produção da farinha de mandioca e do beiju, a utilização do coco de Ouricuri na culinária e nos “colares”, o uso das canoas de vara, a forma de pescar, a técnica de fabricação de cerâmicas e o artesanato em palha até os rituais e danças místicas.

13


COLARES DE OURICURI (Foto: Arquivo pessoal).

Além disso, a flauta das bandas de pífanos, feita de taboca, a espiritualidade dos penitentes e a dança de São Gonçalo de origem portuguesa, em Petrolândia se misturam aos conhecidos costumes dos índios de Brejo dos Padres, que, em seus rituais, já utilizavam o som da flauta e adotavam o autoflagelo. De Piranhas vieram os costumes burgueses. Os licores, os bailes privados na Estação de trem, as lapinhas e os folguedos natalinos, entre outros.

14


A Barragem e os Prejuízos Culturais Em função da barragem, a população de Petrolândia se viu forçada a mudar-se para uma nova cidade planejada com esse fim em outra localização territorial, deixado para trás todo o seu patrimônio histórico totalmente coberto pelas águas.

Matriz em processo de inundação. Foto do Blog Assis Ramalho.

15


Durante as obras da usina hidroelétrica um bairro inteiro, o acampamento de Itaparica, foi construído pela CHESF para receber seus funcionários. Uma verdadeira cidade com escolas, comércio, clubes, igrejas e escritórios.

Vista aérea do Acampamento de Itaparica anos 70 - Foto Arquivo Público PE.

Apesar de localizado no município de Petrolândia, o bairro tinha vida administrativa e sociocultural independente, embora, na maioria dos eventos a elite petrolandense fosse convidada a participar. Concomitantemente, fora dos muros do Acampamento da CHESF, à beira do rio, foi se erguendo um novo povoamento composto por 16


desempregados da região que, atraídos pela oportunidade de trabalho nas empreiteiras, começaram a montar seus barracos à espera de emprego. Uma vez contratados, construíam suas casas e assim foi se formando a Cidade Livre. Nome sugestivo a indicar a falta de planejamento do lugar. Dessa forma Petrolândia, que em 1970 possuía em torno de 14 mil habitantes, passou a contar com 24 mil moradores no censo de 1980. Ou seja, 10 mil pessoas a mais em dez anos. Gente vinda de lugares variados com costumes diferentes. Uma imensa corrente migratória com tudo de bom e de maléfico dela resultante.

Vista aérea de Petrolândia. Foto Arquivo Público PE.

17


No final da construção da barragem outro movimento interessante aconteceu: nem todos os moradores da antiga cidade aceitaram mudar-se para a nova Petrolândia. Alguns decidiram por morar em outros locais. Em contrapartida, muitos dos migrantes fixaram-se de vez na cidade. Movimento idêntico ocorreu com algumas famílias da zona rural, que se viram obrigadas a morar na zona urbana em função da escolaridade dos filhos. Assim, a antiga configuração social e o jeito de viver ficaram “diluídos” em meio a tantas e tão repentinas mudanças. A população, formada pelos “de fora” e locais, não compartilham a mesma memória e por isso não conseguem desenvolver o mesmo sentimento de pertencer a um só coletivo. Antigas tradições vão caindo no esquecimento. Não são transmitidas, não se conservam, nem se renovam. A cultura autêntica vai sendo substituída pela cultura de massa. A influência baiana se faz sentir na música trazida da vizinha cidade de Paulo Afonso (BA) onde alguns trabalham e muitos estudam. Shows de cantores famosos e trios elétricos baianos arrebanham multidões nas festas de São Francisco e no carnaval de rua, respectivamente. O Bloco do Panta e a Turma do Tacho acabam sendo os últimos redutos de resistência do frevo da cidade.

18


Movimento ainda mais grave ocorre com os folguedos de Natal. A tradicional festa de rua distanciou-se de seu caráter religioso e acabou se resumindo a algumas iniciativas pontuais da Ação Social do Município e de grupos que se restringem a entregar brinquedos e doces às crianças através da comercial figura do Papai Noel. A lapinha é armada no interior da igreja e de forma simbólica pela Prefeitura em praça pública, apenas como elemento decorativo, desvinculados de qualquer manifestação cultural ou religiosa. Nas casas, lapinhas abertas à visitação, já não são usuais. O pastoril, antes principal atrativo das festas natalinas, vem se mantendo timidamente de forma precária e sem continuidade, sempre dependendo de iniciativas particulares. Folclorizado, ou seja, visto apenas como espetáculo, permanece resistindo como pode, mas tem ainda um longo percurso a percorrer no resgate da sua essência: a catequese através do lúdico e a participação do povo na brincadeira solidária. Sem a devida valorização na época do Natal, uma vez que, quase não se investe nos festejos de rua no período natalino, resta ao pastoril aproveitar os espaços nas escolas e no Palco Cultural na Festa do Padroeiro. A completar a mudança de modo de vida, a nova cidade (mal) planejada quase não tem equipamentos públicos de convivência, a não ser a 19


praça de alimentação e os bares da orla a exigirem consumo. A Praça da Matriz, projetada principalmente para grandes eventos, serve de ponto de parada para os ônibus escolares durante o dia e à noite fica deserta. Seu traçado não favorece o encontro das pessoas. As praças construídas em cada quadra residencial foram tão mal cuidadas no início que não se estabeleceu nelas o costume de frequentá-las. Não servem nem para a brincadeira das crianças, já que não possuem espaço adequado para isso. Antes tivessem construído parques. Por tudo isso, além da composição da população, onde nem todo mundo se conhece, perdeu-se o costume de passear na praça para encontrar os amigos, como se fazia na velha cidade. Ir ao clube durante o dia para jogar damas, baralho, vôlei e dançar à noite, também ficou no passado, assim como, os shows de calouro no Domingo Alegre, que durante anos animou as manhãs de domingo no Grêmio Lítero Recreativo. A classe média tornou-se proprietária de granjas de lazer, que chamam de “roça”, onde passam os fins de semana e desinteressou-se pelos clubes. O Grêmio e a AABB, sem recursos, estão em decadência.

20


Passados mais de 30 anos da mudança, a cidade possui hoje aproximadamente 32 mil habitantes trancados em suas propriedades privadas de muros altos. São raras as ruas aonde ainda se observam cadeiras nas calçadas, cena comum nos verões de antigamente. Uma geração inteira já nasceu na nova cidade e nem chegou a conhecer a terra onde nasceram seus pais e avós. Alguns poucos conhecem os costumes e tradições apenas de ouvir falar, mas não se interessam. Possivelmente por não se reconhecerem nelas. Os mais velhos sentem-se arrancados de suas raízes culturais, os mais jovens não tiveram o prazer de experimentá-las em seu ambiente de origem. De fato, a cidade perdeu sua antiga identidade e ainda não conseguiu construir uma nova. Ainda está em processo. É verdade que não se pode querer restabelecer o modo de vida do passado, os tempos são outros. No entanto, na construção da identidade, básico se faz conhecer o passado para se entender de onde viemos e reconhecer que somos resultado de um processo iniciado pelos que nos antecederam. A isso se pode chamar de consciência histórica: “(...) ao assegurar um sentimento de continuidade no tempo e na memória (e na memória do tempo), a consciência histórica

21


contribui (...) para a afirmação da identidade – individual e coletiva”. (José Machado Pais) Depois de perder todo o patrimônio material e suas referências espaciais, resta ao povo de Petrolândia o patrimônio cultural como base identitária. Felizmente uma rica base.

22


O Ciclo do Natal O ciclo comemorativo do Natal de rua se inicia no dia 24 de dezembro e vai até 06 de janeiro, Dia de Reis. Antes de ser uma festa cristã, o natal foi uma solenidade pagã. A data que marca o início do inverno no hemisfério norte era celebrada, tendo o sol como centro, por diversas culturas antigas que geralmente realizavam celebrações e festas ligadas às suas religiões. O povo do Egito celebrava Osíris o deus da fertilidade e da mitologia, os Hindus e Persas o Deus Mitra como um sol vencedor. Por herança, em celebração ao surgimento do sol, apesar da longa noite de escuridão do início do inverno, a Europa Ocidental instituiu a Festa do Sol, no dia 25 de dezembro. Com a intenção de substituir as festas pagãs pelas práticas do cristianismo, o Papa Júlio I fixou essa data em comemoração ao nascimento de Jesus e um novo sentido foi dado à data. Celebrava-se a partir dali, “não o sol, mas Aquele que fez o sol”, segundo as palavras de Santo Agostinho. Conhecendo esses costumes pré-cristãos fica fácil perceber os sinais pagãos nessa festa religiosa, celebrada no interior das igrejas e também na rua.

23


Pode-se dizer que as festas profanas acompanhadas de cerimônias católicas foram trazidas para o Brasil pelos senhores de engenho de origem portuguesa. Os padres capelães das Casas Grandes e os Jesuítas que, aproveitando o caráter lúdico das festas, às utilizavam também na catequese de índios e negros sob sua tutela. Muito bem aceitas, ganharam nova interpretação em adaptação à realidade local.

24


Festejos Natalinos Seguindo o costume português, os primeiros moradores de Petrolândia tinham como tradição no Natal a apresentação do pastoril, a montagem de lapinhas e a festa de rua. Com barracas de comes e bebes e jogos, o largo da rua do comércio era iluminado a lampião para receber o povo de todas as classes sociais. À meia noite, fogos de artifício anunciavam o nascimento do menino Jesus. Assim contava D. Afonsina Cavalcante, professora, nascida em 1896, falecida aos 106 anos. Até a hora da missa, na “rua da frente”, como se costumava chamar a Av. D. Pedro II, o povo assistia as apresentações do pastoril encenado diante do presépio da casa dos seus organizadores. “Às oito horas, em casa do Sr. Silvino Delgado Filho, onde sua irmã D. Anna Delgado armara linda lapinha, teve lugar bonito pastoril assistido pela população local e em que tomaram parte as gentis senhoritas Lourdes, Alzira e Afonsina Menezes, Doralice, Belinha e Carminha Delgado, Prosperina Lima, Vitinha, Nina e Noemia Costa, Lourdes Cavalcante, Mariêta e Juvina Dantas, Maria do Socorro,

25


Dourinha Costa, Arthemisa Silva e Clotildes Lisbôa”. Cantaram A Diana, Os Astros, A Matuta e o Estudante, A Camponesa e os Três Reis Magos, com muita graça e expressão, sendo muito aplaudidas. Em casa do Sr. Aurélio Aragão, D. Afonsina Cavalcante, armou também bonita lapinha, que foi bastante visitada. (Correio da Pedra, 03.01.1926). A mesma nota publicada na sessão “DOS NOSSOS CORRESPONDENTES”, o Correio da Pedra, jornal fundado pelo empresário Delmiro Gouveia, onde Hildebrando de Menezes exercia a função de Diretor, continua detalhando os festejos natalinos ocorridos na cidade de Jatobá, em sua edição de 03.01.1926: “Transcorreram com regular animação os festejos de Natal nesta cidade. Grande multidão encheu o largo da Rua do Comércio, em grandes manifestações de alegria, jogando Maior ponto, Donzela e outros jogos populares. (...)” ‘‘À meia noite realizou-se a missa, que logrou avultada concorrência. As diversões populares prosseguiram até o amanhecer do dia seguinte,

26


sem que houvesse a mínima alteração da ordem” Já no ano de 1934, provavelmente em função da gravíssima seca que assolava o sertão e suas consequências para a economia local, a cidade não mostrou a mesma animação, conforme registrou o jornal petrolandense CORREIO DO SERTÃO, em sua edição de 30.12.1934, na sessão de notícias locais: Transcorreu o dia de natal em Jatobá, sem o brilho e a animação de outros anos. Às duas horas do dia seguinte houve missa muito concorrida celebrada pelo reverendíssimo cônego Frederico de Oliveira, vigário da Freguesia. O ajuntamento de pessoas no pátio da feira foi reduzido, os jogos permitidos muito fracos e o comércio fez pouco negócio. Os festejos de rua, com jogos, dramatizações e danças, no início, organizados principalmente pelas famílias, posteriormente passa a acontecer no “Rinque” (largo cimentado, onde mais tarde seria construída a Praça Antônio Correia Gomes da Cruz, mais conhecida como Pracinha Nova). Enfeitado com palhas de coqueiro e bandeirolas fechava-se o espaço para a dança. Ao lado, os leilões e o pastoril 27


aconteciam em palanque armado na esquina do Ponto Ideal (casa comercial pertencente à família de Dona Celestina). Durante o dia circulava pela cidade a banda de pífano, que passava tocando pelo comércio a fim de ganhar uns trocados “de agrado”. Sentados na calçada da padaria de João Rodrigues, num instante de descanso, invariavelmente enfrentava a tortura da saliva a encher a boca provocada pela meninada que, de maldade, vinha chupar tamarindo na frente do flautista. Do Alto da Raposa (comunidade da periferia de Petrolândia), vinham os brincantes do reisado, que no Dia de Reis visitavam as casas de algumas pessoas cantando loas ao dono da casa, de agrado ou desagrado, conforme eram recebidos. No Núcleo Colonial de Barreiras os seus administradores passaram a patrocinar apresentações de Pastoril no largo da Igreja do Sagrado Coração de Jesus em noites de Natal. O povo se divertia em arrematar galinhas e perus assados nos leilões com a finalidade de arrecadar fundos para a igreja, que não chegou a ser concluída, mas resiste até hoje em meio ao lago da barragem. Nos anos 70, o Coral Vozes do São Francisco encenava o nascimento de Jesus no palco do Grêmio Lítero.

28


Na mesma época, o Pastoril passou a ser organizado, com muita dificuldade, por iniciativa de mulheres das classes mais populares e foi perdendo o seu caráter beneficente. Dona Carminha, Dona Marinete, Euza de Ernesto, Dona Marieta e outras tantas, em épocas diferentes, foram se sucedendo na montagem de grupos de pastoril, praticamente sem ajuda oficial Com o tempo, a festa do dia de Natal, sem apoio do poder público, passou a ser celebrada basicamente na igreja. A festa de rua mais marcante vinculada a Igreja passou a ser a do Padroeiro. Iniciativas, como a de Dona Marinete, que, apesar de não ser uma pessoa de posses, chegava a ornamentar as ruas da nova cidade no Natal por conta própria, tornou-se rara. Assim, ela com o pastoril e Lourdinha Menezes com a lapinha armada no terraço de sua casa, foram algumas das poucas pessoas a manterem a tradição na nova cidade, e assim o fizeram até o fim de suas vidas. Até 2013 o pastoril de Dona Marizete resistiu apresentando-se nas escolas. Outra iniciativa do tipo só veio surgir cinco anos depois. Da Lapinha resta a de Dona Anália, armada no terraço de sua residência à vista de quem passa.

