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Os Penitentes
“Penitentes são seitas secretas herdeiras de mitos e práticas implantadas pelos padres missionários em suas peregrinações pelo Sertão, em fins do século XIX e primeiras décadas do século XX. A penitência está associada a solidariedade à terra, ao dever do homem para com seu criador e a remissão dos pecados do mundo”. Esta definição utilizada por diversos pesquisadores, foi a adotada pela então jornalista, Cristina Tavares, em seu artigo sobre o tema publicado no Diário de Pernambuco, resultado de sua pesquisa realizada em Petrolândia durante o ano de 1970. “Ligados normalmente por parentesco ou compadresco os penitentes de Petrolândia tinham seus grupos mais representativos os do Brejinho e de do Riachão. Suas procissões se realizam à noite, em caminhadas que poderiam continuar até o amanhecer. Sua ação litúrgica é caminhar.” “Até pouco tempo era comum a prática de auto suplício que se fazia com chicote de couro tendo na extremidade uma lâmina afiada como uma gilete”
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“O beato cumpre a penitência deixada por Deus e isso ajuda a tornar a terra fértil e as chuvas mais abundantes”
(Cristina Tavares Correia no DP Ed. 114. De, 17.10.1970)
Tradição vinculada a Igreja Católica, cujo ritual parece retratar o percurso de Cristo ao Calvário, é um movimento que remonta a Idade Média, formada por leigos, homens simples, em geral de origem rural, católicos abnegados, de moral insuspeita, que tendo a cruz como símbolo maior de adoração, se auto penitenciam a fim de lembrar o sofrimento de Cristo, obter o perdão dos pecados seus e da humanidade e as farturas advindas da terra. Introduzida no sertão desde sua colonização, esta cultura bíblica permeada por mitos, crenças, valores e princípios morais chegou a Petrolândia através dos padres missionários fundadores da Aldeia do Brejo dos Padres2. Uma vez incorporadas ao sistema de crenças e práticas do povo Pankararu, passou a ser adotada por parentes índios e não índios e propagada pela tradição oral.
A adesão à irmandade dos Penintentes se faz após julgamento de avaliação sobre a conduta do
2 Matta, Priscila, in Dois elos da mesma corrente: os rituais da Corrida do Imbu e da Penitência entre os Pankararus
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pretendente, que deve se mostrar física e moralmente apto. Não beber, não fumar, não provocar desordens, não cometer crime de morte e ser casado na igreja, são algumas das condições exigidas. Há, também, um código de honra estabelecido para garantir o segredo sobre a identidade dos participantes. Apenas o Decurião (chefe e mestre disciplinador das Irmandades de Penitentes), pode se revelar. Uma vez aprovado, o novo membro acompanha o grupo por um ano aprendendo rezas e hinos e conhecendo de perto o sofrimento ao qual se submeterá. Somente após esta vivência poderá encomendar a sua “disciplina”, chicote de couro com lâminas de metal na ponta, instrumento utilizado na prática mais dolorosa entre todas as penitências a que se submetem.
“Os penitentes praticam o ritual de dor por solidariedade à terra. A religião para eles é sofrimento. Tanto é assim que só comemoram as festas dolorosas, como a semana santa, ignorando o Natal, que para eles não tem nenhuma significação” (Cristina Tavares)
As penitências começam na quarta-feira de cinzas e prossegue até o sábado de Aleluia, quando bem feitas duram sete anos, depois disso a graça está paga e o penitente pode abandonar o grupo se quiser.
