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Pastoril
Composto geralmente por doze pastoras divididas em dois grupos chamados cordões. Um grupo ostenta nas vestes a cor azul, em referência ao manto de Maria e o outro a cor vermelha, simbolizando o manto de Jesus, segundo o conceito adotado pela Igreja Católica. Sobre a cabeça usam diademas de flores ou chapéus, nas mãos pandeiros enfeitados com fitas nas cores dos seus cordões. As primeiras pastoras de cada cordão recebem o nome de mestra (vermelho/encarnado) e contramestra (azul). As escolhidas, geralmente as mais bonitas e animadas, precisam cantar bem. Entre os dois cordões organizados em fila, um ao lado do outro, fica Diana, a mediadora, trajando metade vermelho e metade azul. Todas cantam e dançam.
As “jornadas” têm como tema o nascimento de Jesus Cristo e os desafios entre os dois cordões sem que, necessariamente, haja uma sequência lógica entre os cantos. Apenas o canto de abertura e de despedida, marcando início e fim da jornada, são invariavelmente mantidos. Cada grupo procura a melhor forma de exaltar suas pastoras. Cigana, Borboleta, Pastor, Estrela, Rosas e outros tantos personagens vão se juntando às Pastorinhas enquanto seguem para Belém.
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O pastoril profano distingue-se do religioso pelos personagens e letras das músicas, de duplo sentido e irreverentes. O personagem principal é o Velho que, vestido de palhaço, entre outras irreverências provoca pessoas da plateia lançandolhes pilhérias inconvenientes, de modo a constranger os senhores obrigando-os a contribuir com alguma quantia em dinheiro. Exemplo disso pode ser observado nos cantos recordados por Dona Olindina e Silva Resende, petrolandense, nascida em 1931, uma das participantes do Pastoril organizado por Carminha, sua irmã mais velha (Maria do Carmo Silva Resende). Conta ela que entre uma música e outra, a pastora de um dos cordões descia para a plateia e oferecia uma rosa vermelha (cordão vermelho), ou um cravo azul (cordão azul) a um dos senhores, geralmente políticos ou comerciantes de maiores posses, enquanto as demais pastorinhas do cordão cantavam, por exemplo: Zé de Caboclo foi quem mereceu Uma linda rosa que a Pastora deu. Zé de Caboclo faça boa ação, Receba essa rosa de bom coração. Nesse momento o velho de cima do palco gritava: – Passe pra cá um tostão, que não é de graça
não!
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Mas, os primeiros pastoris de Petrolândia organizados por Dona Tidinha, esposa de Silvino Delgado, depois também por Dona Afonsina e Dona Maria Rosa, eram religiosos e tinham como objetivo angariar fundos para a igreja. Com o passar do tempo, os pastoris foram deixando a frente das residências e passaram a se apresentar em palanques armados em frente à Estação Ferroviária, no interior do mercado público ou próximo ao rinque tendo uma carroceria de caminhão como palco. Em torno do local das apresentações armavam-se barracas com venda de bebidas e comidas. Jogos de tabuleiros eram organizados, fazendo a festa se estender madrugada adentro. Do Pastoril participavam moças escolhidas entre as famílias ilustres da cidade como se pode constatar através da edição de 20.12.1925 do Correio do Sertão:
“Parece que o Natal se revestirá este ano de muita animação, estando sendo ensaiado para o dia um lindo pastoril composto de senhorinhas da elite social *jatobaense” (*de Jatobá antigo nome de Petrolândia). A disputa se dava entre o cordão azul, de Dona Maria Rosa e o encarnado, de Dona Afonsina. Dona Maria Rosa trazia influências do Pastoril de Recife, lugar onde tinha parentes e para o
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qual frequentemente viajava. Dona Afonsina, por sua vez, conhecia o pastoril de Piranhas, seu lugar de origem. Um em nada divergia do outro, confirmando a influência pernambucana no pastoril alagoano apontada por Theo Brandão em seu livro “Folguedos Natalinos” No grupo das duas, as pastorinhas vestiam roupas confeccionadas em papel crepom. O papel era franzido em vários tamanhos formando babados e saias bem armadas. Como enfeite, estrelas douradas de papel laminado ou glítter. Na cabeça usavam chapéus, ou diademas, enfeitados com flores também de papel. Nas mãos um pandeiro, decorado com fitas, feito de flandres reaproveitados das latas de goiabadas. Esta era a especialidade de “Seu” Sátiro, que usava tampinhas de garrafa presos por pinos ao redor da lata para “dar som”, conforme nos relata Dona Helena da Graça (83 anos). Tudo em material de baixo custo, pois nem mesmo as “senhorinhas da elite Jatobaense” tinham recursos para figurinos caros.