29


Presépio ou Lapinha Hoje os termos lapinha e presépio são considerados como sinônimos, mas nem sempre foi assim. Lapinha originou-se de “Lapa ou Gruta”, local, por tradição, onde a Sagrada Família se recolheu até o nascimento de Jesus. Segundo Câmara Cascudo e seu Dicionário do Folclore Brasileiro, lapinha, seria denominado o pastoril que se apresentava diante dos presépios. Com o tempo, a apresentação das pastorinhas passou a ser denominada simplesmente “pastoril” e o termo “lapinha” a significar o mesmo que presépio. O presépio teve início com São Francisco de Assis no ano de 1223. Querendo mostrar aos camponeses como tinha sido a noite do nascimento, ele resolveu montar a cena numa gruta em um bosque da região, dispondo nela bonecos de barro em tamanho natural representando Jesus e seus pais. Um boi e um burro, ambos verdadeiros, compunham a cena. Assim, podia explicar melhor o que queria. Depois disso a ideia espalhou-se pelo mundo utilizando-se imagens menores. Com o passar dos séculos, novos elementos foram acrescentados à cena, a gosto de quem montava. Muitos sem conexão nenhuma com a época do nascimento de Jesus, como por exemplo, um globo de vidro contendo uma casa

30


com neve a cair no telhado. Espantosa representação de um inverno surreal para uma região desértica como a do local de origem de Jesus. Em Portugal a tradição é muito antiga, possivelmente influenciada pela fundação do primeiro convento franciscano da Península Ibérica, na cidade de Alenquer, ainda no século XIII. Nessa época, o costume se limitava ao interior de igrejas e ambientes religiosos, depois se espalhou também para as casas dos católicos, tornando-se uma tradição a começar pelos nobres. No Brasil, há registro de que foi utilizado na catequese dos índios pelo Padre José de Anchieta, desde 1552. Mas, foi entre os séculos XVII e XVIII que os presépios foram efetivamente introduzidos e difundidos no Brasil por padres jesuítas, portugueses, franceses e espanhóis. As lapinhas, ou presépio, como também são chamados, eram armadas nas casas das famílias tradicionais e abertas à visitação pública. Com lagos de espelhos de vidro, colinas de papelão, palhas, barro, pedras, búzios de praia e estrelas douradas ou prateadas, a lapinha era montada pacientemente com capricho e criatividade. Quanto maior e mais cheia de enfeites, mais admiradas. Assim, a cada ano a dona do presépio ia acrescentando novos elementos, quase todos na maioria das vezes confeccionados por ela mesma. 31


Nas casas mais ricas, uma das salas era reservada exclusivamente para a lapinha, montada no início do Advento sem a figura do menino Jesus, colocado somente na noite de Natal depois da Missa do Galo. Findo o ciclo das Festas Natalinas, no dia seguinte ao Dia de Reis, as lapinhas eram desarmadas, os objetos de uso permanente como imagens, espelhos, etc., eram cuidadosamente guardados. Todos eles que enfeitaram o presépio, eram considerados sagrados, por isso os demais apetrechos, como palhas, papelão e outros materiais descartáveis não podiam ser jogados no lixo. Eram queimados numa cerimônia que envolvia principalmente as crianças e as pastorinhas do Pastoril. Em fila, cada um carregava consigo um dos materiais, se aproximava da fogueira e os lançava nas chamas cantando. Em alguns lugares, além dos objetos, as pessoas passaram a escrever pedidos em pedaços de papel para queimar junto com a lapinha e serem atendidos ao longo do ano. Assim, formam um círculo ao redor da fogueira cantando, repetindo o verso até tudo ser destruído pelo fogo. Segundo a crença popular, realizar o ritual dá sorte à casa que abrigou a lapinha e aos participantes da cerimônia.

32


Câmara Cascudo em seu livro “Presépio e Pastoris”, de 1943, relata essa cerimônia, que ainda hoje é realizada Brasil afora. “Essa cerimônia [...] tem como base um cortejo, cuja frente um grupo de moças conduz as palhas de coqueiros que servirão para formar o nicho onde esteve armada, durante o período de Natal, a cena do nascimento de Jesus”. Seguem-se duas filas prolongadas de meninas e meninos, conduzindo balões multicores, fechando o séquito uma orquestra de instrumentos de sopro, que toca a seguinte melodia enquanto a multidão canta: A nossa Lapinha Já vai se queimar...(Bis) E nós, Pastorinhas, Devemos chorar. Queimemos, queimemos A nossa Lapinha (Bis) De cravos e rosas, De belas florinhas. Queimemos, queimemos Gentis Pastorinhas (Bis) As secas palhinhas Da nossa Lapinha”. 33


As palhas são amontoadas no local escolhido para a cerimônia do “queima” e ateia-se fogo nelas. Ao redor desse fogo (transformado em fogueira devido à quantidade de palhas secas) é formado um grande círculo de moças e rapazes de mãos dadas cantando: “A nossa Lapinha Já está se queimando...(Bis) E o nosso brinquedo Está se acabando. As nossas palhinhas Já estão se acabando...(Bis) E nós, Pastorinhas, Nós vamos chorando”. Quando a fogueira se transforma em cinzas, o cortejo volta ao seu ponto de partida, cantando: “A nossa Lapinha Já se queimou....(Bis) E o nosso brinquedo Já se acabou. Adeus, Pastorinhas! Adeus que eu me vou...(Bis) Até para o ano Se eu viva for!”

34


Em Recife, a liturgia começa geralmente no final da tarde do dia 06 de janeiro, no Bairro de Santo Antônio, centro da cidade, no Pátio da Igreja do Carmo, onde os diversos pastoris, reisados e cavalos marinhos se juntam aos católicos em geral para celebrar o Dia de Reis. Depois da celebração da missa o cortejo segue em direção ao Pátio São Pedro, onde acontece a queima da Lapinha, abrindo oficialmente alas para o Carnaval. Embora em Petrolândia na maioria das casas dos mais abastados armassem lapinhas, não se tem notícia desta cerimônia acontecer em praça pública com a participação do povo. O que se tem conhecimento são relatos desse ritual realizado em família, como na casa de Dona Lulu Delgado que todo ano, no dia seguinte ao Dia de Reis, juntava a família e as crianças da vizinhança, a fim de queimar a lapinha. No quintal da casa as crianças entravam em fila cantando: “Nossa lapinha já vai se queimar, Adeus que me vou... Até para o ano se nós vivo for.” E lançavam nas chamas da fogueira acesa, os capins usados na manjedoura, cartolina e outros materiais descartáveis, restos do cenário do presépio que ela todo ano armava em casa, numa grande mesa na sala de estar. 35


Foto: arquivo pessoal.

Por muitos anos e até o fim da sua vida, Lourdinha Menezes, Lourdinha do SESP, como era conhecida, mantinha em casa uma enorme e caprichada lapinha exposta à visitação. Ela, Dona Afonsina Cavalcante e Dona Anália, mãe do Professor Toinho da Escola Santo Antônio, trouxeram a tradição para a nova cidade. Com a morte das duas primeiras, apenas Dona Anália mantém o costume. Montada no terraço de sua casa, a lapinha de Dona Anália ainda pode ser apreciada por quem passa em sua calçada no período do Natal.

36


Lapinha de Dona Anália. Foto: arquivo pessoal.

37


Pastoril Composto geralmente por doze pastoras divididas em dois grupos chamados cordões. Um grupo ostenta nas vestes a cor azul, em referência ao manto de Maria e o outro a cor vermelha, simbolizando o manto de Jesus, segundo o conceito adotado pela Igreja Católica. Sobre a cabeça usam diademas de flores ou chapéus, nas mãos pandeiros enfeitados com fitas nas cores dos seus cordões. As primeiras pastoras de cada cordão recebem o nome de mestra (vermelho/encarnado) e contramestra (azul). As escolhidas, geralmente as mais bonitas e animadas, precisam cantar bem. Entre os dois cordões organizados em fila, um ao lado do outro, fica Diana, a mediadora, trajando metade vermelho e metade azul. Todas cantam e dançam. As “jornadas” têm como tema o nascimento de Jesus Cristo e os desafios entre os dois cordões sem que, necessariamente, haja uma sequência lógica entre os cantos. Apenas o canto de abertura e de despedida, marcando início e fim da jornada, são invariavelmente mantidos. Cada grupo procura a melhor forma de exaltar suas pastoras. Cigana, Borboleta, Pastor, Estrela, Rosas e outros tantos personagens vão se juntando às Pastorinhas enquanto seguem para Belém.

38


O pastoril profano distingue-se do religioso pelos personagens e letras das músicas, de duplo sentido e irreverentes. O personagem principal é o Velho que, vestido de palhaço, entre outras irreverências provoca pessoas da plateia lançandolhes pilhérias inconvenientes, de modo a constranger os senhores obrigando-os a contribuir com alguma quantia em dinheiro. Exemplo disso pode ser observado nos cantos recordados por Dona Olindina e Silva Resende, petrolandense, nascida em 1931, uma das participantes do Pastoril organizado por Carminha, sua irmã mais velha (Maria do Carmo Silva Resende). Conta ela que entre uma música e outra, a pastora de um dos cordões descia para a plateia e oferecia uma rosa vermelha (cordão vermelho), ou um cravo azul (cordão azul) a um dos senhores, geralmente políticos ou comerciantes de maiores posses, enquanto as demais pastorinhas do cordão cantavam, por exemplo: Zé de Caboclo foi quem mereceu Uma linda rosa que a Pastora deu. Zé de Caboclo faça boa ação, Receba essa rosa de bom coração. Nesse momento o velho de cima do palco gritava: – Passe pra cá um tostão, que não é de graça não! 39


Mas, os primeiros pastoris de Petrolândia organizados por Dona Tidinha, esposa de Silvino Delgado, depois também por Dona Afonsina e Dona Maria Rosa, eram religiosos e tinham como objetivo angariar fundos para a igreja. Com o passar do tempo, os pastoris foram deixando a frente das residências e passaram a se apresentar em palanques armados em frente à Estação Ferroviária, no interior do mercado público ou próximo ao rinque tendo uma carroceria de caminhão como palco. Em torno do local das apresentações armavam-se barracas com venda de bebidas e comidas. Jogos de tabuleiros eram organizados, fazendo a festa se estender madrugada adentro. Do Pastoril participavam moças escolhidas entre as famílias ilustres da cidade como se pode constatar através da edição de 20.12.1925 do Correio do Sertão: “Parece que o Natal se revestirá este ano de muita animação, estando sendo ensaiado para o dia um lindo pastoril composto de senhorinhas da elite social *jatobaense” (*de Jatobá antigo nome de Petrolândia). A disputa se dava entre o cordão azul, de Dona Maria Rosa e o encarnado, de Dona Afonsina. Dona Maria Rosa trazia influências do Pastoril de Recife, lugar onde tinha parentes e para o 40


qual frequentemente viajava. Dona Afonsina, por sua vez, conhecia o pastoril de Piranhas, seu lugar de origem. Um em nada divergia do outro, confirmando a influência pernambucana no pastoril alagoano apontada por Theo Brandão em seu livro “Folguedos Natalinos” No grupo das duas, as pastorinhas vestiam roupas confeccionadas em papel crepom. O papel era franzido em vários tamanhos formando babados e saias bem armadas. Como enfeite, estrelas douradas de papel laminado ou glítter. Na cabeça usavam chapéus, ou diademas, enfeitados com flores também de papel. Nas mãos um pandeiro, decorado com fitas, feito de flandres reaproveitados das latas de goiabadas. Esta era a especialidade de “Seu” Sátiro, que usava tampinhas de garrafa presos por pinos ao redor da lata para “dar som”, conforme nos relata Dona Helena da Graça (83 anos). Tudo em material de baixo custo, pois nem mesmo as “senhorinhas da elite Jatobaense” tinham recursos para figurinos caros. Cada cordão se apresentava de modo a cativar o público e a plateia, que em troca oferecia dinheiro para o cordão de sua preferência. A torcida era grande e quanto mais rivalidade havia maiores eram as contribuições e mais animada à festa. As 41


pastorinhas de cada cordão se apresentavam cantando: (À frente do palco o cordão vermelho) Nós somos do encarnado A cor do nosso coração. Os nossos partidários Quando entramos em cena, Vibram todos de emoção. (À frente o cordão azul) Nós somos do azul, A cor do nosso céu de anil. Os nossos partidários Quando entramos em cena, A todos os sorrisos mil. (a Diana canta) Como sou a Diana, Diana dos partidos sou. Aos nossos partidários, Quando eu entro em cena A todos os sorrisos dou. Antes de começar a disputa dos cordões apresentavam-se dramas compostos por “partes” ou atos cantados, tais como o drama da Cigana: (Pastor) Cigana lá do Egito, 42


Vem ler a minha mão. Te peço bela cigana, Que leia de coração. Não quero que escondas nada Da minha sorte cruel. Porque minha vida, cigana Tem sido de dor e de fel. (cigana) Eu leio na sua mão O que sua sorte me diz, Sua vida é um mar de pranto E nunca serás feliz. (Pastor) Assim acredito ó cigana Que estás falando a verdade. Eu não conheço alegria, Nem sei o que é felicidade Entre as personagens havia o Pastor, a Borboleta, a Estrela, a Cigana, a Camponesa e as pastorinhas. Gracinha Delgado, 70 anos, conta que numa das apresentações do pastoril de Dona Afonsina fez o papel de camponesa. Lenço amarrado na cabeça, saia florida, entrava no palco cantando: 43


Perdida ando tão delirante, Perdida ando tão delirante, Para ver se encontro O divino Infante. Entre palhinhas Jesus nasceu, Entre palhinhas Jesus nasceu. Preciso encontrar O menino Deus Jesus nasceu. Findo os versos, ia até o fundo do palco chamar as pastorinhas com um pedido de ajuda. Elas, por sua vez, entravam cantando, iniciando a primeira jornada do Pastoril: Meu menino eu vim de longe, eu vim de longe. Cansado de caminhar, de caminhar. Já deu meia noite, já resplandeceu, O belo menino na lapa nasceu, O belo menino na lapa nasceu. Assim seguia a apresentação, com canções que variavam entre anúncio e louvação ao nascimento do menino Deus, apresentação dos personagens e disputa entre os dois cordões. No final a música de despedida encerrava a jornada. Durante as apresentações uma pastorinha de cada cordão descia do palco, enquanto as demais

44


continuavam dançando, e circulando entre a plateia. Com simpatia, colocava pequenos broches com laços de fitilho, ou flores, na cor do seu cordão, na lapela dos homens que em troca contribuíam com algum dinheiro. Saía vitorioso o cordão com maior arrecadação. A disputa era acirrada e tal como uma torcida de futebol quem torcia por um cordão jamais mudava de “time”. Uma vez encarnado, sempre encarnado. Mas a animação do Pastoril não se restringia ao espetáculo. Começava bem antes da apresentação. O grupo, além de se reunir por dias seguidos para os ensaios, também circulava na feira, inclusive de Tacaratu e Barreiras, distribuindo lacinhos de fita que prendiam com alfinete nos bolsos dos feirantes para arrecadar dinheiro. Iniciava-se um tempo de animada expectativa que envolvia a todos. Costumava-se também arrecadar gêneros alimentícios não perecíveis que se transformavam em bolos. Também eram assados perus e galinhas para os leilões. Cada cordão organizava sua cesta, que depois de montadas eram embrulhadas em papel celofane e levavam fita na cor do cordão. Nada ficava com os participantes, a arrecadação servia para pagar os músicos e ajudar no figurino de quem não podia fazer o seu, a sobra era doada à igreja. Nos anos 40, Dona Laís, esposa do Dr. Genivaldo, médico que atendia no SESP, chegou a 45


montar um grupo que se apresentou dentro do Mercado Público com entrada paga. A cobrança era simbólica, mas servia para aumentar a beneficência. O figurino do pastoril de D. Laís era mais fidalgo. As saias eram de tafetá, sob a qual se usava uma cinta larga de cetim preto. As blusas de organdi, com elástico no decote deixando os ombros à mostra. Nos pés sapatilhas pretas de pano. Na cabeça flores de tecido nas cores do cordão, azul ou vermelho, confeccionadas com esmero por Dona Iracema de Nica, segundo as lembranças de dona Helena da Graça, 83 anos, uma das participantes. Dona Sônia, filha de “Seu” Da Cruz, de 80 anos, também fez parte do pastoril de Dona Laís e compartilha das mesmas lembranças. Lembra também do pastoril de Dona Joaquina, primeiro grupo do qual participou aos 12 aos de idade. Recorda com saudade as apresentações no rinque e o figurino de papel crepom tão usado na época. O segundo pastoril do qual D. Sonia fez parte foi o de Ana, mãe de Marizete. Em sua memória o caminhão transformado em palco e as pastorinhas vestidas de laquê, nos pés meias brancas e sapatos de verniz preto. Não se esquece da empolgação da torcida de cada cordão e fala que a disputa era bem acirrada: “Tinha gente que até brigava por causa do seu cordão”...