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Dita a regra que durante a quaresma o penitente não pode comer carne, tomar bebidas alcoólicas ou manter relações sexuais. Antigamente não podia nem se despir na presença de qualquer pessoa que não fosse penitente. Alguns não tiravam a camisa nem diante das próprias mulheres, despidos, as cicatrizes mostrariam que são penitentes e o código de honra exige segredo. Mas a maioria das esposas acabavam sabendo e guardava segredo, “Não tava nem azeda de contar!”, diz a esposa de um deles, ao ser entrevistada. Salvo algumas pequenas variações, os diversos grupos penitentes do Nordeste vestem por sob a roupa, longas túnicas de tecido azul ou preto contendo cruzes que variam em quantidade e tamanhos. Na cabeça usam boina com véu cobrindolhes o rosto, à exceção do Decurião3 que permanece com o rosto á mostra. A vestimenta adotada pelos penitentes de Petrolândia, segundo relato de Jorge de Ernesto (80 anos), segue o mesmo padrão. Usam túnica azul estampadas com quatorze pequenas cruzes brancas (mesmo número das estações da via sacra). Na cabeça quepe redondo de tecido azul sem aba, estilo africano, com um véu branco a esconder o rosto.
3 Líder condutor e disciplinador da irmandade
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Até pouco tempo a peregrinação costumava ser iniciada após se reunirem no mato, em geral próximo ao Brejinho de Fora, por volta de meia noite nas quartas, quintas e sextas-feiras da quaresma. Rezadas as primeiras orações, tendo uma enfeitada cruz de madeira á frente, o cortejo partia rumo à igreja onde diante do altar cantavam:
Deus vos salve Casa santa Onde Deus fez a morada Onde mora o Calix Bento E a hóstia consagrada
Deus vos salve casa santa Onde Deus fez a morada Toda coberta de estrela E de ouro toda ornada
Deus vos salve casa santa Que viemos visitar Os santos todos E o padroeiro do lugar Valei-me Jesus. (3 vezes)
De lá marchavam para o cemitério cantando, rezando e arrastando as lâminas do chicote pelo chão, enchendo a noite de um som triste, assustador. A população trancada em casa, em silêncio, ouvia
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assombrada. Em sinal de respeito ninguém se atrevia a abrir a porta. Mas a curiosidade vencia o medo e das frestas das janelas, no escuro da sala, tentava-se assistir a passagem deles pela rua. Algo raro, uma vez que preferiam se deslocar pelos arredores, evitando o centro da cidade. Ao chegar ao cemitério, em saudação cantavam: Deus nos salve ó Campo Santo Que viemos visitar Visitar as almas todas E o padroeiro do lugar
O ritual seguia entre cantos e orações pela salvação das almas proclamadas nas sepulturas de penitentes falecidos e seus parentes. Em seguida tornavam a andar, agora em direção ao Serrote do Padre para adorar o Cruzeiro no alto do Serrote. No percurso vão se detendo em cada cruz de acidentados fincadas na beira da estrada, a fim de rezar pela alma do falecido. Diante do cruzeiro entoavam cantos de adoração à cruz, tais como:
Que estás fazendo cruz bendita Debaixo de sol sereno Com os poderes de Deus Pai Cruzeiro do Nazareno
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(repete três vezes em volta do cruzeiro)
Deus nos salve cruz Do altar sagrado Onde o bom Jesus Foi crucificado (3x)
No caminho às vezes paravam em alguma casa, em atendimento a pedidos de pagamento de promessas, onde proclamavam orações de oferecimento do tipo:
Ó meus irmãos, vamos oferecer essa penitência de hoje à sagrada morte e paixão do Senhor Jesus Cristo. Ó meu Senhor Jesus |Cristo, Senhor do meu coração/Aceitai a penitência e nos dê a salvação/Aqui estão os penitentes Pedindo a Deus perdão Perdoai nossos pecados, Vós sabeis quantos são. (3x)
Terminada a obrigação, antes de seguir a caminhada, despediam-se da casa cantando: Vamos dar a despedida É hora de nós viajar E meia noite deu hora Deus nos queira acompanhar
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À meia noite deu hora Dos Penitentes andar Acompanhai a todos nós Até quando nós chegar (repete)
Junto com a Virgem Maria Acompanhai nós todos Hoje, amanhã e todo dia (repete)
Pelos três cravos na cruz Acompanhai a nós todos Junto com meu bom Jesus (repete) Para todo sempre amém! Acompanhai à todos, Para todo o sempre amém!
