O Sidur: uma dança entre a Torá, o canto e a palavra Andre Nudelman
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Os segredos do nome de Deus Ricardo Gorodovits
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O Brasil em Israel: um caso de amor musical Jaime Barzellai
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A Copa e o fanatismo Rabino Dario Bialer Israel: para ser um Estado judaico e democrático Paulo Geiger
A Turquia e os judeus: um futuro de interrogações Michel Alfandari
A tenda comunitária Rabino Sérgio R. Margulies
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Gesa Ederberg: uma rabina liberal em Berlim por Ricardo Sichel
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Ruth Wisse e o paradigma equivocado do conflito árabe-israelense
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As longas sombras da guerra de 1967 Luiz Dolhinkoff
As longas sombras da guerra de 1967 Luiz Dolhinkoff
Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 9, n° 24, Agosto de 2014 devarim devarim
Debatendo com um querido amigo a eterna questão do assalto Palestino ao Estado de Israel, durante os amargos dias da Operação Margem de Proteção, eu observei que a Organização para a Libertação da Pa lestina (OLP) foi fundada em maio de 1964, em Jerusalém, que naquele momento fazia parte da Jordânia. Portanto, con cluí que, como a ocupação militar de Israel sobre os territórios da Cisjordânia e de Gaza data de três anos depois – junho de 1967 –, os territórios que os Palestinos queriam liberar dos ju deus não eram Gaza e Cisjordânia (que estavam sob controle árabe) e sim o Estado de Israel, que eles jamais aceitaram como um Estado legítimo, independentemente de por onde passem as suas fronteiras.
O meu amigo não comprou meus argumentos. “O motivo de a OLP ter sido fundada apenas em 1964 é que a identidade palestina foi uma construção lenta. Ela não existia nos anos 30 e 40. Ela foi lentamente moldada após 1948 e até mesmo a ges tação da OLP de 1964 foi uma criação de poucos. A identidade palestina ganhou os corações e as mentes da grande maioria dos árabes da região mais tarde, sendo que a guerra de 1967 foi um fator decisivo para isto”, disse ele.
Bem, eu considero o meu amigo uma pessoa inteligente e bem informada e aceitei seus argumentos. Contudo, mais tarde me ocorreu que se ele está certo: a identidade palestina é muito problemática, porque ela é uma identidade “contra” em vez de ser uma identidade “a favor”.
Se ele está certo, a identidade palestina foi construída em oposição ao Estado de Israel e não em prol do conjunto de sin gularidades do povo palestino. Ela seria mais anti-israelense do que pró-palestina. E isto parece ser confirmado por uma visita aos websites da OLP, para os quais a história dos palestinos co meça ao mesmo tempo em que a história do sionismo. Ou seja, antes do sionismo não havia Palestina.
E qualquer identidade que seja construída “contra” alguma coisa se sustenta apenas enquanto esta coisa existe. No momen to em que o “contra” desaparece a identidade sofre uma profun da perturbação.
Talvez por isso o conflito dos Palestinos contra Israel seja de tão difícil solução. No momento em que os palestinos dei xarem de ter um Israel para ser contra (ou por sua destruição, como tentam os grupos radicais, ou por um acordo de paz,
como querem Israel e o resto do mundo) a identidade palesti na desaparecerá ou se modificará radicalmente.
Parece-me que a retirada de Israel da faixa de Gaza em 2005 comprova esta minha especulação. Pela primeira vez na história os palestinos ganharam controle territorial e político numa parte do território que reivindicam. Poderiam ter criado algo inédito na história da Humanidade fundando o primeiro Estado árabe independente da região, moderno e democrático.
Mas não foi isso o que aconteceu. Como a dar razão à mi nha especulação sobre a insustentabilidade das identidades “ne gativas”, ao se verem livres da ocupação os palestinos de Gaza se esqueceram da Palestina e colocaram no poder um grupo fun damentalista religioso – o Hamas – cujo estatuto declara ser seu objetivo a criação de uma nação islâmica mundial, sem frontei ras entre países e sem Estados nacionais (um conceito ocidental e, portanto, odioso para eles). O Hamas sequestrou a fraca iden tidade palestina e a transformou em forte afinidade religiosa fun damentada em conceitos anteriores à Idade Média.
E os escritos do estatuto não ficaram apenas no papel: o Ha mas utilizou os recursos generosamente vertidos pelo mundo (na vã esperança de serem aplicados em desenvolvimento econômi co) para construir a mais eficiente máquina de guerra direciona da contra Israel que conseguem conceber. Ela só não é mais po derosa (e parece fraca perante a israelense) porque eles não têm recursos para tal. Vontade não falta.