46


O grupo pastoril de Dona Carminha (Maria do Carmo Resende) se apresentava na rua, também em cima da carroceria de um caminhão, usando saia curta com três babados, nas cores dos respectivos cordões. Calçavam tênis e meias brancos e o chapéu de palha com uma flor de lado completava o figurino. Era o grupo que mais se apresentava em Barreiras a convite dos administradores do Núcleo Colonial. Por volta de 1968, Euza Silva que em criança admirava o pastoril de Dona Afonsina, depois de adulta montou seu próprio grupo cujos principais personagens eram a cigana, a borboleta, a pastora e o velho, indicando tratar-se do pastoril profano. Em conjunto com Dona Marieta, com figurino de papel crepom, terror das noites com preparação de chuva, o grupo geralmente se apresentava próximo ao Clube Piçarrinha na carroceria do caminhão gentilmente cedido por José da Cruz, um entusiasta das festas de rua. Depois Dona Marieta adquiriu um salão, então passaram a apresentar-se mediante entrada paga. A renda era dividida entre as organizadoras. Euza recorda algumas canções do pastoril da época: Uma ciganinha do Egito vem A procura das pastoras que vem à Belém. Ó linda ciganinha já chegou o dia De nosso prazer, de nossa alegria. 47


(a cigana canta) Sou a cigana do Egito Que veio de Belém. Guiada por uma estrela Que brilha no céu além. Na entrada do Velho as Pastorinhas cantavam: Casais, casais quem és. Casais, casais quem és. Sou o velho que chegou agora Com seu charuto na boca E chapéu a espanhola. O Velho dizia: O velho diz que tem Dinheiro como farinha Para arrematar essas coisas ai ai. E dar as pastorinhas. Dona Marizete, pessoa de origem humilde, aprendeu a dançar pastoril com Dona Joaquina. Depois formou o seu próprio grupo no Alto da Raposa, comunidade da periferia de Petrolândia. Da mestra, já idosa e acamada, recebeu o pedido para que nunca

48


deixasse morrer o pastoril de Petrolândia. Enquanto vida teve, Dona Marizete cumpriu o prometido. Mesmo com muita dificuldade seu pastoril foi o que mais tempo permaneceu em atividade, na história recente de Petrolândia. Tendo sobrevivido, inclusive, ao tumultuado período do processo de mudança durante a construção da barragem. Na nova cidade ela mantinha um grupo que, além do pastoril, apresentava outras danças do folclore como reisado, ciranda e coco. Tinha prazer em orientar quem quisesse aprender como produzir um pastoril, fosse religioso ou profano. Pantaleão, mais conhecido pelo carnaval, também organizava seu pastoril profano, onde o velho era a principal atração. Eis aqui uma pequena amostra dos versos cantados pelo velho: Quem quiser que o velho dance, Dê-lhe um copo de aguardente. O velho fica contente Fazendo careta pra gente. (Memória de Dona Oliva-92 anos) Em 2018, no Palco Cultural da Festa de São Francisco o pastoril ressurgiu como resultado do trabalho de pesquisa realizado pelo Instituto Geográfico e Histórico de Petrolândia.

49


Pastoril Esperança 2018/Foto: arquivo pessoal.

50


Assim nasceu o Pastoril Esperança, formado por meninas do bairro Nova Esperança, periferia da cidade. Com espaço de ensaio cedido pela Igreja e apoio da Escola Municipal Itamar Leite, do próprio bairro.

Pastoril do Grupo Reviver 2018/Fotos: arquivo pessoal.

Em sua estreia a nova geração foi precedida pela apresentação do Pastoril do Grupo Bem Viver, da terceira idade da igreja, conduzido por Bezinha. O espetáculo simbolizou o repasse da tradição entre as duas gerações.

51


Pastoril Esperança 2019/Foto: arquivo pessoal.

Pastoril do Grupo Reviver/Foto: arquivo pessoal.

52


Reisado Originário dos autos portugueses comemorativos da natividade chamados “janeiras” e “reis”, embora conhecido em Minas e São Paulo o reisado com características teatrais tem maior expressão no Nordeste. É apresentado no período de 24 de dezembro a 06 de janeiro, ou seja, de Natal a Reis. Em São Paulo é conhecido como Folia de Reis e na Amazônia Boi-Bumbá, em outros Estados também é conhecido como Boi do Nordeste. O reisado apresenta diversas modalidades e compõe-se de várias partes: a) abrição da porta; b) entrada; c) louvação ao Divino; d) chamadas do rei; e) peças de sala; f) danças; g) a guerra; h) as sortes; i) encerramento da função. Tem como principais personagens: o rei, o mestre, o contramestre, Mateus, Catarina, figuras e moleques. Fazem parte do espetáculo os “entremeios” (corruptela de entremezes), pequenas encenações dramáticas que são intercaladas com a execução de peças, embaixadas e batalhas. Os personagens são tipos humanos ou animais e seres fantásticos humanizados, cheios de energia e determinação. Usam roupas coloridas, geralmente nas cores vermelha e azul, ou verde, muito atraentes,

53


confeccionadas com arte. Nas costas, capas de cetim enfeitadas com galões dourados e prateados, guardapeito, decorados com lantejoulas, contas e espelhinhos brilhantes. Na cabeça, chapéus de palha forrados de cetim, em formato cangaceiro, ornamentados com espelhos redondos, flores e fitas coloridas. Oriundo geralmente de grupos rurais ou da periferia das cidades, reúnem-se numa “latada”, espécie de rancho, com o fim de visitar as casas de pessoas de mais posses e hospitaleiras da região. Seus integrantes saem às ruas cantando e dançando, ao som da sanfona, tambor e pandeiro e param em algumas casas onde são recebidos com mesa farta de comida. Em Alagoas, onde essa tradição é bastante presente, o folguedo, segundo o folclorista Teotônio Brandão, foi enriquecido em seus atos e trajes pelo Auto dos Congos ou Reis dos Congos, um tipo de reisado de origem africana. Deste folguedo incorporou novas e ricas indumentárias, músicas e coreografia, diferenciando-se assim, do Reisado de outros Estados. Misturado ao Auto do Caboclinho (diferente do Caboclinho de Pernambuco) o reisado Alagoano foi dando origem ao Guerreiro, espécie de reisado moderno. Um novo folguedo, surgido por volta dos anos 20, com maior número de episódios e figurantes, 54


trajes mais ricos, com chapéus muito mais elaborados em formato de igreja, ou palácios, chegando a pesar de 5 a 10 kg. Foram surgindo novos personagens herdados de outros conhecidos folguedos, a partir dessa miscigenação. Mais ou menos em 1922, foram surgindo outros personagens: o Capitão General, da Chegança; a Borboleta, do Pastoril; o Índio Peri, do auto das Caboclinhas; a Lira, também das Caboclinhas e a Rainha, personagem comum em diversos folguedos. Em Sergipe os brincantes ou figural são conduzidos pelo Mateus ou Caboclo, que divide com a Dona Deusa, o desenvolvimento do folguedo. Um dos dois tem a honra de segurar o partidário, um estandarte de duas bandeiras, nas cores dos cordões, com um mecanismo que permite subir as bandeiras conforme as contribuições financeiras que uma das alas consegue. Em recompensa aos doadores, os brincantes entregam uma florzinha de papel crepom às pessoas que contribuíram. Nos dois cordões, personagens como a Borboleta, o Guriatã, o Bambu, a Cigana e a Camponesa vão ao centro quando chamadas pelo Mateus para dizer a sua parte. Os elementos fantásticos são o Boi e o Jaraguá, construídos com uma carcaça da cabeça de Boi e outra de Cavalo cobertos de chitão, tendo no seu interior um brincante que lhe dá vida e movimento. Do brincante 55


do Boi e do Jaraguá é exigido muito preparo para dar realidade à sua animação, investindo, sem tocar, nos que assistem ao folguedo, provocando correrias e risos. O espetáculo dramatiza histórias em que se misturam amor e guerra, religião e história local. As canções remetem à profunda religiosidade, respeito e devoção pela sagrada família, fato evidente no gestual e expressões faciais. Por outro lado, a luta do bem contra o mal, que caracteriza o próprio cristianismo, é observada nas músicas e na performance da luta de espadas, simbolizando a batalha de Oliveira e Ferrabrás, que pode ser interpretada como uma herança jesuítica. Já o sebastianismo está presente na letra da música que fala do canto do saudoso Dom Sebastião, e também do Padre Cícero. Tal como o Novo Reisado Alagoano, estudado pelo folclorista Theo Brandão1, o reisado praticado a partir dos anos 50 no Alto da Raposa, era uma mistura de celebração pela chegada do Messias, homenagem aos Reis Magos e Auto de origem africana e indígena. Bairro pobre da periferia de Petrolândia, o Alto da Raposa era o local onde, em geral, se arranchavam os que vinham de outras paragens em busca de alguma oportunidade de sobrevivência. Cícero 1

Brandão, Theo – Folguedos Natalinos - 1973

56


Grande era um deles. Junto à disposição para o trabalho, trouxe de Alagoas o gosto e conhecimento sobre o Reisado. Juntou-se aos que já conheciam o folguedo e organizou um grupo que todos os anos percorria a cidade no período do Natal. Na latada de sua casa os ensaios e apresentações eram bem concorridos, muita gente vinha da cidade para assistir. No dia de Reis a saída era precedida de um breve momento no qual, como comandante do Reisado, Cícero Grande puxava a reza e em seguida, murmurando frases inaudíveis, parecia invocar a força dos encantados. Um clima místico se instalava no ambiente, lembra Edna Silva Ferreira (59 anos), sobrinha de Paulo (intérprete do índio Peri) e neta por afinidade de Odilon Coveiro (um dos Mateus), que gostava de acompanhar os dois e assistia, entre encantada e assustada, a toda aquela movimentação festiva. Segundo ela, mesmo que o ritual não fosse totalmente compreendido pelos presentes, todos respeitosamente acompanhavam as orações, assim como também acatavam a ordem de não consumir bebida alcoólica durante as apresentações. Em seguida o cortejo partia do Alto da Raposa para a Igreja Matriz, onde adoravam o Divino no altar, depois seguia pelas ruas cantando versos desvinculados entre si parando aqui e acolá nas portas das casas. 57


Uma vez acolhidos, iniciavam a apresentação seguindo uma sequência padrão que podia ser realizada na frente ou no interior da casa, mas sempre para um aglomerado de gente que, atraída pela folia, rapidamente se formava para assistir. Entre outras, nas casas dos comerciantes Amaro da Silva (ex-prefeito), Vicente Balbino, Da Cruz e Panta, o Reisado do Alto da Raposa tinha parada certa. Nelas sempre havia uma mesa farta a espera dos brincantes, que agradecidos, além das apresentações de praxe, faziam versos de improviso para agradar o dono da casa, tais como: Seu Da Cruz é prata fina, D. Lídia é ouro em pó E uma filha que eles têm É o jardim de Maceió. Dona Diva Nogueira lembra que juntava muita gente para vê-los dançar e cantar, na garagem da casa de Sr. Amaro, onde o Mateus cantava: Olé! Toda lagoa tem peixe, Toda velha tem me deixe, Toda moça tem carinho... Segundo ela, eram aproximadamente 30 pessoas, homens e mulheres, vestindo roupas coloridas cheias de brilho de lantejoulas e espelhos, 58


saias rodadas armadas de laquê e chapéus de cujas abas pendiam fitas coloridas com espelhos presos nas pontas. Produziam sons ritmados ajudando a marcar o compasso. Conforme relato de José Barbosa Lima, Seu Zezito, 79 anos, um dos dançarinos do Reisado de Petrolândia, na rua se cantava estrofes soltas de temas diversos, como por exemplo: É P palavra P papel P poesia P pão P padaria P padeiro P pintor Pavão voou por cima do Pererê Quando eu digo apague o P Você diz P apagou. Versos de saudade: Ô viva primeiro Pernambuco amado, Brejão, Bom Conselho, Garanhuns, Saudade dos meus, Estarem todos ao meu lado “Olinda, Rio de Janeiro, Pernambuco amado”. História da guerra: “Ô minha gente, quem não viu venha ver/Pai de família descer pra guerra e não voltar mais/Quanta mulher chorando por seus maridos/Tanta criança perdida, “ô mamãe, cadê papai” 59


ou Os “alemão” só trabalham em avião Mas é tudo comercial para tomar o Brasil/Tomar Brasil eu gemendo e eu chorando/Eu gemendo e eu chorado a baiana tem que ir. Ou ainda E eu só quero que homem e menino Porque tem destino, possam vadiar Nesta estrofe refletindo a volta para casa ao fim da guerra: Eu “tava” lá em Palmeira Fazendo feira quando o avião passou No campo de Canafístula, Moça bonita seu namorado chegou. Do cotidiano: Eu vi um peixe na beira d’água Corta o cabelo, Janaina e caia n água.

60


Também: Dona Maria eu não sei o que fazer Vou comprar um Jamecê pra senhora passear. Eu lhe pergunto onde é que quer morá Se na capitá do Estado da Bahia Românticas: Ô Maria me dá teu retrato, Coração ingrato que te dou o meu (Bis) Eu não te dou que eu não posso arrancar/Maria me dá teu retrato pra eu. Ou “Assubi” num coqueiro alto De lá dei um salto, quando avistei ela, Diz ô menina se dinheiro vogasse, Se o carinho voltasse pra eu casar com ela. E brincavam com aqueles que não lhes abria a porta: Ô seu Emídio já passei na sua porta Lá vi uma marmota me esqueci de lhe dizer /Uma cachorra “veia”, magra, rabugenta/Só tinha o pau da venta, parecia com você. .

