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Reisado
Originário dos autos portugueses comemorativos da natividade chamados “janeiras” e “reis”, embora conhecido em Minas e São Paulo o reisado com características teatrais tem maior expressão no Nordeste. É apresentado no período de 24 de dezembro a 06 de janeiro, ou seja, de Natal a Reis. Em São Paulo é conhecido como Folia de Reis e na Amazônia Boi-Bumbá, em outros Estados também é conhecido como Boi do Nordeste. O reisado apresenta diversas modalidades e compõe-se de várias partes: a) abrição da porta; b) entrada; c) louvação ao Divino; d) chamadas do rei; e) peças de sala; f) danças; g) a guerra; h) as sortes; i) encerramento da função. Tem como principais personagens: o rei, o mestre, o contramestre, Mateus, Catarina, figuras e moleques. Fazem parte do espetáculo os “entremeios” (corruptela de entremezes), pequenas encenações dramáticas que são intercaladas com a execução de peças, embaixadas e batalhas. Os personagens são tipos humanos ou animais e seres fantásticos humanizados, cheios de energia e determinação. Usam roupas coloridas, geralmente nas cores vermelha e azul, ou verde, muito atraentes,
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confeccionadas com arte. Nas costas, capas de cetim enfeitadas com galões dourados e prateados, guardapeito, decorados com lantejoulas, contas e espelhinhos brilhantes. Na cabeça, chapéus de palha forrados de cetim, em formato cangaceiro, ornamentados com espelhos redondos, flores e fitas coloridas. Oriundo geralmente de grupos rurais ou da periferia das cidades, reúnem-se numa “latada”, espécie de rancho, com o fim de visitar as casas de pessoas de mais posses e hospitaleiras da região. Seus integrantes saem às ruas cantando e dançando, ao som da sanfona, tambor e pandeiro e param em algumas casas onde são recebidos com mesa farta de comida. Em Alagoas, onde essa tradição é bastante presente, o folguedo, segundo o folclorista Teotônio Brandão, foi enriquecido em seus atos e trajes pelo Auto dos Congos ou Reis dos Congos, um tipo de reisado de origem africana. Deste folguedo incorporou novas e ricas indumentárias, músicas e coreografia, diferenciando-se assim, do Reisado de outros Estados. Misturado ao Auto do Caboclinho (diferente do Caboclinho de Pernambuco) o reisado Alagoano foi dando origem ao Guerreiro, espécie de reisado moderno. Um novo folguedo, surgido por volta dos anos 20, com maior número de episódios e figurantes,
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trajes mais ricos, com chapéus muito mais elaborados em formato de igreja, ou palácios, chegando a pesar de 5 a 10 kg. Foram surgindo novos personagens herdados de outros conhecidos folguedos, a partir dessa miscigenação. Mais ou menos em 1922, foram surgindo outros personagens: o Capitão General, da Chegança; a Borboleta, do Pastoril; o Índio Peri, do auto das Caboclinhas; a Lira, também das Caboclinhas e a Rainha, personagem comum em diversos folguedos. Em Sergipe os brincantes ou figural são conduzidos pelo Mateus ou Caboclo, que divide com a Dona Deusa, o desenvolvimento do folguedo. Um dos dois tem a honra de segurar o partidário, um estandarte de duas bandeiras, nas cores dos cordões, com um mecanismo que permite subir as bandeiras conforme as contribuições financeiras que uma das alas consegue. Em recompensa aos doadores, os brincantes entregam uma florzinha de papel crepom às pessoas que contribuíram. Nos dois cordões, personagens como a Borboleta, o Guriatã, o Bambu, a Cigana e a Camponesa vão ao centro quando chamadas pelo Mateus para dizer a sua parte. Os elementos fantásticos são o Boi e o Jaraguá, construídos com uma carcaça da cabeça de Boi e outra de Cavalo cobertos de chitão, tendo no seu interior um brincante que lhe dá vida e movimento. Do brincante