Adquiriram mísseis cada vez mais sofisticados, cavaram deze nas de túneis desembocando dentro das comunidades do Estado judeu com o propósito de promover massacres de civis e direcio naram seus melhores recursos humanos para a guerra.
Afinal de contas, não há nada mais importante do que con quistar o mundo para o Islã, reza o estatuto do Hamas, miran do no exemplo do Profeta do sétimo século. A aniquilação de Israel é apenas um passo no caminho da subjugação de todos os “infiéis” do mundo. Nestes tempos de trágica renovação do ci clo de violência contra Israel todos os pensamentos do mundo judaico se voltam mais fortes que nunca para a questão do com plexo convívio de Israel com os Palestinos.
E a reflexão a respeito da identidade “negativa” dos Palestinos parece sugerir que a paz não depende nem de fronteiras e terri tórios, nem de ocupação e assentamentos, e sim de os palestinos conseguirem ser mais a favor deles mesmos do que contra Israel.
Raul Cesar Gottlieb – Diretor de Devarim
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 1 editorial
Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 9, n° 24, Agosto de 2014
P R es I dente d A ARI Ricardo Gorodovits
R A b I nos d A ARI sérgio R. Margulies dario e bialer
dIR eto R d A Rev I stA Raul Cesar Gottlieb
Conselho e d I to RIA l beatriz bach, breno Casiuch, Rabino dario e bialer, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio Margulies.
e d I ção editora narrativa Um e d I ção de A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) tainá nunes Costa
F oto GRAFIA de CAPA PollenPhoto (istockphoto.com)
t RA d U ção Daniel Kovarsky • Michel Ventura
Rev I são de t exto Mariangela Paganini (libra Produção de textos)
Colaboraram neste número: Andre nudelman, Rabino dario e bialer, Jaime barzellai, luis dolhinkoff, Michel Alfandari, Paulo Geiger, Ricardo Gorodovits, Ricardo sichel, Rabino sérgio R. Margulies.
os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista devarim ou da ARI.
os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.
A revista devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br www.devarim.com.br Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ telefone: 21 2156-0444
A contracapa de devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ
devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.
sumário
A tenda comunitária Rabino Sérgio R. Margulies 3
O Sidur: uma dança entre a Torá, o canto e a palavra do homem Andre Nudelman 9
A Copa e o fanatismo Rabino Dario Ezequiel Bialer 15
O Brasil em Israel: um caso de amor musical Jaime Barzellai 21
Os segredos do nome de Deus Ricardo Gorodovits 31
A visão de uma rabina liberal em Berlim: entrevista com a Rabina Gesa Ederberg Ricardo Sichel 37
A Turquia e os judeus: um futuro de interrogações Michel Alfandari 40
O paradigma equivocado do conflito árabe-israelense Entrevista com a professora Ruth Wisse 47
As longas sombras da guerra de 1967 Luiz Dolhinkoff 55
Em Poucas Palavras 60
Israel: para ser um Estado judaico e democrático Paulo Geiger 63
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a tenda comunitária
rabino sérgio r. margulies
Do convite
S igmund Freud (1856-1939) e Theodor Herzl (1860-1904) foram vi zinhos na cidade de Viena, porém nunca se encontraram. Há os que dizem ‘ainda bem’, pois talvez Freud convencesse Herzl a abandonar sua obsessão sionista ou Herzl persuadisse Freud a deixar o estudo dos sonhos para se concentrar na realidade política.1
O rabino Richard Hirsh (1926-) ensina que, alguns anos antes de Herzl es crever o livro O Estado Judeu, um grupo de jovens pioneiros foi, em 1882, para a terra de Israel constituindo um movimento cuja denominação Bilu é basea da no verso bíblico do profeta Ieshaiahú [Isaías] 2:5: Beit Iaakov lechu uneilcha beor Adonai, “Vem, ó Casa de Jacob, e caminhemos sob a luz do Eterno”.2 Bilu é um acrônimo das primeiras quatro palavras desta frase. As palavras ‘sob a luz do Eterno’ foram deixadas de lado, demonstrando o caráter não religioso do grupo.
Na mesma época em que o movimento Bilu foi organizado na Europa Oriental o movimento Reformista ganhava contornos institucionais na Amé rica do Norte e utilizou a mesma frase do profeta Ieshaiahú [Isaías] como fonte de inspiração. No entanto, eliminaram as duas primeiras palavras – Beit Iacov, Casa de Jacob – e mantiveram o resto do verso, evidenciando a irrelevância que atribuíam ao conceito de povo e seus elementos nacionalistas.