61


Chegando às casas onde eram recebidos, a sequência de cantorias se dava quase sempre assim: Na porta da casa (abrição): Ô de casa, ô de fora, Ô de casa, ô de fora, Maria vai ver quem é, Maria vai ver quem é São os cantador de Reis, São os cantador de Reis, Quem mandou foi São José, Quem mandou foi São José. Canta Reis não é pecado, Canta Reis não é pecado. São José também cantou, São José também cantou. São José também cantou Neste dia de alegria, Mas depois de muito tempo São José também chorou. Porque viu seu filho morto, Pregado numa cruz por tanto amor. Louva-se a casa e seus moradores, tal qual ocorre com a Louvação ao Dono da Casa, muito 62


comuns nos autos encenados em Portugal, que no Nordeste do Brasil se incluiu elementos naturais do lugar: Senhor dono da casa, Olhos de cana caiana, Quanto mais a cana cresce Mais aumenta a sua fama. Entrando na sala: Entremos, entremos Em jardim de fulô. É do nascimento, É do Redentor. Na sala: Boa noite ô dono da casa. O senhor me desculpe Eu brincar no salão. Serra Grande, Catende, Custódia, Canta quem pode, sou eu campeão. Ou ainda como lembra Edna: Boa noite senhor e senhora (bis) Que eu cheguei agora venho de São Mudado. Era a coisa que eu queria ver meu mestre correr Com nós encostado. (bis) 63


Depois da ceia, louvam-se novamente os Donos da casa: Senhor dono da casa É quem pode vestir véu, É quem nós pode adorar Debaixo de Deus do céu. O sinhô dono da casa. Lá no céu tem um andô, Para o sinhô se assentá Quando deste mundo fô. Despedida: Sai fora e venha ver a lua E a estrela no céu muito apagada. Oi vamo simbora menina, Reúne seu batalhão, Que já é de madrugada. Dono da casa adeus que me vou, Até para o ano, se nós vivo for. Entre a entrada e a despedida apresentavam-se as “embaixadas”, ou “partes” do drama. O enredo conta a história da Lira, que levada pelo Rei dos Guerreiros à aldeia, é ameaçada de morte pelo Caboclinho, por ordem da Rainha com ciúmes do 64


Rei. Apesar da ordem, o Caboclinho propõe à Lira livrá-la da morte, desde que ela o aceite como marido. Como a proposta é recusada, o Caboclinho a mata, mas a Lira é ressuscitada por Mateus, que apesar de se apresentar como palhaço o tempo todo, age nesse ato como uma espécie de feiticeiro tal qual o folguedo do Guerreiro de Alagoas. O Auto apresenta uma luta de espadas entre os embaixadores do Rei de um lado e do Índio Perí de outro, normalmente composto por dois Mateus, Borboleta, Índio, Rei, Rainha, Embaixadores, Caboclinho, Estrela Dalva, Jaraguá, Boi, Cavalo Marinho e Joana Baia. O Mestre era Cícero Grande, Odilon Coveiro e Odilon do Quebra Queixo faziam o Mateus, que de cara pintada de carvão usava chapéu de palha e roupa de palhaço. Carminha, filha de Odilon Coveiro, ainda criança, era Borboleta, Paulo, irmão de Carminha, o Índio. Zé Lebre era um dos Embaixadores e Luiza de Manoel Andresa, a Rainha. O embaixador cantava: Esta noite eu sonhei um sonho (bis) Este sonho não era mentira. Eu vi o caboclo da aldeia dizer Vamos matar nossa Lira (bis).

65


Depois disso a Lira sai pedindo a cada figurante para que a livre da morte, até chegar à Rainha. Cantava a Lira ,segundo lembra Edna, sobrinha de Carminha, que costumava assistir ao Reisado do Alto da Raposa: Minha rainha eu vim aqui, Eu vim fazer um pedido a você. Eu te peço por Nossa Senhora Do Reino da Glória, Não deixe eu morrer. A Rainha responde: Minha Lira eu não posso atender Esse pedido que vem de você. Eu lhe digo por Nosso Senhor Do reino do amor você pode morrer. Os demais componentes repetem o refrão: Vamos matar nossa Lira! Vamos matar nossa Lira! Que foi o rei que mandou. Que foi o rei que mandou.

66


E começa a guerra de espadas entre os embaixadores até um deles escapar e matar a Lira, enquanto a Lira canta: Não me mate, desgraçado! Não me mate ,desgraçado.! Nessa aldeia de caboco. Nessa aldeia de caboco. A “Veia” era a versão feminina do Mateus, e segundo a lembrança de Olga, era chamada ao centro quando todos cantavam assim: Toca viola, toca maracá. Oi, lá vem mamãe veia, Que vem vadiar. Oi, lá vem mamãe veia, Que vem vai dar. E a velha dá corrupios e dança no meio do terreiro, onde o Mateus também pula e dá volteios até surgir o Jaguará: Ô que bicho feio/Virgem mãe de Deus Vem com a boca aberta Pra pegar Mateus.

67


Canta os embaixadores enquanto o Jaraguá corre atrás dos dois, dando volteio fingindo avançar em direção à plateia. O drama se encerrava com a ressurreição da Lira pelo Mateus. Diferente do Pastoril e do Reisado de Sergipe, no Reisado de Petrolândia não havia disputa entre os dois batalhões com arrecadação de ofertas em dinheiro. A produção do figurino, confeccionado à custa dos participantes, contava com a ajuda de doações arrecadadas pelos dois Mateus. Um mês antes das apresentações, eles saíam às ruas tocando pandeiro e cantando loas engraçadas em troca de “uns trocados”. Resguardadas as proporções, de certa forma o Reisado representava para aquela gente pobre do Alto da Raposa o mesmo que o carnaval para as comunidades dos morros do Rio de Janeiro. Assim como lá, lavadeiras e carroceiros, gente simples da periferia, transvestidos em reis e rainhas, tinham seu dia de glória.

68


Entrudo Festa popular com raízes em práticas medievais de preparo à quaresma e tradições romanas pagãs, o entrudo foi o principal embrião do carnaval de rua do Brasil. Divertida brincadeira anárquica muito apreciada pela população, chegou ao Brasil através dos portugueses. Taxada como prática selvagem por intelectuais e jornalistas, sofreu grande combate por parte das autoridades do século XIX. Apesar das constantes proibições era praticado na rua e tinha como principal característica a brincadeira de jogar talco ou polvilho uns nos outros, além de água limpa, lama, tinta e até urina. No entrudo de Petrolândia, as “vítimas” eram agarradas e jogadas no rio com roupa e tudo. Crianças e os jovens também “armavam-se” de latas de água, e às vezes até de outros líquidos como urina, para molhar umas às outras numa verdadeira batalha. Esse mela-mela acontecia sempre nas manhãs do domingo de carnaval. Atravessar a D. Pedro II naquela hora era uma verdadeira aventura para os que gostavam e um terror para quem não apreciava a brincadeira. Esses, claro, eram os preferidos da meninada na hora de perseguir.

69


Dadas as confusões geradas por tais brincadeiras detestadas por muitos, o entrudo aos poucos foi sendo substituído pelo Zé Pereira, forma também improvisada de brincadeira de rua, aonde um batuque qualquer vai naturalmente atraindo outros batuques e sem organização prévia o povo abre o carnaval no sábado á noite. Por muitos anos na década de 70, o professor Alberto Celso, sério docente do Colégio, arrastou gente no Zé Pereira. A batucada começava em frente ao Clube e seguia pela D. Pedro II até a difusora de Panta, juntando gente à folia e apreciadores nas calçadas. À frente da troça, Pavão (motorista da Suvale), alto, magro e pulando muito, incorporava o Zé Pereira. Pronto. Juízos desligados até a Quarta-Feira de Cinzas. Começava o carnaval.

70


Carnaval Tempo de liberdade e alegria quando o mais sério dos homens se transforma em figura irreverente, no carnaval de Petrolândia não é diferente há muito tempo. Mantido até 1936, o Papagaio Falador é o mais antigo bloco que se tem notícia. Seu fundador, João Leal, comerciante, de família tradicional, tesoureiro da paróquia, homem sério, não resistia ao carnaval. Enquanto às moças cabia assistir, a ele se juntavam rapazes da alta sociedade, funcionários da estrada de ferro, coletoria e empresários que, irreconhecíveis, caiam na folia pelas ruas da cidade. Os versos cantados pela troça, “Os filhos da Candinha”, publicados no Correio do Sertão, de 03.03.1935, citando os nomes dos participantes nos permite ter uma ideia de como isso acontecia: Calvo, magrela e bonito. Faceiro, gentil e guapo, Djalma passa cantando Fazendo o passo do sapo. (Djalma Menezes)

71


Tomando muitas pitadas Com o tabaqueiro na mão, Faz o passinho da ema O Tertinho Aragão. Calado, manso, tristonho, Pula Chiquinho Delgado. Dando gritos, dando saltos, Como um bicho sapecado. Lero Lima muito ancho Esquece a tipografia. E fazendo manhoso passo Vira bamba na folia. E esse grupo famoso Que é um bicho de linha, É o grupo conhecido Dos “Filhinhos da Candinha”. “Os amigos da Farra”, outra troça da mesma época, cantavam assim: A vida de nada vale Para quem vive de azar. Ela é boa pra quem vive Sempre e sempre a pandegar.

72


Todos os amigos da farra Vivem bem, vivem benzão. Quando dentro do furdunço Misturam pés com as mãos. Depois vieram, entre outros, o Mocidade em Folia de Nicó e Camisa Velha em Folia de João Miguel. O Diário de Pernambuco informado pelo jornalista Hildebrando publicava na sua “COLUNA PELOS MUNICÍPIOS": O CARNAVAL EM ITAPARICA – Não passaram despercebidos em nosso meio os três dias dedicados ao Momo. A véspera foi marcada por ruidoso Zé Pereira, que trouxe reboliço às principais ruas da localidade. Exibiu-se nos três dias o Bloco Mocidade em Folia, que alcançou regular sucesso. Houve diversos bailes (DP edição 62, de 15.03.1938) O Vencedor, organizado por Mãezinha, esposa de Pantaleão, o conhecido Panta, continuou levando a tradição do carnaval pelas ruas da cidade por toda sua vida. Nos anos 70, entre as alegorias inseriu bonecos gigantes e deu ao bloco o nome do hotel de sua propriedade. O Planalto em Folia fazia o carnaval

73


de rua mais glamoroso e democrático da cidade. Das performances em carro alegórico ao povão de pé no chão, a diversão era de todos garantida pelo som da banda, que tocando ao vivo, não deixava ninguém ficar parado. Contava seu filho Rosilvaldo ter ouvido do famoso Silvio Botelho, o relato de como se deu a confecção dos bonecos gigantes de Petrolândia.

Bonecos de Walney Araújo, inspirados nos bonecos de Pantaleão- Carnaval 2017/Foto: Blog Sertão News.

Diz que um belo dia chega a sua oficina um senhor dizendo que queria encomendar dois bonecos gigantes, a exemplo do Homem da Meia Noite e a Mulher do Dia, de Olinda. Sem dar muito crédito ao pedido ele informa o preço (nada barato) e o homem vai embora deixando marcado o dia de receber a encomenda. 74


Na data marcada chega Pantaleão com um caminhão para levar os bonecos encomendados. No bolso, em dinheiro vivo, a quantia combinada. Silvio Botelho, que não acreditou na possibilidade de ter alguém de uma cidade pequena como Petrolândia com essa coragem e condições financeiras para tanto, ficou morto de vergonha. Pediu desculpas e marcou nova data para a entrega dos bonecos, desta vez de fato confeccionados e entregues. Com os bonecos o bloco chamava mais ainda a atenção. O povo aguardava ansioso nas calçadas para ver passar o bloco do povão com seus gigantes, tendo Zé Fernandes e Zé de Merosa com suas perucas e paetês no abre alas. Mantido pela família, o bloco fundado nos anos 70 continua desfilando na nova cidade. Em homenagem póstuma ao fundador mais um boneco gigante (de branco) foi acrescentado.

75


Boneco do Bloco Leão Folia em homenagem póstuma à Pantaleão- 2017/Foto: Blog Sertão News.

Várias troças brincavam na rua “da frente”, como era chamada a Av. D. Pedro II, da velha Petrolândia. No meio de toda essa folia, destacavamse as figuras de Nicó. Mulher negra, descendente de escravizados, amante do carnaval, ela não perdia um desfile.

76


Nicó no carnaval de rua/Blog Assis Ramalho.

Já na nova cidade, aos 80 anos, fazia questão de esquecer a idade e caia no passo com os mais jovens sem pudor. Assim também fazia Nô, folião solitário, que vestido de mulher transformava seu guarda chuva em sombrinha de frevo e desfilava inebriado de álcool e felicidade pelas ruas da cidade, como diz, o hoje sábio advogado petrolandense, Manuel Gabriel.

77


A irreverência era grande, mas todos brincavam sem problema, afinal todo mundo se conhecia. Quer dizer… nem sempre. Uma vez, em meio à fuzarca de uma troça, um dos rapazes avistando um soldado colega do ginásio dá-lhe um banho de talco sem se importar com o fato dele estar naquela hora em serviço, fardado. Irreverente, achou que o coleguismo estava acima da farda. Resultado: foi parar na cadeia por desacato. Foi um Deus nos acuda! A Turma da Pesada teve que parar a batucada, gente chorava, a folia acabou, o carnaval perdeu a graça. Foi uma tristeza. Tentaram conversar com o soldado, pedir para retirar a queixa, ele nem quis saber. Alguém lembrou de recorrer ao prefeito José Araújo. Foi a solução. Amigo solto, refeito do susto, algumas cervejas bastaram para o retorno da alegria. Nas manhãs de carnaval esta mesma troça, a Turma da Pesada, formada por Alberto de Geremias, França de Cecídio, Tadinho, Nilson Dantas, Wilton, Protázio, Toinho de Vicente e outros, circulava com talco e batucada nas casas dos “intimados”. Na casa de Zé Marcelino, Zé de Caboclo, Afonsinho, Chiquinho de Amaro, Zé Ferraz e do Prof. Gilberto Menezes, os litros de batidas de maracujá e caipirinha ficavam à espera. Chegavam cantando, batucando, inundando a casa de talco e alegria. Tanto bebiam como levavam o “combustível” da andança. 78


Outra turma do barulho histórica, foi a Caravana da Alegria.

Caravana da Alegria/Foto: Clarice Araújo.

Organizada por Fátima Pariconha e sua turma, neste, a participação feminina começava a despontar. Certamente por isso era uma troça mais organizada. Trocava de fantasia a cada ano e tinha até marchinha própria como abre alas que dizia assim:

79


Estão vendo quem acaba de chegar, Caravana da Alegria saudando o povo do lugar... Não é água não, não é bafo de boca. É a Caravana deixando a moçada com água na boca. No carnaval de 1980, já mais próximo do fim da velha cidade, surge a Turma do Tacho de uma brincadeira dos amigos Assis Ramalho (blogueiro), Edson Madeira, Juracy, Zé Roberto (Magrão), Adalberto (Carioca), Arnaldo (Dé) e Vicente do BB.