Cada cordão se apresentava de modo a cativar o público e a plateia, que em troca oferecia dinheiro para o cordão de sua preferência. A torcida era grande e quanto mais rivalidade havia maiores eram as contribuições e mais animada à festa. As
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pastorinhas de cada cordão se apresentavam cantando: (À frente do palco o cordão vermelho) Nós somos do encarnado A cor do nosso coração. Os nossos partidários Quando entramos em cena, Vibram todos de emoção.
(À frente o cordão azul) Nós somos do azul, A cor do nosso céu de anil. Os nossos partidários Quando entramos em cena, A todos os sorrisos mil.
(a Diana canta) Como sou a Diana, Diana dos partidos sou. Aos nossos partidários, Quando eu entro em cena A todos os sorrisos dou. Antes de começar a disputa dos cordões apresentavam-se dramas compostos por “partes” ou atos cantados, tais como o drama da Cigana:
(Pastor) Cigana lá do Egito,
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Vem ler a minha mão. Te peço bela cigana, Que leia de coração.
Não quero que escondas nada Da minha sorte cruel. Porque minha vida, cigana Tem sido de dor e de fel.
(cigana) Eu leio na sua mão O que sua sorte me diz, Sua vida é um mar de pranto E nunca serás feliz.
(Pastor) Assim acredito ó cigana Que estás falando a verdade. Eu não conheço alegria, Nem sei o que é felicidade
Entre as personagens havia o Pastor, a Borboleta, a Estrela, a Cigana, a Camponesa e as pastorinhas. Gracinha Delgado, 70 anos, conta que numa das apresentações do pastoril de Dona Afonsina fez o papel de camponesa. Lenço amarrado na cabeça, saia florida, entrava no palco cantando:
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Perdida ando tão delirante, Perdida ando tão delirante, Para ver se encontro O divino Infante.
Entre palhinhas Jesus nasceu, Entre palhinhas Jesus nasceu. Preciso encontrar O menino Deus Jesus nasceu.
Findo os versos, ia até o fundo do palco chamar as pastorinhas com um pedido de ajuda. Elas, por sua vez, entravam cantando, iniciando a primeira jornada do Pastoril: Meu menino eu vim de longe, eu vim de longe. Cansado de caminhar, de caminhar. Já deu meia noite, já resplandeceu, O belo menino na lapa nasceu, O belo menino na lapa nasceu. Assim seguia a apresentação, com canções que variavam entre anúncio e louvação ao nascimento do menino Deus, apresentação dos personagens e disputa entre os dois cordões. No final a música de despedida encerrava a jornada. Durante as apresentações uma pastorinha de cada cordão descia do palco, enquanto as demais
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continuavam dançando, e circulando entre a plateia. Com simpatia, colocava pequenos broches com laços de fitilho, ou flores, na cor do seu cordão, na lapela dos homens que em troca contribuíam com algum dinheiro. Saía vitorioso o cordão com maior arrecadação. A disputa era acirrada e tal como uma torcida de futebol quem torcia por um cordão jamais mudava de “time”. Uma vez encarnado, sempre encarnado. Mas a animação do Pastoril não se restringia ao espetáculo. Começava bem antes da apresentação. O grupo, além de se reunir por dias seguidos para os ensaios, também circulava na feira, inclusive de Tacaratu e Barreiras, distribuindo lacinhos de fita que prendiam com alfinete nos bolsos dos feirantes para arrecadar dinheiro. Iniciava-se um tempo de animada expectativa que envolvia a todos. Costumava-se também arrecadar gêneros alimentícios não perecíveis que se transformavam em bolos. Também eram assados perus e galinhas para os leilões. Cada cordão organizava sua cesta, que depois de montadas eram embrulhadas em papel celofane e levavam fita na cor do cordão. Nada ficava com os participantes, a arrecadação servia para pagar os músicos e ajudar no figurino de quem não podia fazer o seu, a sobra era doada à igreja. Nos anos 40, Dona Laís, esposa do Dr. Genivaldo, médico que atendia no SESP, chegou a
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montar um grupo que se apresentou dentro do Mercado Público com entrada paga. A cobrança era simbólica, mas servia para aumentar a beneficência. O figurino do pastoril de D. Laís era mais fidalgo. As saias eram de tafetá, sob a qual se usava uma cinta larga de cetim preto. As blusas de organdi, com elástico no decote deixando os ombros à mostra. Nos pés sapatilhas pretas de pano. Na cabeça flores de tecido nas cores do cordão, azul ou vermelho, confeccionadas com esmero por Dona Iracema de Nica, segundo as lembranças de dona Helena da Graça, 83 anos, uma das participantes. Dona Sônia, filha de “Seu” Da Cruz, de 80 anos, também fez parte do pastoril de Dona Laís e compartilha das mesmas lembranças. Lembra também do pastoril de Dona Joaquina, primeiro grupo do qual participou aos 12 aos de idade. Recorda com saudade as apresentações no rinque e o figurino de papel crepom tão usado na época. O segundo pastoril do qual D. Sonia fez parte foi o de Ana, mãe de Marizete. Em sua memória o caminhão transformado em palco e as pastorinhas vestidas de laquê, nos pés meias brancas e sapatos de verniz preto. Não se esquece da empolgação da torcida de cada cordão e fala que a disputa era bem acirrada: “Tinha gente que até brigava por causa do seu cordão”...