Se os membros do Bilu e os líderes da Reforma se encontrassem, apesar da distância geográfica, provavelmente teriam um embate ideológico. Quem se renderia a quem? Qual posição iria prevalecer e qual iria desvanecer? Talvez o diálogo pudesse florescer a partir dos distintos focos para que um aprendesse do outro? Para que este aprendizado se tornasse possível seria necessária a não exclusão das concepções antagônicas e a apreciação da raiz comum.
O filósofo Martin Buber (1878-1965) explica: ‘A’ é oposto a ‘– A’. Assim, podemos pressupor que ‘A’ exclui ‘– A’. No entanto, o judaísmo anseia as
A vitalidade judaica está em criar ambientes de convívio. Assim são construídas e mantidas tendas comunitárias –escolas, sinagogas, organizações juvenis, femininas, culturais, sociais, esportivas, assistenciais, entidades de representação – como referências para que o espírito não seja refém do deserto do descaso.
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segurar a coexistência de ‘A’ com ‘– A’. Abraçar a diversidade, com seus parado xos, é uma das fontes da riqueza judai ca. Por isso, pontua o rabino Abba Hil lel Silver (1893-1963), o judaísmo rejei ta a fórmula ou/ou. Prevalece a inclusão expressa pelo ‘e’ que incorpora os opostos para que deles emerjam novos e constan tes aprendizados.
O propósito judaico de incluir sur giu já na tenda de habitação do primei ro hebreu e da primeira hebreia, Abrahão e Sara. A tenda deles era aberta a fim de convidar, abraçar e incluir.
Do convívio
Tal como a vida é dinâmica, a Torá, ao ser da vida, é igualmente dinâmica. Seu formato, utilizado para fins ritualísticos, é de rolo: gira. Segue. Não fecha. Sua mensagem é como uma nau em permanente viagem que vislumbra as ilimitadas perspectivas do horizonte.
Na caminhada pelo deserto em sua busca pela liberdade, o povo de Israel resgatou os ideais da tenda de Abrahão e Sara construindo a tenda comunitá ria, denominada em hebraico de Mishkan, traduzido por Tabernáculo. No deserto, o Mishkan – a tenda comunitá ria – tornou-se uma referência para que ninguém se sen tisse desvinculado.
A vitalidade judaica está em criar ambientes de conví vio. Assim são construídas e mantidas tendas comunitá rias – escolas, sinagogas, organizações juvenis, femininas, culturais, sociais, esportivas, assistenciais, entidades de re presentação – como referências para que o espírito não seja refém do deserto do descaso.
Sob três pilares, afirma o Talmud, o mundo se susten ta: oração, Torá e atos de benevolência. A tradição judai ca estipula que oração requer o minian – dez pessoas e o estudo da Torá seja feito em chavruta –, parceria. Deste modo, através de oração e estudo o espaço é de convívio e de compartilhamento. Para os corpos enfraquecidos e co rações contritos o ato é da inclusiva benevolência em que a face do outro não fica oculta da face de cada um.
Da mobilidade
O Mishkan era móvel e acompanhou o povo em sua caminhada de quarenta anos. De modo similar, o ensi namento da Torá nos acompanha, pois seu significado é constantemente interpretado. Por isso é denominada por Torat chaim, Torá da vida. Tal como a vida é dinâmica, a Torá, ao ser da vida, é igualmente dinâmica. Seu formato,
utilizado para fins ritualísticos, é de rolo: gira. Segue. Não fecha. Sua mensagem é como uma nau em permanente viagem que vislumbra as ilimitadas perspectivas do horizonte. Eventualmente, nós, seus leitores e estudiosos, ancoramos no por to das concepções imutáveis. Faz parte para alguns momentos da vida. Não para a vida toda. É importante, de tempos em tempos, zarpar, oxigenar o espírito e ven tilar as ideias.
Ambientes fechados mofam. Não somente os fechados pelas paredes, mas aqueles cujo espírito e mente não se oxi genam. Nossas casas comunitárias, ao se renovarem, seguem o paradigma da ten da comunitária do Mishkan de abertura e transformação.