Turma do Tacho - 2016/Foto: Blog Assis Ramalho.

No Bar da Rosa, bebendo, como de costume, enquanto esperavam o Bloco de Panta passar, por pura brincadeira, resolveram roubar o 80


pote de barro onde a amiga Rosa guardava a água naturalmente fria que servia aos consumidores de suas cocadas, também vendidas naquele estabelecimento. Depois de distrair a dona, levaram o pote e, na maior algazarra e alegria pela conquista com sabor de pecado, enchendo o “troféu” com toda sorte de bebida. Seguiram o Bloco de Panta com o pote na cabeça bebendo e distribuindo o “goró” aos passantes. Foi tanto sucesso que o bloco existe até hoje. Além dos blocos e das troças, havia também o famoso corso do povo de Barreiras no domingo à tarde, quando um grande número de carros se deslocava para desfilar em Petrolândia a fim de mostrar quem fazia o carnaval mais animado.

81


Mas nem só na rua havia carnaval. Animados por orquestras e muito lança perfume, os bailes nos clubes de Petrolândia e Barreiras também eram concorridos, apesar de não acessível a todos. Só moças e rapazes “de família”, com condições de pagar entrada podiam entrar.

Carnaval no Grêmio de Petrolândia- 1976/Foto: Paula Rubens.

82


Cada clube procurava superar o outro, caprichando na animação e nas fantasias, numa rivalidade antiga herdada do futebol.

Carnaval no Colonial de Barreiras/Foto: Saúde Nanuca.

Mas veio a barragem e o DP edição 51, pag. 5 do segundo caderno de 21.02.1976, noticia: Petrolândia esforça-se para animar o Carnaval – “O grêmio Recreativo da Cidade”, à frente o presidente Manoel Mário da Silva, está investindo 40 mil, com a contratação de orquestra, ornamentação, iluminação e outras promoções para realizar um dos mais animados carnavais dos últimos tempos. 83


A orquestra do Maestro Josemir Carvalho, de Belo Jardim, tocará para as festas carnavalescas do Grêmio e apesar dos atropelos causados pela construção da barragem de Itaparica, as ruas receberão decoração especial, motivando clima de animação entre os habitantes. O carnaval de rua também promete novidades para os foliões. Com expectativa (...) pela agremiação Planalto em Folia que este ano apresentará fantasias de luxo. Além das tradicionais escolas de samba locais, sairá às ruas o bloco Turma da Pesada, integrado por Petrolandenses universitários que estudam no Recife e em Salvador.

84


E o último carnaval chegou:

Foto: Saúde Nanuca.

. E em março daquele ano já não havia mais rua, nem clube, nem cidade...

85


Os Penitentes “Penitentes são seitas secretas herdeiras de mitos e práticas implantadas pelos padres missionários em suas peregrinações pelo Sertão, em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. A penitência está associada a solidariedade à terra, ao dever do homem para com seu criador e a remissão dos pecados do mundo”. Esta definição utilizada por diversos pesquisadores, foi a adotada pela então jornalista, Cristina Tavares, em seu artigo sobre o tema publicado no Diário de Pernambuco, resultado de sua pesquisa realizada em Petrolândia durante o ano de 1970. “Ligados normalmente por parentesco ou compadresco os penitentes de Petrolândia tinham seus grupos mais representativos os do Brejinho e de do Riachão. Suas procissões se realizam à noite, em caminhadas que poderiam continuar até o amanhecer. Sua ação litúrgica é caminhar.” “Até pouco tempo era comum a prática de auto suplício que se fazia com chicote de couro tendo na extremidade uma lâmina afiada como uma gilete”

86


“O beato cumpre a penitência deixada por Deus e isso ajuda a tornar a terra fértil e as chuvas mais abundantes” (Cristina Tavares Correia no DP Ed. 114. De, 17.10.1970) Tradição vinculada a Igreja Católica, cujo ritual parece retratar o percurso de Cristo ao Calvário, é um movimento que remonta a Idade Média, formada por leigos, homens simples, em geral de origem rural, católicos abnegados, de moral insuspeita, que tendo a cruz como símbolo maior de adoração, se auto penitenciam a fim de lembrar o sofrimento de Cristo, obter o perdão dos pecados seus e da humanidade e as farturas advindas da terra. Introduzida no sertão desde sua colonização, esta cultura bíblica permeada por mitos, crenças, valores e princípios morais chegou a Petrolândia através dos padres missionários fundadores da Aldeia do Brejo dos Padres2. Uma vez incorporadas ao sistema de crenças e práticas do povo Pankararu, passou a ser adotada por parentes índios e não índios e propagada pela tradição oral. A adesão à irmandade dos Penintentes se faz após julgamento de avaliação sobre a conduta do 2 Matta, Priscila, in Dois elos da mesma corrente: os rituais da Corrida do Imbu e da Penitência entre os Pankararus

87


pretendente, que deve se mostrar física e moralmente apto. Não beber, não fumar, não provocar desordens, não cometer crime de morte e ser casado na igreja, são algumas das condições exigidas. Há, também, um código de honra estabelecido para garantir o segredo sobre a identidade dos participantes. Apenas o Decurião (chefe e mestre disciplinador das Irmandades de Penitentes), pode se revelar. Uma vez aprovado, o novo membro acompanha o grupo por um ano aprendendo rezas e hinos e conhecendo de perto o sofrimento ao qual se submeterá. Somente após esta vivência poderá encomendar a sua “disciplina”, chicote de couro com lâminas de metal na ponta, instrumento utilizado na prática mais dolorosa entre todas as penitências a que se submetem. “Os penitentes praticam o ritual de dor por solidariedade à terra. A religião para eles é sofrimento. Tanto é assim que só comemoram as festas dolorosas, como a semana santa, ignorando o Natal, que para eles não tem nenhuma significação” (Cristina Tavares) As penitências começam na quarta-feira de cinzas e prossegue até o sábado de Aleluia, quando bem feitas duram sete anos, depois disso a graça está paga e o penitente pode abandonar o grupo se quiser. 88


Dita a regra que durante a quaresma o penitente não pode comer carne, tomar bebidas alcoólicas ou manter relações sexuais. Antigamente não podia nem se despir na presença de qualquer pessoa que não fosse penitente. Alguns não tiravam a camisa nem diante das próprias mulheres, despidos, as cicatrizes mostrariam que são penitentes e o código de honra exige segredo. Mas a maioria das esposas acabavam sabendo e guardava segredo, “Não tava nem azeda de contar!”, diz a esposa de um deles, ao ser entrevistada. Salvo algumas pequenas variações, os diversos grupos penitentes do Nordeste vestem por sob a roupa, longas túnicas de tecido azul ou preto contendo cruzes que variam em quantidade e tamanhos. Na cabeça usam boina com véu cobrindolhes o rosto, à exceção do Decurião3 que permanece com o rosto á mostra. A vestimenta adotada pelos penitentes de Petrolândia, segundo relato de Jorge de Ernesto (80 anos), segue o mesmo padrão. Usam túnica azul estampadas com quatorze pequenas cruzes brancas (mesmo número das estações da via sacra). Na cabeça quepe redondo de tecido azul sem aba, estilo africano, com um véu branco a esconder o rosto.

3

Líder condutor e disciplinador da irmandade

89


Até pouco tempo a peregrinação costumava ser iniciada após se reunirem no mato, em geral próximo ao Brejinho de Fora, por volta de meia noite nas quartas, quintas e sextas-feiras da quaresma. Rezadas as primeiras orações, tendo uma enfeitada cruz de madeira á frente, o cortejo partia rumo à igreja onde diante do altar cantavam: Deus vos salve Casa santa Onde Deus fez a morada Onde mora o Calix Bento E a hóstia consagrada Deus vos salve casa santa Onde Deus fez a morada Toda coberta de estrela E de ouro toda ornada Deus vos salve casa santa Que viemos visitar Os santos todos E o padroeiro do lugar Valei-me Jesus. (3 vezes) De lá marchavam para o cemitério cantando, rezando e arrastando as lâminas do chicote pelo chão, enchendo a noite de um som triste, assustador. A população trancada em casa, em silêncio, ouvia 90


assombrada. Em sinal de respeito ninguém se atrevia a abrir a porta. Mas a curiosidade vencia o medo e das frestas das janelas, no escuro da sala, tentava-se assistir a passagem deles pela rua. Algo raro, uma vez que preferiam se deslocar pelos arredores, evitando o centro da cidade. Ao chegar ao cemitério, em saudação cantavam: Deus nos salve ó Campo Santo Que viemos visitar Visitar as almas todas E o padroeiro do lugar O ritual seguia entre cantos e orações pela salvação das almas proclamadas nas sepulturas de penitentes falecidos e seus parentes. Em seguida tornavam a andar, agora em direção ao Serrote do Padre para adorar o Cruzeiro no alto do Serrote. No percurso vão se detendo em cada cruz de acidentados fincadas na beira da estrada, a fim de rezar pela alma do falecido. Diante do cruzeiro entoavam cantos de adoração à cruz, tais como: Que estás fazendo cruz bendita Debaixo de sol sereno Com os poderes de Deus Pai Cruzeiro do Nazareno 91


(repete três vezes em volta do cruzeiro) Deus nos salve cruz Do altar sagrado Onde o bom Jesus Foi crucificado (3x) No caminho às vezes paravam em alguma casa, em atendimento a pedidos de pagamento de promessas, onde proclamavam orações de oferecimento do tipo: Ó meus irmãos, vamos oferecer essa penitência de hoje à sagrada morte e paixão do Senhor Jesus Cristo. Ó meu Senhor Jesus |Cristo, Senhor do meu coração/Aceitai a penitência e nos dê a salvação/Aqui estão os penitentes Pedindo a Deus perdão Perdoai nossos pecados, Vós sabeis quantos são. (3x) Terminada a obrigação, antes de seguir a caminhada, despediam-se da casa cantando: Vamos dar a despedida É hora de nós viajar E meia noite deu hora Deus nos queira acompanhar 92


À meia noite deu hora Dos Penitentes andar Acompanhai a todos nós Até quando nós chegar (repete) Junto com a Virgem Maria Acompanhai nós todos Hoje, amanhã e todo dia (repete) Pelos três cravos na cruz Acompanhai a nós todos Junto com meu bom Jesus (repete) Para todo sempre amém! Acompanhai à todos, Para todo o sempre amém! Cada penitente levava consigo sua “disciplina”, com a qual se auto açoitavam durante a caminhada, de modo a ferir as costas a ponto de sangrar. Porém, em função do risco de infecções decorrentes dos ferimentos, essa prática acabou sendo proibida pela igreja no final dos anos 60. Passados dez anos, quando entrevistado pela então jornalista Cristina Tavares, o Decurião Adelino do povoado do Riachão ainda se queixava dos efeitos dessa mudança: “A lei hoje não está mais como a lei que eu conheci nos tempos do decurião Henrique o 93


bisavô desse menino aí, nunca ficou uma trovoada sem o riacho encher. Se a penitência foi dada por Deus, ela tem que ser cumprida. Hoje o que a gente vê é o riacho que nem cascão.” Queixa esta hoje reforçada pelo atual Decurião que afirma como num lamento: “Penitente sem “disciplina” não é mais penitente.” Em Petrolândia restam poucos penitentes praticantes, apesar de até bem pouco tempo contar com dois grupos: o masculino, dos Penitentes ou Disciplinadores, como também são conhecidos em alguns lugares, e a Ordem das Mulheres de Branco da Santa Cruz (as rezadeiras de almas), só de mulheres, que se apresentavam vestidas de roupa branca ou em lençóis brancos a cobrir-lhes o corpo e a cabeça. Formada, em geral, por esposas e filhas de penitentes, essa ordem feminina teve início no Brejo dos Padres em 19404, fundada por Maria Bárbara, líder religiosa do lugar. Numa época em que a presença do padre era coisa rara, Maria Bárbara assumia os trabalhos religiosos, organizando terços e novenas. Além da fundação da Ordem, foi dela

4Matta, Priscila, in Dois elos da mesma corrente: os rituais da Corrida do Imbu e da Penitência entre os Pankararus

94


também a iniciativa de instituir a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, na aldeia, em agosto. Apesar de praticarem ritual semelhante ao grupo masculino, como a adoração à cruz e a reza pelas almas, entre as mulheres não se aplica a “disciplina”, nem o anonimato. A penitência está restrita à oração diária do terço. Cabe às participantes da Ordem, segundo Danúbia, a qualquer tempo, rezar nas casas que aceitam receber a imagem de Nossa Senhora, rezar de quebranto (mau olhado) e recomendar almas em velórios, cantando “Excelências”. A Excelência é um canto entoado à cabeça dos moribundos ou mortos, que na linguagem do povo simples passou a chamarse “Incelência”, como no verso a seguir: “Uma incelência da Virgem Nossa Senhora/Amanhã muito cedo esta alma vai embora/Ela vai embora com a dor no coração/Adeus meu povo todo, adeus meus irmãos”. Segundo Luiz Vicente do Nascimento, Lula, atual Decurião dos Penitentes de Petrolândia, homens e mulheres não se misturam durante a prática dos rituais. Caso os dois grupos sejam chamados a atender uma penitência na casa de alguém, o grupo que chegar primeiro reza se recolhe a um ambiente interno da casa, depois o outro grupo chega para continuar a rezar. O Decurião conduz os 95


benditos e os demais, homens e mulheres, respondem de onde estiverem. Essa divisão fica bem demonstrada neste refrão lembrado por Lula: “Sai daqui mulher que aqui ninguém lhe quer/ que aqui nesse rebanho não pode entrar mulher” Sujeitas a um código moral semelhante ao dos penitentes, as Mulheres de Branco são proibidas de usar cabelo curto, unhas longas, fazer sobrancelhas, e usar “moda”, ou seja, roupa justa e curta, conforme explicou Danúbia, última líder do grupo penitente feminino de Petrolândia. Danúbia era filha de Cícera Maria da Silva e Paulo Pereira da Silva, nasceu em Mata Grande, em 10.08.1952. Veio morar em Petrolândia com apenas um ano de nascida, quando o pai começou a trabalhar no desmatamento para instalação dos postes que receberam as primeiras linhas de alta tensão da CHESF. Ela contava que havia entrado para a irmandade através de convite de Dona Candinha, líder anterior, nascida no Brejo dos Padres, cujo pai, penitente, antes de falecer pediulhe que não deixasse morrer a tradição. Apesar de em sua maioria serem devotos de Nossa Senhora da Saúde, das Dores, Padre Cícero e de São Francisco Penitente, entre outros santos, em geral os penitentes não são freqüentadores assíduos das igrejas. Mas, na Festa de Nossa Senhora da 96


Saúde, em Tacaratu, a celebração da noite de novena a cargo dos Penitentes e das Rezadeiras da Santa Cruz lota a igreja, ajudada pela participação dos demais penitentes da região. Rara ocasião onde homens e mulheres rezam juntos. Em Petrolândia, no entanto, apesar da boa relação com o clero, a atividade dos penitentes na cidade sempre foi periférica, sem nenhum papel relevante como a participação em novenas do Padroeiro, a exemplo do que ocorre em Tacaratu. O apoio da paróquia se restringe a abertura da matriz durante a madrugada nos dias de peregrinação e a guarda da cruz na sacristia enquanto não é usada. Com as rezadeiras não foi diferente. Com a mudança provocada pela barragem, muitas delas passaram a morar na cidade e como de costume reuniam-se regularmente na casa da Líder para a rezar o terço, além de cumprir com as demais obrigações da ordem. Mesmo assim, em nenhum momento foram chamadas a assumir tarefas na igreja, nem mesmo as exéquias, serviço de poucos voluntários. O contrário do que corria na área rural, onde a devoção popular não espera por padres e por isso tiveram papel relevante no fortalecimento da fé do povo. Apesar de por muitos anos ter contado com razoável número de integrantes, com a morte de Danúbia em 2018, não se teve mais notícia de 97


continuidade da Ordem da Mulheres de Branco na cidade e nem na área rural de Petrolândia, provavelmente em função da idade avançada das demais participantes. Por outro lado, a irmandade masculina dos Penitentes que ainda sobrevive vem minguando com o tempo, muito pelas condições de saúde dos antigos participantes, em decorrência da idade, e pela dispersão no novo território dificultando o encontro. Os poucos que restam, para não deixar de cumprir com suas obrigações, na quaresma costumam se unir aos penitentes de Gloria (BA). O atual Decurião se queixa que os mais velhos estão morrendo e o movimento tende a se acabar por falta de interesse dos mais jovens. “Qual é o jovem hoje que quer pagar penitência?”, pergunta ele em tom resignado.