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do Boi e do Jaraguá é exigido muito preparo para dar realidade à sua animação, investindo, sem tocar, nos que assistem ao folguedo, provocando correrias e risos. O espetáculo dramatiza histórias em que se misturam amor e guerra, religião e história local. As canções remetem à profunda religiosidade, respeito e devoção pela sagrada família, fato evidente no gestual e expressões faciais. Por outro lado, a luta do bem contra o mal, que caracteriza o próprio cristianismo, é observada nas músicas e na performance da luta de espadas, simbolizando a batalha de Oliveira e Ferrabrás, que pode ser interpretada como uma herança jesuítica. Já o sebastianismo está presente na letra da música que fala do canto do saudoso Dom Sebastião, e também do Padre Cícero. Tal como o Novo Reisado Alagoano, estudado pelo folclorista Theo Brandão1, o reisado praticado a partir dos anos 50 no Alto da Raposa, era uma mistura de celebração pela chegada do Messias, homenagem aos Reis Magos e Auto de origem africana e indígena. Bairro pobre da periferia de Petrolândia, o Alto da Raposa era o local onde, em geral, se arranchavam os que vinham de outras paragens em busca de alguma oportunidade de sobrevivência. Cícero
1 Brandão, Theo – Folguedos Natalinos - 1973
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Grande era um deles. Junto à disposição para o trabalho, trouxe de Alagoas o gosto e conhecimento sobre o Reisado. Juntou-se aos que já conheciam o folguedo e organizou um grupo que todos os anos percorria a cidade no período do Natal. Na latada de sua casa os ensaios e apresentações eram bem concorridos, muita gente vinha da cidade para assistir. No dia de Reis a saída era precedida de um breve momento no qual, como comandante do Reisado, Cícero Grande puxava a reza e em seguida, murmurando frases inaudíveis, parecia invocar a força dos encantados. Um clima místico se instalava no ambiente, lembra Edna Silva Ferreira (59 anos), sobrinha de Paulo (intérprete do índio Peri) e neta por afinidade de Odilon Coveiro (um dos Mateus), que gostava de acompanhar os dois e assistia, entre encantada e assustada, a toda aquela movimentação festiva. Segundo ela, mesmo que o ritual não fosse totalmente compreendido pelos presentes, todos respeitosamente acompanhavam as orações, assim como também acatavam a ordem de não consumir bebida alcoólica durante as apresentações. Em seguida o cortejo partia do Alto da Raposa para a Igreja Matriz, onde adoravam o Divino no altar, depois seguia pelas ruas cantando versos desvinculados entre si parando aqui e acolá nas portas das casas.
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Uma vez acolhidos, iniciavam a apresentação seguindo uma sequência padrão que podia ser realizada na frente ou no interior da casa, mas sempre para um aglomerado de gente que, atraída pela folia, rapidamente se formava para assistir. Entre outras, nas casas dos comerciantes Amaro da Silva (ex-prefeito), Vicente Balbino, Da Cruz e Panta, o Reisado do Alto da Raposa tinha parada certa. Nelas sempre havia uma mesa farta a espera dos brincantes, que agradecidos, além das apresentações de praxe, faziam versos de improviso para agradar o dono da casa, tais como:
Seu Da Cruz é prata fina, D. Lídia é ouro em pó E uma filha que eles têm É o jardim de Maceió.
Dona Diva Nogueira lembra que juntava muita gente para vê-los dançar e cantar, na garagem da casa de Sr. Amaro, onde o Mateus cantava: Olé! Toda lagoa tem peixe, Toda velha tem me deixe, Toda moça tem carinho...
Segundo ela, eram aproximadamente 30 pessoas, homens e mulheres, vestindo roupas coloridas cheias de brilho de lantejoulas e espelhos,
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saias rodadas armadas de laquê e chapéus de cujas abas pendiam fitas coloridas com espelhos presos nas pontas. Produziam sons ritmados ajudando a marcar o compasso. Conforme relato de José Barbosa Lima, Seu Zezito, 79 anos, um dos dançarinos do Reisado de Petrolândia, na rua se cantava estrofes soltas de temas diversos, como por exemplo: É P palavra P papel P poesia P pão P padaria P padeiro P pintor Pavão voou por cima do Pererê Quando eu digo apague o P Você diz P apagou. Versos de saudade:
Ô viva primeiro Pernambuco amado, Brejão, Bom Conselho, Garanhuns, Saudade dos meus, Estarem todos ao meu lado “Olinda, Rio de Janeiro, Pernambuco amado”.