Da visão
O modelo de abertura do Mishkan foi seguido na cons trução do Primeiro Templo em Jerusalém. Uma passagem da literatura rabínica ensina3: Quando um rei constrói um palácio as janelas são estreitas na parte externa e mais lar gas na interna a fim de que a luz adentre. Mas na constru ção do primeiro Templo em Jerusalém – palácio simbólico do Rei dos reis, o Soberano do Universo – as janelas fo ram construídas de modo oposto, isto é, estreitas do lado de dentro e mais largas do lado de fora a fim de que da quele ambiente saia luz.
A concepção é de que o ambiente religioso não fique voltado para si mesmo, seja capaz de atuar no mundo, abrir-se para o mundo e não fechar-se do mundo. As sina gogas – nossas casas comunitárias contemporâneas – de vem ter janelas, estabelece a lei judaica. A ênfase nesta de terminação alerta: a espiritualidade é para reforçar a inte ração com o mundo e com as pessoas do mundo.
Da abertura Pessoas do mundo. Cada uma com sua singularidade. No intuito de, no convívio, valorizar a riqueza das indivi dualidades na caminhada pelo deserto além da tenda co munitária, o Mishkan, havia as tendas em que cada famí lia morava. Os comentaristas da Torá expõem que cada tenda de habitação preservava sua privacidade. A preocu
Revista da Associação Religiosa Israelita-
ARI | devarim | 5
pação judaica é de equilibrar a pertinência comunitária com o respeito à indivi dualidade. Ser inclusivo pressupõe não ser invasivo. Respeitar os limites da indivi dualidade e da privacidade reforça os la ços de convívio. Convívio é tanto abrir quanto fechar a porta, é tanto comparti lhar quanto se retirar. Para então retornar.
Do futuro
Os intérpretes da Torá perguntam: Como em pleno deserto o povo judeu encontrou madeira para construir o Ta bernáculo? A explicação alegórica é sig nificativa. Séculos antes o patriarca Iacov [Jacob] saiu da Terra de Israel e foi para o Egito procurar alimentos. No ca minho plantou pequenas mudas de árvo re. Quando o povo fez o caminho reverso – do Egito à Terra de Israel – encontrou árvores crescidas e utilizaram seus galhos para construir sua tenda comunitária.
A preocupação judaica é de equilibrar a pertinência comunitária com o respeito à individualidade. Ser inclusivo pressupõe não ser invasivo. Respeitar os limites da individualidade e da privacidade reforça os laços de convívio. Convívio é tanto abrir quanto fechar a porta, é tanto compartilhar quanto se retirar. Para então retornar.
Tempo em hebraico é zeman. A palavra zeman forma um verbo: lehazmin, que significa convidar. A vida comunitária en contra expressão no convite que abraça e compartilha o tempo de convivência. O convite rompe a mentalidade um ou ou tro e afirma um e outro.
Um e outro na tenda comunitária am pla e aberta, uma tradição que remonta Abrahão e Sara e segue...
... até Freud, que buscava compreen der a agonia da alma e encontrou na per tinência comunitária da Associação B’nai B’rith conforto para sua própria angústia diante da rejeição de seus estudos;
... até Herzl, que em seu pragmatismo enxergou o milenar sonho judaico;
... até o Bilu, que tirou a menção de Adonai de seu nome, mas seu manifes to programático conclui com a proclama ção: ‘Escuta, ó Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é Um’;
Se alguém na geração do deserto falasse: “Não pode mos tocar na árvore, pois foi plantada por Iacov [Jacob]”, o próprio esforço de Iacov teria sido em vão. Mas não foi em vão e a Torá afirma: “E o Tabernáculo veio a ser um todo”. (Shemot [Êxodo] 36:13).4 Um – explicam os co mentaristas – quer dizer que no Tabernáculo ninguém se sentiu superior, cada um contribuiu completando o ou tro. Acrescento: cada um de nós completando os inúmeros outros na valorização do potencial de transformação que os vínculos proporcionam através do aprendizado mútuo.
De cada um
O rabino Abrahão Heschel (1907-1972) sugere que nossas casas comunitárias sejam o santuário do tempo.
... até os reformistas, que se reformaram ressaltando o conceito de povo e o vínculo com a terra ancestral;
... por contínuas gerações para que cada um encontre seu espaço, viva seu tempo de convívio com sua riqueza de inevitáveis contradições e salutares transformações.
Notas
1. The Jerusalem Post, 6/10/2009.
2. Tradução em Português, Bíblia Hebraica, Editora Sefer, SP, 2006, ed. Fridlin, J. e Gorodovits, D.
3. Citado pelo rabino Richard Hirsch (Fonte: a coletânea de interpretação do livro Levitico, Vaikra Raba).
4. Bíblia Hebraica, op. cit.
Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Religiosa Isra elita do Rio de Janeiro – ARI.