98


Malhação do Judas A malhação do Judas, segundo o folclorista Câmara Cascudo, é uma tradição que tem sua origem na Península Ibérica e chegou ao Brasil no período colonial. Consiste na confecção de um boneco feito de panos velhos, recheado de palha, a ser rasgado e queimado no final do Sábado de Aleluia. Não se sabe como esse costume veio para Petrolândia, mas nos anos 60, quando o domingo de Páscoa amanhecia, um boneco de pano do tamanho real de um homem já estava amarrado ao poste da principal praça da cidade, sem que ninguém o visse sendo colocado lá. Normalmente era preso no alto do poste no giradouro em frente ao Abrigo Estudantil e trazia nos bolsos um “Testamento”, carta anônima contendo críticas e anarquizando pessoas da cidade. Izabel Ferraz (Bezinha), ainda lembra-se de um rapaz que chegou a Petrolândia encarregado de aplicar vacinas na região. Trabalhava de farda e todos os domingos lá estava ele na missa, sempre vestido numa camisa de cor rosa. O Judas não perdoou: Para o rapaz da vacina, De aparência garbosa Deixo uma camisa azul

99


Para substituir a rosa. As pessoas se juntavam ao redor do Judas para ouvir a leitura da tal carta e dar muitas risadas, em seguida o Judas era rasgado e queimado. Hoje se sabe que tal façanha era providenciada por Zé Sobreira, e os amigos José da Cruz e Pedro Mestre, dois dos mais animados foliões petrolandenses, que também “roubavam” charretes, burros, cavalos e bodes para amarrar junto ao Judas como parte da herança.

100


Quadrilhas Juninas De origem francesa, era a dança da mais alta elite social, abria os bailes da corte em qualquer país europeu no século XIX. Também foi preferida no Brasil pela sociedade palaciana. Já no final do reinado de D. Pedro II, desceu as escadarias do palácio, perdeu seus ares aristocráticos e refugiou-se no sertão. Os participantes de hoje a consideram uma dança brejeira de origem caipira. No Nordeste, a quadrilha é uma dança típica da época de festas juninas. Há um animador que vai anunciando frases, a maioria em francês, e ditando os momentos da dança. Os dançarinos (casais) vestidos com roupas típicas da cultura caipira (camisas e vestidos xadrezes, chapéu de palha) seguem fazendo uma coreografia especial. A dança é bem animada com muitos movimentos e coreografias. Os termos em francês foram sendo adaptados ao linguajar nordestino, como por exemplo: Alavantú (en avant tous)- todos os casais vão à frente. Anarriê (en arrière) - casais vão para trás. Changê (changer/changez) - trocar/troquem o par. Cumprimento 'vis-à-vis', ou seja, frente a frente. Otrefoá (autre fois) - repete o passo anterior.

101


Quadrilha Junina na escola Foto: Dulce Maria.

Vicente Balbino, nascido em 1902, até os anos 70 foi o animador de quadrilha junina mais requisitado de Petrolândia. Organizava, ensaiava e promovia as quadrilhas do clube, para adultos e nas escolas com as crianças, quando convidado. Não havia obrigatoriedade de vestimenta padronizada, cada um escolhia seu par com antecedência, ensaiava bastante e participava com sua melhor fantasia. Cada ensaio já era uma festa. O encontro, os flertes, o riso, a dança iam gerando um clima de animação culminada no dia da apresentação.

102


Esse tipo de quadrilha ainda é bastante apreciada em Petrolândia. Seja dançada de improviso, nas festas de São João nos clubes ou nas escolas, onde as professoras continuam a organizar apresentação por turmas. No São João da Paróquia, desde 2003, se mantém a tradição da quermesse com barracas de comes e bebes, montadas em frente à Matriz e apresentações de quadrilha de crianças das escolas, dos grupos jovens e da terceira idade.

São João da Paróquia 2017/Foto: Assis Ramalho.

103


"Padre" e "Noiva" do Grupo Reviver -São João da Paróquia de 2010/Foto: Assis Ramalho.

Mas as quadrilhas se modernizaram. Ganharam compasso mais acelerado, novas coreografias e, semelhante às escolas de samba, passaram a participar de campeonatos regionais, com premiação em dinheiro. Apresentam-se em figurino luxuoso e enredos criativos bem elaborados que vão muito além do simples casamento matuto, muitos são verdadeiras aulas de história e cultura. A Junina Brilho Matuto, de Petrolândia, representa muito bem essa nova modalidade de quadrilha.

104


Quadrilha Junina Brilho Matuto no 16º São João da Paróquia 2019/Foto: Blog Assis Ramalho.

Formada por um grupo de jovens, em sua maioria da Igreja católica, fez sua primeira apresentação em 2013, no São João da Paróquia, com muito brilho, fazendo jus ao nome. O objetivo era envolver os jovens em atividades culturais, independente do credo religioso professado. Hoje o coletivo participa de competições no Estado e é convidado a se apresentar na região. As peças do figurino são confeccionadas, em geral, pelo próprio participante com a ajuda de patrocinadores ou de recursos adquiridos em atividades promovidas pelo grupo, como rifas e vendas de lanche durante o ano. 105


Dança de São Gonçalo São Gonçalo, celebrado anualmente em 10 de janeiro, é o santo protetor dos ossos e das pessoas que buscam por um bom casamento. É também o padroeiro dos violeiros. Evangelizador empenhado, conta-se que para converter as prostitutas, organizava animadas danças ao som de sua viola durante todo o dia de sábado, até se cansarem, de modo à não caírem na tentação no domingo. Trazida para o Brasil pelos Portugueses, a dança foi utilizada na catequese dos pecadores e inicialmente apresentada nos templos religiosos católicos. Considerada de caráter mundano, acabou sendo proibida pelas autoridades eclesiásticas e passou a ser realizada nas áreas rurais, onde ainda subsiste como pagamento de promessa ao Santo. Na dança de São Gonçalo, também conhecida por “roda”, dançam homens e mulheres, em duplas, sem necessidade de par, tendo como personagens o Mestre, tocador de viola; o Contramestre, tocador de meia-cuia ou meia cabaça e dois Guias que são sempre os segundos de cada cordão. Executam coreografia em roda e movimentos variados conhecidos por tesoura, meia-volta, roda viva, rolo, cruz, prisão e outras.

106


Não há figurino específico, cada um entra na roda com a roupa que tem. Mas ultimamente os figurinos foram sendo adaptados, sendo mais comum vestir todos de branco, com quepes e turbantes, colorindo o figurino com fitas. O São Gonçalo de Sergipe, por exemplo, usa branco com saias estampadas, para homens e mulheres, e fitas coloridas que vão de um dos ombros até a cintura. Agostinho Francisco Vieira (Augusto do Riachão), 93 anos, apreciador da dança de São Gonçalo desde menino, conta que Maria Ultra do Nascimento e Adelino José de Sousa, foi o casal precursos da dança por lá. Adelino, nascido em Serra Talhada, e criado no Riachão, aos dezoitos anos já organizava a dança juntamente com seu pai José França, que tocava a viola enquanto Adelino, com um pauzinho, fazia o batuque na cuia, hoje substituída pelo pandeiro. “Alcancei ele dançando... ele já era um home de idade. Nós comecemos por ali e lai vai... Dançava a gente do Riachão e tinha gente do Brejinho da Serra”.., conta Augusto do Riachão. A dança de São Gonçalo acontece na casa de quem quer pagar uma promessa ao santo, em qualquer dia a ser combinado com o pagador da promessa que providencia transporte, comida e 107


bebida para os participantes. Assim lembra Augusto: “Naquele de primeiro a pessoa fazia uma promessa: Meu divino São Gonçalo que eu fique bom desse incômo pra eu pagar uma promessa pra vós. Quando dava fé a pessoa fica boa.” No terreiro, armava-se uma latada de palha, piso de barro molhado desde a noite anterior para baixar a poeira, uma mesa servia de altar. Matava-se porco e bode para receber os dançadores, apinhados nas carrocerias dos carros que saiam de casa cedinho. Chegando tomavam café e começava a festa. Perfilados em duas filas, tendo os tocadores à frente, iniciavam a dança saudando o altar, conforme as lembranças de Dona Bebé, uma das dançadoras do Riachão, hoje aos 81 anos: Deus vos salve ó casa santa, onde Deus fez a morada, onde mora o cálix bento e a hóstia consagrada. Até a hora do almoço os cantos de repetição ao som da viola e da cuia não paravam: São Gonçalo do Amarante, quem te trouxe nessa terra? Foi o ar de uma viúva e o suspiro de uma donzela. 108


A dança de São Gonçalo dura o dia inteiro com intervalo para o almoço. Bebida alcoólica não é permitida, só o aloá5. A palavra Aloá vem do Quimbundo, língua falada em Angola. É uma adaptação do hebraico Eloah, que significa “Deus” ou um espírito relacionado ao poder universal, originalmente a palavra era usada como demonstração de afeto, paz, misericórdia e compaixão. É também usado com este significado místico para cumprimentar ou despedir-se de alguém em algumas culturas indígenas. Nas festas de São Gonçalo do Riachão o aloá ajudava a refrescar o calor provocado pela dança e era muito apreciado. Com o tempo, desvinculado de seu sentido místico, foi sendo substituído pelo refrigerante. Após o almoço, a dança e a cantoria continuvam com versos assim: Margarida diz que vai Se mudá pro Moxotó Com sua saia de chita E Sapato de filó. São Gonçalo apareceu 5 Bebida fermentada, da tradição afro-indígena, também feita com abacaxi ou milho, em algumas regiões.

109


Lá na praia no sol posto Com uma estrela no braço Outra na maçã do rosto. À tardinha a festa chegava ao fim. Era preciso voltar para casa e o verso avisava: Vamos dar a despedida Como deu a saracura. Meu divino São Gonçalo Coisa boa não “adura”... Embora poucos, ainda há remanescentes dançadoras e dançadores das rodas de São Gonçalo na área rural e urbana de Petrolândia. Porém não há mais um local de maior concentração, como havia no Riachão de antes, que para formar uma roda de São Gonçalo não precisava data especial, bastava alguém se animar a começar e todo mundo entrava na dança. Atualmente, sem nenhum grupo organizado, os remanescentes do Riachão que ainda se animam a dançar, se agregam à turma de João da Cebola (antigo morador do Riachão, hoje residente em Rodelas-BA), que vez por outra é chamado a organizar rodas de São Gonçalo em pagamentos de promessas na região. Exemplo dessa prática ocorre no Brejinho , onde anualmente, em dezembro, mantendo a tradição do pai, o empresário Armando Rodrigues realiza uma roda de São Gonçalo comandada por João da Cebola. 110


“Mas, o povo da Bahia dança mais avexado”, diz Dona Bebé, antiga “dançadeira” do São Gonçalo do Riachão.

111


Rituais Índígenas O Povo Pankararu, instalado no Brejo dos Padres, na divisa entre Tacaratu e Petrolândia, parte hoje pertencente ao município de Jatobá (PE), é dono de uma cultura riquíssima, e tem em seus ritos sua principal e mais singular forma de manifestação. É interessante notar que, embora pouco conhecidos localmente, o ritual Pankararus é objeto de estudo de inúmeros pesquisadores que já produziram dezenas de teses de mestrado sobre o assunto. Ubirajara Fernandes Barbosa, ex-Secretário para Assuntos Indígenas do Município de Petrolândia, nascido no Brejo dos Padres, fala com prazer e orgulho sobre sua gente, mas deixa transparecer certa preocupação com relação ao súbito interesse dos “novos índios”. Hoje todo mundo quer ser índio, mas ninguém quer se queimar no cansanção, diz ele. Segundo Barbosa, para ser índio não basta ter nascido em território indígena, precisa participar e seguir os costumes indígenas. Dentre esses costumes se destacam a Corrida do Umbu, a dança do Toré e o ritual do Menino do Rancho.

112


Corrida do Umbu Rito próprio do Povo Pankararu instalado no Brejo dos Padres, repetido anualmente entre os meses de janeiro a março. Tem quatro semanas de duração e envolve cerimônias reservadas e públicas, com a participação de visitantes. O ritual é organizado em etapas ordenadas compostas por músicas, cantorias, danças, rituais, oferta de comidas, bebidas e fumo. Sendo que a força central está nas máscaras dos rituais denominadas praiás.

Praiás. Foto: Daniel Filho.