Cada penitente levava consigo sua “disciplina”, com a qual se auto açoitavam durante a caminhada, de modo a ferir as costas a ponto de sangrar. Porém, em função do risco de infecções decorrentes dos ferimentos, essa prática acabou sendo proibida pela igreja no final dos anos 60. Passados dez anos, quando entrevistado pela então jornalista Cristina Tavares, o Decurião Adelino do povoado do Riachão ainda se queixava dos efeitos dessa mudança:
“A lei hoje não está mais como a lei que eu conheci nos tempos do decurião Henrique o
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bisavô desse menino aí, nunca ficou uma trovoada sem o riacho encher. Se a penitência foi dada por Deus, ela tem que ser cumprida. Hoje o que a gente vê é o riacho que nem cascão.” Queixa esta hoje reforçada pelo atual Decurião que afirma como num lamento:
“Penitente sem “disciplina” não é mais penitente.” Em Petrolândia restam poucos penitentes praticantes, apesar de até bem pouco tempo contar com dois grupos: o masculino, dos Penitentes ou Disciplinadores, como também são conhecidos em alguns lugares, e a Ordem das Mulheres de Branco da Santa Cruz (as rezadeiras de almas), só de mulheres, que se apresentavam vestidas de roupa branca ou em lençóis brancos a cobrir-lhes o corpo e a cabeça. Formada, em geral, por esposas e filhas de penitentes, essa ordem feminina teve início no Brejo dos Padres em 19404, fundada por Maria Bárbara, líder religiosa do lugar. Numa época em que a presença do padre era coisa rara, Maria Bárbara assumia os trabalhos religiosos, organizando terços e novenas. Além da fundação da Ordem, foi dela
4Matta, Priscila, in Dois elos da mesma corrente: os rituais da Corrida do Imbu e da Penitência entre os Pankararus
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também a iniciativa de instituir a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte, na aldeia, em agosto. Apesar de praticarem ritual semelhante ao grupo masculino, como a adoração à cruz e a reza pelas almas, entre as mulheres não se aplica a “disciplina”, nem o anonimato. A penitência está restrita à oração diária do terço. Cabe às participantes da Ordem, segundo Danúbia, a qualquer tempo, rezar nas casas que aceitam receber a imagem de Nossa Senhora, rezar de quebranto (mau olhado) e recomendar almas em velórios, cantando “Excelências”. A Excelência é um canto entoado à cabeça dos moribundos ou mortos, que na linguagem do povo simples passou a chamarse “Incelência”, como no verso a seguir:
“Uma incelência da Virgem Nossa Senhora/Amanhã muito cedo esta alma vai embora/Ela vai embora com a dor no coração/Adeus meu povo todo, adeus meus irmãos”. Segundo Luiz Vicente do Nascimento, Lula, atual Decurião dos Penitentes de Petrolândia, homens e mulheres não se misturam durante a prática dos rituais. Caso os dois grupos sejam chamados a atender uma penitência na casa de alguém, o grupo que chegar primeiro reza se recolhe a um ambiente interno da casa, depois o outro grupo chega para continuar a rezar. O Decurião conduz os
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benditos e os demais, homens e mulheres, respondem de onde estiverem. Essa divisão fica bem demonstrada neste refrão lembrado por Lula:
“Sai daqui mulher que aqui ninguém lhe quer/ que aqui nesse rebanho não pode entrar mulher” Sujeitas a um código moral semelhante ao dos penitentes, as Mulheres de Branco são proibidas de usar cabelo curto, unhas longas, fazer sobrancelhas, e usar “moda”, ou seja, roupa justa e curta, conforme explicou Danúbia, última líder do grupo penitente feminino de Petrolândia. Danúbia era filha de Cícera Maria da Silva e Paulo Pereira da Silva, nasceu em Mata Grande, em 10.08.1952. Veio morar em Petrolândia com apenas um ano de nascida, quando o pai começou a trabalhar no desmatamento para instalação dos postes que receberam as primeiras linhas de alta tensão da CHESF. Ela contava que havia entrado para a irmandade através de convite de Dona Candinha, líder anterior, nascida no Brejo dos Padres, cujo pai, penitente, antes de falecer pediulhe que não deixasse morrer a tradição. Apesar de em sua maioria serem devotos de Nossa Senhora da Saúde, das Dores, Padre Cícero e de São Francisco Penitente, entre outros santos, em geral os penitentes não são freqüentadores assíduos das igrejas. Mas, na Festa de Nossa Senhora da