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o s idur: uma dança entre a torá, o canto e a palavra do homem
O Sidur é uma obra aberta, em que cada época vem sendo retratada em suas linhas e, por todo o tempo, estabelece-se uma dança entre Torá – simbolizando a palavra revelada pelo Deus – e Shirá – que representa o canto, a palavra, a intenção do homem.
andre nudelman
Há elementos que nos constroem e que definem as bases das bases, antes mesmo da formação, educação e estruturação dos indivíduos. Atuam em um nível primário e servem de fundações para a edificação e o de senvolvimento da identidade, cultura e de tudo mais que vem depois.
São elementos que costumam ter a ver com as nossas percepções mais dire tas e imediatas: quem somos, onde estamos – e a que viemos.
Quem somos – e com quem somos – o sujeito da ação: nossa condição hu mana, nossas capacidades humanas, nossa maneira singularmente humana de perceber e interagir com o mundo. Além daquilo que, talvez, mais nos caracte riza: formamos famílias, grupos, povos, sociedades.
Onde estamos – o meio: a terra, o próprio ambiente em que vivemos e do qual fazemos parte e que, com nossos atos, transformamos.
A que viemos – a finalidade: o mistério, o não compreendido.
A tradição judaica se constituiu, desde o início, propondo uma relação con tínua entre esses três conceitos fundamentais. E o fez cunhando uma ideia que, se antiga, vem se renovando continuamente: um pacto, uma aliança que se es tabelece entre o Homem, a Terra – e um Deus. Uma ideia com a qual nos re lacionamos, através dos nossos mitos e rituais – e santificamos – há milênios.
Já houve um tempo, quando éramos ainda muito jovens, em que o ritual – a conexão com o divino – dava-se pela vivência do assustador, do que causa mais medo ao homem: sacrifícios, sangue, tripas, fogo.
Com o correr das eras e a evolução das práticas e do pensamento, esse ritu al precisou se transformar e passou a acontecer através da experiência do belo,
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 9
pelo contato com o que nos toca – a arte: a literatura e a música, principalmente, mas também outras formas de expressão.
E por que a arte?
Podemos pensar na arte como um elo entre o extremamente racional, estrutu ral, técnico – e as ideias transcendentes que a inspiram – e a experiência trans cendente que ela nos propõe e suscita em nós.
Como algo que é matéria – tinta, pa pel ou telas – ou pedras ou sons que, ins pirados, transcendem à sua materialidade e acabam por nos conectar com algo mui to especial dentro de nós que, será, poderíamos chamar de “sagrado”?
Precisamos mesmo de um manual e de palavras prontas para que possamos rezar? Como é possível que textos escritos por outras pessoas, em outros momentos e em outros lugares reflitam e expressem a contento a nossa tão particular relação com o sagrado?
Uma obra artística é criada através da inteireza do nos so ser – nossa emoção, nossa racionalidade, nossa força, nossa ação. E é inspirada pela nossa centelha criativa.
Da mesma forma, uma obra de arte fala à inteireza do nosso ser – emociona-nos, leva-nos a pensar, aprender; e nos compele a agir.
De fato, a criação cultural e teológica do judaísmo acontece assim: segundo a tradição, Deus teria se revelado ao homem através de um grande tesouro literário – o Ta nach – e o homem, por sua vez, busca se aproximar desse Deus também por intermédio de textos – as tantas inter pretações, poesias, prosas e demais escritos que compõem as nossas fontes e o nosso Sidur, o livro que contém a ordem das nossas rezas.
A primeira coisa que chama a atenção é exatamente a existência de um livro dessa natureza: precisamos mes mo de um manual e de palavras prontas para que possa mos rezar? Como é possível que textos escritos por outras pessoas, em outros momentos e em outros lugares refli tam e expressem a contento a nossa tão particular relação com o sagrado?
A questão pode ser entendida ao investigarmos mais profundamente a própria essência da reza judaica.
Quando pensamos em orações, logo imaginamos aque les momentos em que, espontaneamente, abrimos nossos corações e, de acordo com nossas necessidades e nossos an seios pessoais, buscamos o contato com o transcendente. Mas, ao folhearmos qualquer livro de rezas, encontraremos textos que falam de uma infinidade de outros assuntos e
veremos que, ao longo de centenas de pá ginas, há apenas um pequeno espaço, al guns poucos minutinhos mesmo, para as nossas meditações pessoais.