113


Cada praiá veste um encantado, figura central da Corrida do Umbu, considerado pelos Pankararus como uma entidade sobre humana com poderes de cura e aconselhamento. São organizados segundo uma hierarquia sob o comando do Mestre Guia. Os “Zeladores de Praiás” ou “Donos de Praiás” recebem dos encantados, através de sonho, seu nome, de que forma a sua vestimenta deve ser decorada, passos rituais a serem dançados no terreiro e seu toante (música de cada encantado) e têm como obrigação confeccionar as vestimentas e oferecer fumo regularmente aos encantados. Nos terreiros, os donos de praiás repetem suas coreografias exaustivamente. A composição das filas de praiás durante a movimentação no terreiro não é aleatória. Há uma hierarquia nessa distribuição, sendo o primeiro da fila, em geral, o encantado “dono do terreiro” e o comandante do rito; e o último, sempre um dos encantados de mais “força”, de preferência Cinta Vermelha, identificação usada nos praiás do “Tronco Velho”, responsável pela proteção do grupo de possíveis agressões de entidades sobre-humanas. A Corrida tem início com o flechamento do umbu. O primeiro umbu encontrado é trazido para o Pajé, em seguida envolto em um pequeno saco de caroá que pendurado numa forquilha vai ser flechado pelos encantados. A quantidade de flechas atingindo

114


o alvo vai dizer se o ano será de fartura ou de dificuldades. Durante os quatro finais de semana da Corrida do Umbu, no sábado á noite, acontece o ritual da Noite dos Passos onde, os donos de praiás e as dançadeiras dançam uma sequência de cantos relacionados, principalmente, a animais. No domingo, algumas moças, incluindo as dançadeiras da Noite dos Passos, conhecida como “botadoras de cesto” levam cestos com frutas, refrigerantes e doces que serão oferecidos aos encantados em retribuição às promessas atendidas. As “botadoras de cesto” convidam pares do sexo masculino, responsáveis por providenciar os suprimentos da cesta, para as acompanharem na dança ritual.

Botadeiras de cestos. Foto: Daniel Filho.

115


Um cortejo com todos os participantes, conduzido pelas “moças” que estão oferecendo os cestos aos encantados, leva até o terreiro onde acontecerá a Queima do Cansanção – local diferente de onde ocorreu a Noite dos Passos –, momento em que homens e mulheres, dançando em círculo, tocam-se com galhos de cansanção.

Queima do Cansação. Foto: Daniel Filho

Os donos de praiás não se queimam com a urtiga. Esse é um sacrifício e penitência dos homens que é oferecido aos encantados, em troca, ficam encarregados de protegê-los dos seres sobrehumanos que provocam a doença e o sofrimento e de garantir um mundo de fartura, saúde e bem-estar. A Queima do Cansanção é também, o momento de pagamento pelo atendimento das promessas, em geral, as referentes às curas de doenças. Ao final do ritual as “moças” e os donos de praiás oferecem comida e garapa às entidades e humanos. Nesse momento os donos de praiás se 116


recolhem para a refeição em local privado chamado poró. A Corrida do Umbu é finalizada pela entrega da tradição e da penitência ao Mestre Guia em ritual reservado, na mata, privativo dos donos de praiás. Ao final de cada fase da Corrida do Umbu é dançado o Toré, como rito de passagem do sagrado para o profano e de comunhão e celebração entre todos os presentes, índios e não índios.

117


Toré Dança ritual dos índios do nordeste, é uma das tradições mais conhecidas, uma expressão étnica considerada símbolo de resistência e união entre os povos indígenas. Sempre evocando a alegria e desta forma espantando os maus espíritos, o toré é dançado sempre em círculo, em fila ou aos pares e o acompanhamento do maracá marcando o tom das pisadas são iguais em qualquer tribo, porém, o ritmo e as toadas variam de grupo para grupo. Conduzidos pelos donos de praiás, o povo Pankararu de Petrolândia, dança em rápido compasso seguindo a batida do maracá. Um puxador puxa o canto e os demais respondem todos juntos enquanto a dança evolui e vai envolvendo todos os presentes que acabam entrando na alegre e animada dança participando também do coro. Normalmente essa é uma dança presente em todas as festas da aldeia. Mas, nesse ritual, nada é por acaso, o puxador, por exemplo, não pode ser qualquer um e as toadas também não são escolhidas aleatoriamente, tudo segue a liturgia adequada para cada momento.

118


Índios Pankararus vestidos com seus praiás. http://miguelzinhodebras.com/2014/03/13

119


O Menino do Rancho Uma espécie de rito de iniciação dos meninos pré-adolescentes na religião indígena Pankararu. Toda a vivência é mediada pela crença em Deus e pela crença na Força Encantada, nos poderes da natureza. Assim como vão à missa com igual fervor e compromisso, os Pankararu vão aos terreiros onde são realizadas as festas, as danças tradicionais. A festa do Menino do Rancho é uma celebração comemorativa ou de agradecimento a um encantado pela cura de alguma doença. Os Encantados são as figuras centrais da espiritualidade Pankararu, considerados a encarnação dos espíritos protetores da aldeia, por isso, tornam-se defensores e donos dos meninos. Os donos são encantados escolhidos pelos pais, mas durante a cerimônia o menino é solto no terreiro e outros encantados tentam tomá-lo pra si, sob a luta do seu defensor, caso consiga, o novo encantado passa a ser o protetor daquele menino à revelia dos pais.

120


Banda de Pífano Tem como instrumento principal a flauta confeccionada com vara de taboca. Uma adaptação das flautas indígenas às flautas populares europeias trazidas pelos portugueses, passando a conter o mesmo número de furos daquelas usadas nas bandas militares da Europa. À flauta é mais tarde acrescentada a percussão da tradição africana e a banda passa a ser formada pelos seguintes instrumentos: pífanos e zabumba, embrião das bandas de forró. Na festa do Padroeiro, em Petrolândia, a Banda de Pífano tradicionalmente se apresenta todas as noites, nas novenas. Antes, porém, tocam sentados em um banco na frente da igreja, recepcionando o povo que vem chegando. No final da novena, ao som dos dois pífanos, uma zabumba e uma caixa, o quarteto, em dupla, dá entrada na igreja e faz respeitosas evoluções ritmadas em frente ao altar, sob os aplausos da assembleia. A banda é presença certa também na festa de Nossa Senhora da Saúde, em Tacaratu. Descendente do povo Pankararu, José Barros dos Santos, Zé do Pife, como é conhecido, nasceu e criou-se na Aldeia Saco dos Barros. Seu pai tocava pífano e embora tenha morrido cedo, quando Zé era

121


ainda menino, acredita ter herdado dele o gosto pela música. Um primo acabou sendo seu mestre. Toda tardezinha quando o primo treinava a batida na zabumba de couro de cabra na frente da casa, ele e outros iam chegando e se aproximando. Foi se interessando, perguntando, experimentando e aprendendo. Aos dezessete anos, já era chamado aqui e acolá para acompanhar outro primo nas “tocadas” das novenas. Sua primeira experiência foi na Festa de Santo Antônio no Brejo dos Padres. Depois que o primo faleceu juntou-se de vez ao grupo e passou a tocar em praticamente todas as novenas da região em torno de Petrolândia. Terminada as nove noites de uma e já seguia para outra. No início fazia o som com uma gaita de madeira de fabricação caseira. Depois substituiu a gaita pela flauta, que ele mesmo confecciona em PVC, com sete furos, três de um lado, três do outro e um em cima de soprar. Passou a fabricar tanto a gaita como a flauta para vender por onde anda. Subsistindo da roça quando tem chuva, Zé do Pife sonha em um dia poder viver exclusivamente da sua arte, tocando nos pés dos santos nas igrejas enquanto for vivo, assim ele diz.

122


Artesanato Numa época em que os produtos industrializados não eram assim tão acessíveis à grande maioria, o talento e a criatividade tinham espaço. Bonecas de pano vendidas no mercado público, confeccionadas por mulheres da área rural, era presente aguardado pelas meninas quando a mãe ia á feira. Junto da boneca, o cachimbo doce comprado a Dona Das Dores, da Várzea Redonda, completava a festa.

Bonecas de Pano. Foto: Paula Rubens.

123


Filtros de pedra esculpidos manualmente com esmero em forma de cuia gigante finalizada por bico assemelhava-se a um generoso seio a verter água cristalina e bem fria. Item obrigatório em toda casa, os filtros eram fabricados sob encomenda.

Filtro de arenito/Fotos: Paula Rubens.

124


Potes, quartinhas, tigelas e alguidares de barro produzidos geralmente pelas índias do Brejo, complementavam os utensílios de cozinha em todas as casas, das mais simples a mais rica. Num tempo em que geladeira não havia, o pote e a quartinha de barro mantinham a água fresca, mesmo durante o verão abrasador.

Louça de barro fabricadas em Petrolândia na década de 70. Foto Arquivo Público PE.

125


Quartinha de barro/Foto Paula Rubens.

Do povo de Brejinho deriva a tradição indígena do artesanato do uso do cipó em resistentes cestos e caçuás, antes comumente usados preso a cangalhas em animais de carga no transporte de produtos a serem comercializados nas feiras.

Cesto em Cipó fabricados no Brejinho. Foto: Paula Rubens.

126


Caçuá em cipó/Foto arquivo do IGHP.

Da palha do olho do ouricurizeiro, retirada sem prejuízo da planta, também confeccionam chapéus, delicados cestos e bolsas. Dentre elas, a “boca piu” é a mais comum, usadas para compras, assim como, as eco bags de hoje. O nome vem da forma como é feita, um pouco mais reforçada na boca de maneira a não dar “nenhum piu” sobre o seu conteúdo, mesmo não possuindo fecho.

Bolsa boca piu/Foto: Paula Rubens.

127


Na feira ainda encontra-se esse tipo de arte em palha e cipó com facilidade.

Cestas em palha fabricadas no Brejinho/Foto: Paula Rubens

Cestas/Foto: Arquivo Público Estadual PE

128


Cestas e utensílios em palha/Foto: Paula Rubens.

Considerada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, a renda de bilro também era praticada em Petrolândia.

Renda de bilro/Foto: Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

129


Não era incomum encontrar velhas senhoras à porta da casa, aproveitando a brisa e criando a delicada e fina renda. Almofada á frente trançavam a linha de algodão através dos bilros de madeira com uma agilidade nas mãos de fazer inveja a qualquer jovem malabarista. O teco, teco, teco, cadenciado da batida dos bilros resultante do movimento das mãos na complicada manobra do juntar e separar a linha soava ritmada, como música. Infelizmente, essa tradição se foi com os mais velhos. Hoje não se vê mais. A fabricação manual de carros, aviões e outros brinquedos em madeira era a especialidade do mestre Luiz Guará. Sonho de consumo de todo menino, as peças eram réplicas perfeitas de seus originais. Toda essa arte manual herdada ainda está presente em Petrolândia em quase todas as modalidades e a elas foram acrescidas outras como o artesanato em tecido e em couro de tilápia, que, através das associações, inauguraram um novo jeito de produção coletiva mais organizada.

130


Culinária Intimamente ligada às festas e celebrações, a culinária, através de cheiros e sabores, tem o poder de marcar momentos sociais ou em família. Assim sendo, ela também é parte fundamental da cultura de um povo. Em Petrolândia há uma culinária típica muito interessante. A simplicidade das receitas, dizem bem sobre o modo de vida do lugar. É comida de gente humilde e acolhedora, que sabe ser feliz com pouco. As receitas aqui selecionadas estão direta ou indiretamente ligadas à memória afetiva dos que nasceram na velha Petrolândia e em sua maioria ainda fazem parte das festas da tradição popular ou do costume de comemorar momentos marcantes com as visitas. Apesar de muito usadas, as comidas de milho, como canjica, mugunzá e arroz doce, por serem comuns em todo o Brasil, ficaram de fora. O pirulito de açúcar queimado, as cocadas e o chocolate quente americano da Aliança para o Progresso, fazem parte dessa memória coletiva, mas de tão simples dispensam receitas. A seguir, um convite a uma experiência olfativa e degustativa da nossa ancestralidade.

131


Alfenim (puxa-puxa) Doce vendido ainda morno nas escolas da velha Petrolândia. Servido em guardanapo de papel, a massa do alfenim se esticava a cada mordida, enquanto a boca se enchia de saliva e prazer. Ingredientes: 1 rapadura. 1 cx. de chá de água Modo de fazer: Parta a rapadura em vários pedaços e coloque em uma panela junto com o chá de água. Cozinhe em fogo brando até chegar ao ponto de melado grosso (veja o ponto pingando um pouco de melado num copo de água fria e observe se o mesmo não endurece, nem se desmancha nas mãos). Despeje o melado numa superfície lisa, polvilhada com goma e deixe esfriar um pouco de modo que suporte pegar sem queimar as mãos, tomando cuidado para não deixar esfriar demais. Polvilhe as mãos com goma, pegue uma porção de melado e puxe, em movimentos de vai e vem (como

132


o de quem toca uma sanfona), até adquirir uma cor amarelo dourado e consistência elástica. A partir de porções menores, molde, com as mãos, tiras de alfenim dando-lhes formato de 8 (ou do símbolo do infinito), de flor, ou qualquer outro. (Receita de Dona Nildinha, fornecida por Genilda Menezes).

133


Aluá de Tamarindo Bebidas alcoólicas não são permitidas durante a dança de São Gonçalo, a bebida fermentada, seria a versão mais próxima, por isso muito apreciada. Além disso, tem um caráter místico de acolhida, visto que o dono da promessa num gesto de gentileza, dias antes se dedica aos preparos da bebida no cuidado do bem receber. Nas danças do Riachão essa bebida não podia faltar. Ingredientes: 1 2 1 7 1

litro de tamarindo com casca; litros de água filtrada; xícara de açúcar mascavo; cravos-da-índia (a gosto); colher (chá) de gengibre ralado (a gosto).

Modo de fazer: Em um pote ou recipiente de vidro coloque os tamarindos e água suficiente para cobrir tudo. Cubra com um pano limpo, amarre com elástico ou barbante para fechar bem.

134


Deixe descansando, fora da geladeira, em local seco e arejado por uma noite. Depois desse tempo, coloque o açúcar mascavo, os cravos, o gengibre e mexa bem. Cubra novamente e deixe descansando fora da geladeira por mais 8 horas. Coe a bebida e descarte os ingredientes sólidos. Coloque o líquido em uma jarra e leve para a geladeira até a hora de servir. Conserva-se em geladeira por até três dias.

135


Beiju de Ouricuri na Palha Essa tradição indígena é mantida principalmente pelo povo do Brejinho de Fora. Lá na Quaresma quem planta mandioca fornece a matéria prima e em sinal de irmandade, toda a produção de beiju da Casa de Farinha local é distribuída gratuitamente à comunidade. Durante o ano todo, na feira semanal de Petrolândia, as vendedoras de goma normalmente vendem beiju, seja de ouricuri ou de coco. Ingredientes: 1 litro* de goma fresca peneirada. (*vasilhame de lata de óleo usado como medida nas feiras do Sertão na venda de goma, murici, umbu e castanha). ½ litro de coco de ouricuri seco; 1 pitada de sal; ½ palha verde de bananeira. Modo de preparo: Lave a palha de bananeira, sacuda o excesso de água e deixe enxugar naturalmente. Reserve.

136


Misture o ouricuri triturado com a goma peneirada e o sal. Espalhe bem a mistura sob a metade da palha de bananeira e cubra a massa com a outra metade. Coloque por cima um peso para a palha não abrir. Coloque no forno à lenha ou a carvão por 10 min., depois vire e deixe assar por mais 5 min. Sirva quente. Rende um beiju para três pessoas. (Receita cedida por Carminha Balbina da Silva, nascida em Lagoinha, área indígena de Petrolândia).