História da guerra:
“Ô minha gente, quem não viu venha ver/Pai de família descer pra guerra e não voltar mais/Quanta mulher chorando por seus maridos/Tanta criança perdida, “ô mamãe, cadê papai”
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ou
Os “alemão” só trabalham em avião Mas é tudo comercial para tomar o Brasil/Tomar Brasil eu gemendo e eu chorando/Eu gemendo e eu chorado a baiana tem que ir.
Ou ainda
E eu só quero que homem e menino Porque tem destino, possam vadiar
Nesta estrofe refletindo a volta para casa ao fim da guerra:
Eu “tava” lá em Palmeira Fazendo feira quando o avião passou No campo de Canafístula, Moça bonita seu namorado chegou.
Do cotidiano:
Eu vi um peixe na beira d’água Corta o cabelo, Janaina e caia n água.
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Também:
Dona Maria eu não sei o que fazer Vou comprar um Jamecê pra senhora passear. Eu lhe pergunto onde é que quer morá Se na capitá do Estado da Bahia
Românticas:
Ô Maria me dá teu retrato, Coração ingrato que te dou o meu (Bis) Eu não te dou que eu não posso arrancar/Maria me dá teu retrato pra eu.
Ou
“Assubi” num coqueiro alto De lá dei um salto, quando avistei ela, Diz ô menina se dinheiro vogasse, Se o carinho voltasse pra eu casar com ela.
E brincavam com aqueles que não lhes abria a porta: Ô seu Emídio já passei na sua porta Lá vi uma marmota me esqueci de lhe dizer /Uma cachorra “veia”, magra, rabugenta/Só tinha o pau da venta, parecia com você. .
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Chegando às casas onde eram recebidos, a sequência de cantorias se dava quase sempre assim:
Na porta da casa (abrição):
Ô de casa, ô de fora, Ô de casa, ô de fora, Maria vai ver quem é, Maria vai ver quem é
São os cantador de Reis, São os cantador de Reis, Quem mandou foi São José, Quem mandou foi São José. Canta Reis não é pecado, Canta Reis não é pecado. São José também cantou, São José também cantou.
São José também cantou Neste dia de alegria, Mas depois de muito tempo São José também chorou. Porque viu seu filho morto, Pregado numa cruz por tanto amor.
Louva-se a casa e seus moradores, tal qual ocorre com a Louvação ao Dono da Casa, muito
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comuns nos autos encenados em Portugal, que no Nordeste do Brasil se incluiu elementos naturais do lugar:
Senhor dono da casa, Olhos de cana caiana, Quanto mais a cana cresce Mais aumenta a sua fama.
Entrando na sala:
Entremos, entremos Em jardim de fulô. É do nascimento, É do Redentor. Na sala:
Boa noite ô dono da casa. O senhor me desculpe Eu brincar no salão. Serra Grande, Catende, Custódia, Canta quem pode, sou eu campeão.
Ou ainda como lembra Edna:
Boa noite senhor e senhora (bis) Que eu cheguei agora venho de São Mudado. Era a coisa que eu queria ver meu mestre correr Com nós encostado. (bis)
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Depois da ceia, louvam-se novamente os Donos da casa:
Senhor dono da casa É quem pode vestir véu, É quem nós pode adorar Debaixo de Deus do céu.
O sinhô dono da casa. Lá no céu tem um andô, Para o sinhô se assentá Quando deste mundo fô.
Despedida:
Sai fora e venha ver a lua E a estrela no céu muito apagada. Oi vamo simbora menina, Reúne seu batalhão, Que já é de madrugada. Dono da casa adeus que me vou, Até para o ano, se nós vivo for.