Está claro que, ao propor uma ordem predeterminada de textos, nossa tradi ção imagina algo diferente – e bem mais abrangente. A ideia é que, em nossos momentos de reflexão, possamos entrar em contato com todas as ideias, conceitos e valores que nos identificam como povo e que aparecem condensados na nossa liturgia.
O Sidur é um compêndio que vem sendo organizado e compilado ao longo de muitos séculos e traz em suas páginas a própria construção e evolução da cultura judaica. Dis põe a saga de uma civilização que atravessou o tempo e o espaço e vem, elástica e gelatinosamente, modelando-se. Escapando como gotinhas pelas frestas, por vezes; por ou tras, jorrando com maior liberdade como um manancial, numa troca e num embate – bate-bate – com o mundo e demais culturas ao redor.
Os textos mais antigos do Sidur, por exemplo, foram retirados diretamente das fontes bíblicas – no entendimen to de então, a palavra literal do Deus – e seus textos mais novos devem estar sendo escritos agora mesmo. É uma obra aberta, em que cada época vem sendo retratada em suas linhas e, por todo o tempo, estabelece-se uma dan ça entre Torá – simbolizando a palavra revelada pelo Deus – e Shirá – que representa o canto, a palavra, a intenção do homem.
Algumas passagens aludem aos grandes acontecimen tos míticos do passado, aqueles momentos marcados por uma maior interferência divina no mundo: a criação do cosmos, a redenção no Egito e a revelação no Sinai.
Outras tratam de episódios históricos: o exílio, as cru zadas, o Holocausto e o restabelecimento do moderno Estado de Israel – cada evento importante, devidamente co lorido e floreado, está representado nos tantos textos que vieram sendo incluídos no nosso livro de rezas.
Há ainda o retrato de uma transformação teológica fundamental, quando Abrahão, prestes a matar seu filho, reconhece o divino não naquele Deus que o mandara er guer a faca, mas na voz da sua consciência que, num úl
10 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
timo momento, acaba por impedir o ato bárbaro. O patriarca redefine o próprio conceito de Deus, sofisticando-o e o tor nando aceitável dentro da proposta dessa nova cultura que começava a se desenhar.
Estão representados no Sidur também aspectos de natureza mais política: em um tempo em que havia os reis e também o rei dos reis, apareceu um texto trazendo a ideia de um Deus como aquele que se ria o Rei sobre o rei-dos-reis. E, muito à frente, já na emancipada comunidade ale mã do Século 19, encontramos a “Gebet fürden Kaiser”, uma reza em que se pedia pelo bem do imperador, citado nominalmente em letras hebraicas.
Vemos também como, desde o princí pio, temos nos encantado com as estações do ano, com o passar dos dias que se su
É interessante e até divertido que hoje, na plenitude das nossas vidas tão modernas, nos flagremos ocupados com assuntos como o antigo Egito, faraós, divindades e povos já extintos; e tecemos um contato contínuo com essa dimensão do mito que, se não fosse tão familiar, iria nos parecer totalmente surreal.
cedem através do movimento do sol, da lua e dos astros e como nos maravilhamos com a natureza: uma das primeiras bên çãos que recitamos pela manhã reconhece a grandeza divina por ter, o galo, a sabe doria para distinguir entre o dia e a noite!
E, claro, estão no Sidur aqueles nossos anseios mais práticos e com os quais con seguimos nos conectar mais diretamente, como os pedidos por segurança, saúde, fartura da terra, prosperidade, paz e bem -estar – e demais preocupações humanas.
Podemos perceber, então, qual é a proposta da liturgia judaica: a ideia é que possamos, juntos, vivenciar – ritualmen te – nossas lendas, nossa história e a pró pria construção, passo a passo, da nossa tradição. Rezamos estudando e interpretando como rezaram aqueles que vieram
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antes de nós, contemplando como tudo o que recebemos do passado foi sendo construído aos poucos, geração a geração.
Tal experiência faz com que, ao rezar, estejamos inseridos, também nós, no meio dessa grande continuidade histórica, como partícipes de uma saga que, de tão antiga, devemos tornar nova a cada tempo.
É interessante e até divertido que hoje, na plenitude das nossas vidas tão modernas, de repente nos flagremos ocu pados com assuntos como o antigo Egi to, faraós, divindades e povos já extin tos; e tecemos um contato contínuo com essa dimensão do mito que, se não fosse tão familiar, iria nos parecer totalmen te surreal.