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Saúde, em Tacaratu, a celebração da noite de novena a cargo dos Penitentes e das Rezadeiras da Santa Cruz lota a igreja, ajudada pela participação dos demais penitentes da região. Rara ocasião onde homens e mulheres rezam juntos. Em Petrolândia, no entanto, apesar da boa relação com o clero, a atividade dos penitentes na cidade sempre foi periférica, sem nenhum papel relevante como a participação em novenas do Padroeiro, a exemplo do que ocorre em Tacaratu. O apoio da paróquia se restringe a abertura da matriz durante a madrugada nos dias de peregrinação e a guarda da cruz na sacristia enquanto não é usada. Com as rezadeiras não foi diferente. Com a mudança provocada pela barragem, muitas delas passaram a morar na cidade e como de costume reuniam-se regularmente na casa da Líder para a rezar o terço, além de cumprir com as demais obrigações da ordem. Mesmo assim, em nenhum momento foram chamadas a assumir tarefas na igreja, nem mesmo as exéquias, serviço de poucos voluntários. O contrário do que corria na área rural, onde a devoção popular não espera por padres e por isso tiveram papel relevante no fortalecimento da fé do povo. Apesar de por muitos anos ter contado com razoável número de integrantes, com a morte de Danúbia em 2018, não se teve mais notícia de
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continuidade da Ordem da Mulheres de Branco na cidade e nem na área rural de Petrolândia, provavelmente em função da idade avançada das demais participantes. Por outro lado, a irmandade masculina dos Penitentes que ainda sobrevive vem minguando com o tempo, muito pelas condições de saúde dos antigos participantes, em decorrência da idade, e pela dispersão no novo território dificultando o encontro. Os poucos que restam, para não deixar de cumprir com suas obrigações, na quaresma costumam se unir aos penitentes de Gloria (BA). O atual Decurião se queixa que os mais velhos estão morrendo e o movimento tende a se acabar por falta de interesse dos mais jovens. “Qual é o jovem hoje que quer pagar penitência?”, pergunta ele em tom resignado.
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Malhação do Judas
A malhação do Judas, segundo o folclorista Câmara Cascudo, é uma tradição que tem sua origem na Península Ibérica e chegou ao Brasil no período colonial. Consiste na confecção de um boneco feito de panos velhos, recheado de palha, a ser rasgado e queimado no final do Sábado de Aleluia. Não se sabe como esse costume veio para Petrolândia, mas nos anos 60, quando o domingo de Páscoa amanhecia, um boneco de pano do tamanho real de um homem já estava amarrado ao poste da principal praça da cidade, sem que ninguém o visse sendo colocado lá. Normalmente era preso no alto do poste no giradouro em frente ao Abrigo Estudantil e trazia nos bolsos um “Testamento”, carta anônima contendo críticas e anarquizando pessoas da cidade. Izabel Ferraz (Bezinha), ainda lembra-se de um rapaz que chegou a Petrolândia encarregado de aplicar vacinas na região. Trabalhava de farda e todos os domingos lá estava ele na missa, sempre vestido numa camisa de cor rosa. O Judas não perdoou:
Para o rapaz da vacina, De aparência garbosa Deixo uma camisa azul
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Para substituir a rosa.
As pessoas se juntavam ao redor do Judas para ouvir a leitura da tal carta e dar muitas risadas, em seguida o Judas era rasgado e queimado. Hoje se sabe que tal façanha era providenciada por Zé Sobreira, e os amigos José da Cruz e Pedro Mestre, dois dos mais animados foliões petrolandenses, que também “roubavam” charretes, burros, cavalos e bodes para amarrar junto ao Judas como parte da herança.
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