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O grupo pastoril de Dona Carminha (Maria do Carmo Resende) se apresentava na rua, também em cima da carroceria de um caminhão, usando saia curta com três babados, nas cores dos respectivos cordões. Calçavam tênis e meias brancos e o chapéu de palha com uma flor de lado completava o figurino. Era o grupo que mais se apresentava em Barreiras a convite dos administradores do Núcleo Colonial. Por volta de 1968, Euza Silva que em criança admirava o pastoril de Dona Afonsina, depois de adulta montou seu próprio grupo cujos principais personagens eram a cigana, a borboleta, a pastora e o velho, indicando tratar-se do pastoril profano. Em conjunto com Dona Marieta, com figurino de papel crepom, terror das noites com preparação de chuva, o grupo geralmente se apresentava próximo ao Clube Piçarrinha na carroceria do caminhão gentilmente cedido por José da Cruz, um entusiasta das festas de rua. Depois Dona Marieta adquiriu um salão, então passaram a apresentar-se mediante entrada paga. A renda era dividida entre as organizadoras. Euza recorda algumas canções do pastoril da época:
Uma ciganinha do Egito vem A procura das pastoras que vem à Belém. Ó linda ciganinha já chegou o dia De nosso prazer, de nossa alegria.
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(a cigana canta)
Sou a cigana do Egito Que veio de Belém. Guiada por uma estrela Que brilha no céu além.
Na entrada do Velho as Pastorinhas cantavam:
Casais, casais quem és. Casais, casais quem és. Sou o velho que chegou agora Com seu charuto na boca E chapéu a espanhola.
O Velho dizia:
O velho diz que tem Dinheiro como farinha Para arrematar essas coisas ai ai. E dar as pastorinhas.
Dona Marizete, pessoa de origem humilde, aprendeu a dançar pastoril com Dona Joaquina. Depois formou o seu próprio grupo no Alto da Raposa, comunidade da periferia de Petrolândia. Da mestra, já idosa e acamada, recebeu o pedido para que nunca
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deixasse morrer o pastoril de Petrolândia. Enquanto vida teve, Dona Marizete cumpriu o prometido. Mesmo com muita dificuldade seu pastoril foi o que mais tempo permaneceu em atividade, na história recente de Petrolândia. Tendo sobrevivido, inclusive, ao tumultuado período do processo de mudança durante a construção da barragem. Na nova cidade ela mantinha um grupo que, além do pastoril, apresentava outras danças do folclore como reisado, ciranda e coco. Tinha prazer em orientar quem quisesse aprender como produzir um pastoril, fosse religioso ou profano. Pantaleão, mais conhecido pelo carnaval, também organizava seu pastoril profano, onde o velho era a principal atração. Eis aqui uma pequena amostra dos versos cantados pelo velho:
Quem quiser que o velho dance, Dê-lhe um copo de aguardente. O velho fica contente Fazendo careta pra gente. (Memória de Dona Oliva-92 anos)
Em 2018, no Palco Cultural da Festa de São Francisco o pastoril ressurgiu como resultado do trabalho de pesquisa realizado pelo Instituto Geográfico e Histórico de Petrolândia.
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Pastoril Esperança 2018/Foto: arquivo pessoal.
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Assim nasceu o Pastoril Esperança, formado por meninas do bairro Nova Esperança, periferia da cidade. Com espaço de ensaio cedido pela Igreja e apoio da Escola Municipal Itamar Leite, do próprio bairro.

Pastoril do Grupo Reviver 2018/Fotos: arquivo pessoal.
Em sua estreia a nova geração foi precedida pela apresentação do Pastoril do Grupo Bem Viver, da terceira idade da igreja, conduzido por Bezinha. O espetáculo simbolizou o repasse da tradição entre as duas gerações.
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Pastoril Esperança 2019/Foto: arquivo pessoal.
Pastoril do Grupo Reviver/Foto: arquivo pessoal.

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