137


Farofa Doce de Murici Macerar o murici com bastante açúcar numa caneca até se tornar uma grossa pasta, comer sem pressa a colheradas e ir cuspindo os caroços em meio a uma roda de conversa, assemelha-se ao ritual dos gaúchos com o chimarrão ou ao modo de comer caranguejo nas praias do Recife. A farofa doce de Murici deriva dessa prática. À pasta do fruto macerado acrescenta-se apenas a sustância da farinha, jeito de saciar a fome com doçura. Ingredientes: 1 litro de murici 1/2 xc. de farinha de mandioca ½ quilo de açúcar. Modo de preparo: Coloque o murici para secar ao sol por um dia, apenas para murchar. Numa bacia misture o murici com a farinha e amasse com as mãos até soltar o caroço. Em movimentos circulares com as mãos retire os caroços do murici, deixando apenas a farofa. Acrescente o açúcar aos poucos até adoçar á gosto.

138


Licor de Murici Fruta nativa da região, utilizada em vários preparos culinários, o murici ganhou no licor sua versão mais sofisticada. Serve-se em pequenas taças após as refeições. Tem como função auxiliar na digestão e alongar o prazer de boas conversas com as visitas. Ingredientes: 2 litros* de murici (usar uma garrafa pet como medida); 4 litros de cachaça; 1,5 litros de açúcar (ou a gosto); 1/2 litro de água. Modo de preparo: Numa peneira lave e limpe bem o murici, de modo a ficar apenas a fruta inteira (sem pelo ou casquinha). Deixe na peneira até escorrer toda a água. Numa vasilha coloque o murici enxuto e inteiro, acrescente a cachaça, tampe bem para não evaporar o álcool e deixe em infusão por no mínimo 15 dias. Ao

139


final desse período, coe numa peneira fina e acrescente a calda de açúcar fria. Preparo da calda: Leve ao fogo a água com o açúcar e deixe ferver até engrossar e ficar no ponto de fio. Retire do fogo e deixe esfriar bem. Quando estiver fria misture a infusão de murici mexendo até unificar. Coloque o licor numa vasilha com tampa, de preferência em garrafa de vidro e tampa de cortiça. (Receia fornecida por Izabel Ferraz (Bezinha).

140


Cachimbo Bebida tradicionalmente servida em celebração ao nascimento de um filho em qualquer classe social. Ao anúncio da chegada de um bebê a fala seguinte é: - Vamos tomar o “mijo do menino” . Para cada pessoa que visita o recém-nascido, serve-se uma dose em pequenos copos de vidro. O sabor e o aroma do cachimbo dependem das especiarias acrescentadas no seu preparo. Ingredientes: 1 kg de açúcar; 1 litro de água; ½ litro de mel de abelha; 1 litro de aguardente, casca de laranja seca ou canela a gosto. Modo de Preparo: Leve ao fogo duas colheres de açúcar até adquirir a cor de açúcar queimado (para dar um tom de mel à bebida). Acrescente o restante do açúcar e a água e vá mexendo. Antes de chegar ao ponto de mel acrescente a casca de laranja seca deixando ferver por

141


uns cinco minutos para agregar o aroma, sem deixar amargo. Confira, quando atingir o ponto de fio desligue, acrescente o mel e deixe esfriar. Coe e acrescente a cachaça mexendo bem até unificar. Guarde em garrafas de vidro, esterilizadas em água quente, tampando bem para não deixar a cachaça evaporar (Receita orientada por Neide Sandes).

142


Anexos: JORNADAS DO PASTORIL DE AFONSINA CAVALCANTE (anos 50) PRIMEIRA JORNADA 1ª parte: Boa noite meus senhores todos. Boa noite senhoras também. Aqui estamos pastorinhas belas, Alegremente vamos à Belém. Eu sou a mestra do cordão encarnado/O meu cordão eu sei dominar/Com minhas danças, minhas cantorias, Senhores todos queiram desculpar Sou contramestra do cordão azul O meu cordão eu sei dominar Com minhas danças, minhas cantorias, Senhores todos queiram desculpar. (Diana) Sou a Diana não tenho partido. O partido são os dois cordões, Eu peço palmas, peço bis e flores. Aos partidários peço proteção 143


2ª parte Meu São José dá-me licença Para o pastoril dançar (Bis) Viemos para adorar Jesus Nasceu para nos salvar. É do meu gosto, é da minha opinião. Ei de amar o Cordão encarnado Com prazer no coração. Ei de amar o Cordão encarnado Com prazer no coração. É do meu gosto, é da minha simpatia. Ei de Amar o cordão azul Com prazer e alegria, Ei de amar a o azul Com prazer e alegria. É do meu gosto, é da minha opinião. Ei de amar os dois cordões Com prazer no coração. Ei de amar os dois cordões Com prazer no coração.

144


3ª parte Viva Viva Viva Viva

a noite de Natal a toda Hierarquia. no céu e na terra o filho de Maria.

Hoje noite de Natal Ninguém se deita em colchão, Pois nasceu o Deus menino Sob palhinhas no chão. Bate as asas, canta o galo, Dizendo Cristo nasceu. Canta os Anjos nas alturas, Gloria In Excelsos Deo. Oh! Glória In Excelsos Deo, In Excelsos Deo a glória In Excelsos Deo.

145


4ª parte Pastorinhas vamos, Vamos a Belém. Ver o Deus menino Para o nosso bem. (bis) Louvor a José, Louvo a Maria. Nasceu Deus menino Pra nossa alegria. (bis) Companheiras juntas Vamos colher flores. Nasce o rei dos reis, O Senhor dos Senhores. (bis) Numa lapa fria Entre querubins. Nasce o rei dos reis E dos serafins. (bis)

146


5ª parte Em dezembro a 24 a 24, (bis) Meia noite deu sinal. (bis) Já deu meia noite, já resplandeceu. O belo menino na lapa nasceu. Meu menino eu venho de longe, (bis) Cansado de caminhar. (bis) Já deu meia noite , já resplandeceu O belo menino na lapa nasceu Meu menino eu estou presa (bis) Em corrente de papel. (bis) Já deu meia noite, já resplandeceu. O belo menino na lapa nasceu.

147


6ª parte Em Belém Vamos adorar. Nasceu Deus menino Para nos salvar. Companheiras do deserto, Correi todas, vinde ver. A pobreza da lapinha, Onde Cristo quis nascer. Vinde já, vinde com pressa, À lapinha de Belém. Para ver como o Deus menino Nasceu para o nosso bem.

148


7ª parte (2 passos) Vamos nos campos, Pastoras belas, Colher as flores, Tecer capela. Cheirosos cravos E o alecrim. Lindas cravinas E os bugarís. Alvo jasmim, Fragrantes rosas, Linda açucena, Branca cheirosa. Doces laranjas, Maracujás, Lindas goiabas E os araçás.

149


8ª parte (Cacho de uva) Vamos aos campos, Pastoras belas. Colher as flores, Tecer capela. O mananá, abacaxi, A melancia, o sapoti, Cacho de uva, maracujá, Cheirosas mangas, Doces araçás.

150


9ª parte José e Maria, Família sagrada. Aceitai convosco A nossa chegada. Refrão: Belo cordeirinho, como ele é lindo. Que formosura na lapa sorrindo. Como ele gosta que nós festejemos. Nós todas juntas na conta cantamos. Verdeja o monte, Floresce o prado, Desce da fonte, Puro cristal. (Refrão) A Despedida Adeus meu menino. Adeus ó Maria. Até para o ano, Com muita alegria.

151


Adeus meu menino. Adeus São José. Até para o ano Se assim Deus quiser.

152


2 ª JORNADA Hoje a noite é bela, Juntos eu e ela, Vamos à capela, Felizes a rezar. Ao soar o sino, Sino pequenino, Vai o Deus menino Nos abençoar. Bate o sino pequenino, Sino de Belém. Já nasceu o Deus menino, Para o nosso bem. Paz na terra pede o sino, Alegre a tocar. Abençoa Deus menino Esse nosso lar. Escola Matuta Venham cá companheiras formalizar, Que a nossa alegria é igual. Chamamos as belas pastoras para recordar, Que a nossa escola matuta 153


Não tem ensinar, No palco em que dançam, Todas têm que se alegrar. Saudades vão deixar. (fim) Fragmentos de apresentações De correr estamos cansados. De cansadas nos sentamos. À procura deste anjinho, Agora mesmo foi que encontramos. -X– Caiu um cravo do céu E São José apanhou. Caiu, caiu, caiu, Nos braços do nosso Senhor. Anjo (entra sozinho no palco) Perdida, ando tão delirante. (bis) Para ver se encontro O Divino Espírito Santo. (bis) Mas o que faço aqui sozinha? (bis) Eu vou chamar as pastorinhas. (bis)

154


Pastorinhas (entra os dois cordões) Para Belém vamos adorar (bis) Nasceu Deus menino para nos salvar (bis) Já deu meia noite, Que grande alegria. Vou vê-lo nos braços Da virgem Maria. Ou AINDA, segundo a memória de Dona Helena da Graça: In Excelsos Deo glóoooria! Glória in Excelsos Deo, In Excelsos Deo glória! Corram caros pastores, Vinde ver e admirar. O presépio glorioso E o Deus menino louvar. Que feliz aviso. Oh! Que gozo ou que prazeres. A este nascimento corramos a ver, A este nascimento corramos a ver.

155


3ª JORNADA I Quero de presente Muito mais amigos. Uma estrela lá no céu Chegou Jesus, Papai Noel. (Refrão) II Quero a paz desse Natal Refletindo a todo mundo. Amor e compreensão, Para vivermos melhor E pedir a Papai Noel De presente uma oração, Pra que seja eterno o Natal. O mundo todo irmão. (Refrão) Encerramento Vamos pastorinhas, vamos festejar os nossos cordões, vamos terminar. Cordão encarnado, é que está na ponta. Já deu meia noite, o galo já canta. Estrela do norte, Cruzeiro do sul, Vejam como brilha o cordão azul. 156


Do cordão encarnado as lindas pastorinhas Nos cantos e na dança serão sempre as rainhas. Já deu meia noite o galo cantou O cordão azul é o vencedor. DESPEDIDA Boa noite meus senhores Viemos cumprimentar. Já é chegada a hora De nos retirar. Com muita saudade Nós vamos embora. Já é muito tarde Talvez uma hora.

157



Referências BRANDÃO, Theo – Folguedos Natalinos – Ed 1973, Maceió – AL. CARVALHO, Anna Christina Farias – As irmandades de Penitentes do Cariri cearense e as práticas mágicoreligiosas na (RE)construção de bens simbólicos de salvação, in de Anais UH – XXII Simpósio Nacional de História – João Pessoa, 2003. CÂMARA CASCUDO, Luís da — Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Editora Italiana, 1984. CORREIO DO SERTÃO 03.03.1935 - Carnaval! Carnaval! DANTAS, Gabriela Cabral da Silva - Presépio, Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/natal/presepio.htm. Acesso em 08 de novembro de 2019 DIÁRIO DE PERNAMBUCO, edição 62, de 15.03.1938 – Coluna ‘Pelos Municípios’. o Carnaval em Itaparica e coluna “Há Um Século”, de 27.10.1987. MATTA, Priscila - Dois Elos da Mesma Corrente: os rituais da Corrida do Imbu e da Penitência entre os Pankararu , in USP -cadernos de campo, São Paulo, n. 18, p. 165-180,. PAIS, José Machado - Consciência Histórica E Identidade, Ed. Celta, Oeiras, Portugal, 1999.


RAMOS, Eliana Maria de Queiroz e outros, O Reisado de Caetés e Garanhuns: um olhar folkcomunicacional pelas lentes da identidade e do imaginário - in XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – Campina Grande – PB – 10 a 12 de Junho 2010. VAINSENCHER, Semira Adler- Lapinha, In Fundação Joaquim Nabuco. Consultado em 08 de novembro de 2019. Sites: http://www.acidigital.com, pesquisado em 30.06.2014. https://www.assisramalho.com.br/2018/02/petrola ndia-turma-do-tacho-comemora-seu.html http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index. php?option=com_content&view=article&id=498&Ite mid=181 http://www.cultura.pe.gov.br/canal/patrimonio/rei sado-de-inhanhum-e-patrimonio-em-busca-derenovacao/ https://www.geledes.org.br/reisado/ https://miguelzinhodebras.wordpress.com/2014/03 /13/jatoba-petrolandia-e-tacaratu-limites-queformam-um-triangulo-onde-fica-o-grupo-indigenaspankararu/ http://www.museudagentesergipana.com.br/wps/w cm/connect/Museu%20da%20Gente%20Sergipana/


inicio/largo-da-gentesergipana/esculturas/reisado/reisado http://www.vermelho.org.br/noticia https://pt.wikipedia.org/wiki/Presepio Cf. CHAVES, Luís O primeiro «Presépio» de Lisboa conhecido (Século XVII). In, O Archeologo Português. Lisboa, Museu Ethnographico Português. S. 1, vol. 21, n.º 1-12 (Jan-Dez 1916), p. 229-230. (Consultado em 14 de Março de 2010). https://osbrasisesuasmemorias.com.br/biografiamaria-barbara-binga



Agradecimento aos Entrevistados: Agostinho Francisco Vieira (Augusto Riachão); Alberto Celso de Lima e Sá; Belinaura Ana Teixeira (Bebé); Euza Maria da Silva; Helena Maria da Graça; Izabel Ferraz (Bezinha); Jacyra Costa; José Barbosa Lima (Zezito); José Barros dos Santos (Zé do Pife); Josenilda Marques da Silva; Luiz Vicente do Nascimento (Lula); Maria Danúbia da Silva Maria das Graças Delgado (Gracinha); Maria Edna Silva Ferreira Marisa Ovídio Salles de Oliveira; Neide Sandes; Olindina e Silva Resende (Linda); Olivia Sobreira; Rosivaldo Pantaleão; Teresinha Marques da Silva; Ubirajara Fernandes Barbosa; Valdira Dias Batista.

do



Impressão e Acabamento Número de páginas: 166 Edição: 1 (2022) ISBN: 978-65-00-21519-9 Formato: A5 (148x210) Coloração: Preto e branco Acabamento: Brochura c/ orelha Tipo de papel: Polen



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook

Articles inside

Referências

1min
pages 159-166

Anexos

5min
pages 143-158

Cachimbo

1min
pages 141-142

Licor de Murici

1min
pages 139-140

Farofa Doce de Murici

0
page 138

Rituais Índígenas

0
page 112

Aluá de Tamarindo

1min
pages 134-135

Corrida do Umbu

3min
pages 113-117

Banda de Pífano

1min
pages 121-122

O Menino do Rancho

0
page 120

Culinária

0
page 131

Dança de São Gonçalo

4min
pages 106-111

Quadrilhas Juninas

2min
pages 101-105

Presépio ou Lapinha

5min
pages 30-37

Pastoril

10min
pages 38-52

Os Penitentes

12min
pages 86-100

Reisado

12min
pages 53-68

Entrudo

1min
pages 69-70

O Ciclo do Natal

1min
pages 23-24

Carnaval

8min
pages 71-85

Festejos Natalinos

4min
pages 25-29
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.