De fato, transitar entre esses dois mundos – o mundo das lendas, dos mi tos, daquele conhecimento que vem dos primórdios da
O Sidur dispõe a saga de uma civilização que atravessou o tempo e o espaço e vem, elástica e gelatinosamente, modelando-se. Escapando como gotinhas pelas frestas, por vezes; por outras, jorrando com maior liberdade como um manancial, numa troca e num embate com o mundo e demais culturas ao redor.
nossa experiência na terra – e o nosso mundo “real”, contemporâneo, é algo que nos enriquece e inspira imensamente e é o que permite que tenhamos, de fato, to dos os milhares de anos que tanto nos or gulhamos de ter.
Assumimos, assim, nossa vez como protagonistas dessa longeva narrativa, buscando entender o nosso tempo e como poderemos recriar e arremessar toda essa bagagem para frente, a fim de que, no fu turo, aquilo que construímos hoje, com as nossas mãos, possa também ter sido en tregue no Sinai.
Mantendo viva essa velha canção que costura quem – e com quem somos –; onde – e como estamos – e a que viemos.
Andre Nudelman é chazan e serve à Associa ção Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
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12 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Revista da Associação Religiosa Israelitawww.arymax.org.br Promovendo cidadania por meio da educação e formação de líderes.
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Fanatismo
rabino dario ezequiel Bialer
“A conformidade e a uniformidade são formas moderadas, porém estendidas de fa natismo. Tenho que acrescentar que, com frequência, o culto à personalidade, a idealização dos líderes políticos e religiosos, a adoração a indivíduos sedutores, tam bém se constituem em formas estendidas de fanatismo. O século 20 parece ter dado mostras excelentes neste sentido. Por um lado, os regimes totalitários, as ideologias mortíferas, o chauvinismo agressivo, as formas violentas de fundamentalismo reli gioso. Por outro lado, a idolatria universal de Madonna a Maradona. Talvez o pior aspecto da globalização seja a infantilização do gênero humano.”
Amos Oz
Os conceitos vertidos pelo escritor israelense fazem parte de sua obra Contra o fanatismo, que merece ser leitura obrigatória para todos. Com sabedoria e sensibilidade, ele enfrenta esta grande problemática da humanidade, indagando sobre cada pequena partícula de fana tismo que pode ser achada dando uma volta no quarteirão ou (por que não) dentro da própria casa.
O fanatismo agride o mais crucial da condição humana, que é a necessida de que todos temos de nos relacionar.
O homo ludens é uma definição do pensador holandês Johan Huizinga, que descreve as pessoas não apenas como seres pensantes (homo sapiens), mas como entidades que interagem através de jogos que resultam fundamentais para o de a c opa e o
O que define a pátria? Uma linha totalmente artificial que diz: você desse lado faz parte, e desse lado é um estranho? Parece que a pátria é coisa de vida ou morte, porque é algo natural, que nos pertence ou à qual pertencemos. Que faz parte de nós como o DNA, mas que na verdade é 100% aleatório.
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senvolvimento da cultura humana. O homem, como ser lúdico, aprende o imprescindível para sua subsistência par ticipando de jogos que lhe permitem experimentar a soli dariedade e a capacidade de superação. Que desenvolvem seu espírito competitivo, bem como a necessidade de se adaptar para fazer parte de um grupo.
O que diferencia uma criança de um adulto? O custo dos seus brinquedos, um ditado popular responde.
O jogo que a cada quatro anos une, como nenhum ou tro, todos os continentes e culturas é o futebol, que teve seu ápice pouquíssimo tempo atrás na Copa do Mundo ce lebrada no Brasil e deixou uma série de ensinamentos que excedem o caráter estritamente esportivo. Na Copa nós “jogamos” a pátria de uma forma simbólica.
Eu estive no Maracanã no jogo da primeira fase entre França e Equador. Como eu era um espectador neu tro, desprovido da parcialidade pelo meu time, me dedi quei a olhar e a perceber como as noções de patriotismo se expressavam.
Vi as pessoas separadas pelas cores de suas camisas e bandeiras, gritando pela sua terra (com um amor segu ramente desconhecido fora do âmbito do futebol) e en frentando o adversário como se fosse o inimigo. Quando encontravam alguém que vestia a mesma camisa, mesmo sendo totais desconhecidos, se abraçavam como se fossem muito próximos.