Entre a entrada e a despedida apresentavam-se as “embaixadas”, ou “partes” do drama. O enredo conta a história da Lira, que levada pelo Rei dos Guerreiros à aldeia, é ameaçada de morte pelo Caboclinho, por ordem da Rainha com ciúmes do
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Rei. Apesar da ordem, o Caboclinho propõe à Lira livrá-la da morte, desde que ela o aceite como marido. Como a proposta é recusada, o Caboclinho a mata, mas a Lira é ressuscitada por Mateus, que apesar de se apresentar como palhaço o tempo todo, age nesse ato como uma espécie de feiticeiro tal qual o folguedo do Guerreiro de Alagoas. O Auto apresenta uma luta de espadas entre os embaixadores do Rei de um lado e do Índio Perí de outro, normalmente composto por dois Mateus, Borboleta, Índio, Rei, Rainha, Embaixadores, Caboclinho, Estrela Dalva, Jaraguá, Boi, Cavalo Marinho e Joana Baia. O Mestre era Cícero Grande, Odilon Coveiro e Odilon do Quebra Queixo faziam o Mateus, que de cara pintada de carvão usava chapéu de palha e roupa de palhaço. Carminha, filha de Odilon Coveiro, ainda criança, era Borboleta, Paulo, irmão de Carminha, o Índio. Zé Lebre era um dos Embaixadores e Luiza de Manoel Andresa, a Rainha.
O embaixador cantava:
Esta noite eu sonhei um sonho (bis) Este sonho não era mentira. Eu vi o caboclo da aldeia dizer Vamos matar nossa Lira (bis).
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Depois disso a Lira sai pedindo a cada figurante para que a livre da morte, até chegar à Rainha. Cantava a Lira ,segundo lembra Edna, sobrinha de Carminha, que costumava assistir ao Reisado do Alto da Raposa:
Minha rainha eu vim aqui, Eu vim fazer um pedido a você. Eu te peço por Nossa Senhora Do Reino da Glória, Não deixe eu morrer.
A Rainha responde:
Minha Lira eu não posso atender Esse pedido que vem de você. Eu lhe digo por Nosso Senhor Do reino do amor você pode morrer.
Os demais componentes repetem o refrão:
Vamos matar nossa Lira! Vamos matar nossa Lira! Que foi o rei que mandou. Que foi o rei que mandou.
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E começa a guerra de espadas entre os embaixadores até um deles escapar e matar a Lira, enquanto a Lira canta:
Não me mate, desgraçado! Não me mate ,desgraçado.! Nessa aldeia de caboco. Nessa aldeia de caboco.
A “Veia” era a versão feminina do Mateus, e segundo a lembrança de Olga, era chamada ao centro quando todos cantavam assim:
Toca viola, toca maracá. Oi, lá vem mamãe veia, Que vem vadiar. Oi, lá vem mamãe veia, Que vem vai dar.
E a velha dá corrupios e dança no meio do terreiro, onde o Mateus também pula e dá volteios até surgir o Jaguará:
Ô que bicho feio/Virgem mãe de Deus Vem com a boca aberta Pra pegar Mateus.
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Canta os embaixadores enquanto o Jaraguá corre atrás dos dois, dando volteio fingindo avançar em direção à plateia. O drama se encerrava com a ressurreição da Lira pelo Mateus. Diferente do Pastoril e do Reisado de Sergipe, no Reisado de Petrolândia não havia disputa entre os dois batalhões com arrecadação de ofertas em dinheiro. A produção do figurino, confeccionado à custa dos participantes, contava com a ajuda de doações arrecadadas pelos dois Mateus. Um mês antes das apresentações, eles saíam às ruas tocando pandeiro e cantando loas engraçadas em troca de “uns trocados”. Resguardadas as proporções, de certa forma o Reisado representava para aquela gente pobre do Alto da Raposa o mesmo que o carnaval para as comunidades dos morros do Rio de Janeiro. Assim como lá, lavadeiras e carroceiros, gente simples da periferia, transvestidos em reis e rainhas, tinham seu dia de glória.
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