O que define a pátria? Uma linha totalmente artifi cial que diz: você desse lado faz parte, e desse lado é um estranho? Parece que a pátria é coisa de vida ou morte, porque é algo natural, que nos pertence ou à qual per tencemos. Que faz parte de nós como o DNA, mas que na verdade é 100% aleatório.
O patriotismo cria a ilusão de que é um vínculo atávi co, como se se tratasse da pertinência a uma família.
Pareceria que, se a pátria fosse coisa casual, seria menos importante, como um vínculo muito mais frágil, como se o marco de contenção que outorga a nacionalidade se debilitasse. E a verdade é que o Estado-Nação, como nós o
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conhecemos, é uma construção moderna. Não é que Deus criou o mundo com cada um dos países e suas fronteiras definidas.
A pátria nos é apresentada como uma coisa épica, grandiosa, quando desde as fronteiras geográficas não é mais do que uma linha artificial totalmente flexível que vai mudando de acordo com as con tingências.
Um exemplo perfeito para entender isso foi o que aconteceu na segunda vez em que fui ao Maracanã, dessa vez para o jogo final entre Argentina e Alemanha. O torcedor brasileiro estava no estádio ves tido de alemão, com o rosto pintado de amarelo, preto e vermelho, comemorando abraçados e eufóricos a derro ta de “los hermanos”, como se fosse uma vitória própria.
Anular o outro é também uma forma de fanatismo. Porque, diante da falta de projeto, se aposta na inspiração individual. Espera-se o messias que, com atributos divinos, resolva o que a sociedade é incapaz de realizar por si própria.
homem não necessita ser honesto, pode ser também corrupto em qualquer marco da so ciedade, governo e cultura. Corrupto pode ser no que se refere à irresponsabilidade mal intencionada com a qual desempenha seu cargo ou quando frauda a confiança que lhe outorgaram seus companheiros, ou em sua relação com sua mulher. Por isso, se encon trarmos um homem que, em toda situação sob a qual ele tem uma alternativa, opta pela honestidade, então é possível afirmar que para tal homem a honestidade é um valor. E esta é a conclusão para quem opta em favor de desfrutar os sentidos, a honra e o poder, ou em favor do patriotismo. E, é claro, em favor da fé religiosa” .
Como se a pátria não fosse só uma questão territorial, mas a existência de um projeto em comum, nesse caso a destruição do adversário comum.
E esse me parece ser um ponto central para entender nossa realidade. A pátria deveria ser algo a nosso favor. Mas resulta ser contra o outro (que pode nem estar jogando) que ameaça minha hegemonia.
Essa ideia está presente (consciente ou inconsciente mente) cada vez que a cidadania se apresenta diante das urnas para votar nos nossos representantes. Votamos pro jetos? Ideias? Ou votamos contra, para que de quem não gostamos seja derrotado?
Anular o outro é também uma forma de fanatismo. Porque, diante da falta de projeto, se aposta na inspiração individual. O craque que faça a jogada, que faça o cruza mento perfeito e que chute para o gol. Espera-se o messias que, com atributos divinos, resolva o que a sociedade é in capaz de realizar por si própria.
E enquanto este messias não chega, muitas vezes o que chega é a violência. Não é verdade que os violentos são violentos pelas circunstâncias, pelos governantes corrup tos ou porque dessa forma vão ser ouvidos e levados a sé rio. Muito menos que Deus se agrade com isso.
A pessoa sempre tem uma escolha. Não tentemos ti rar isso dela, pois então estaremos tirando o mais huma no que ela possui. Nas palavras de Yeshayahu Leibowitz:
“Todo homem necessita comer e necessita urinar; de acor do com isto, comer e urinar não constituem valores. Mas um
Voltando ao Maracanã. Aquele dia em que os equato rianos se vestiam de equatorianos, os franceses de france ses e os brasileiros de brasileiros, havia um jovem cober to da cabeça aos pés com uma bandeira de Israel como se fosse um talit, com uma frase escrita, que bem poderia ser considerada uma benção ou uma oração. Bring back our boys. Olhei para ele e vi a construção de uma pátria dife rente de todas as demais. Não a farsa da pátria que se disputa no campo de futebol, mas a verdadeira, que dia a dia se disputa no campo da vida, e tantas vezes infelizmente também no campo de batalha.
A pátria que Israel se dispõe a construir e a defender é a que se faz bandeira. Trazer de volta nossos filhos não é o slogan para uma campanha política. É a mais decisiva con vicção de que esse filho é o meu filho, que esses três garo tos nos foram arrancados da nossa própria casa.
Aquele dia todos os judeus do mundo torcíamos na expectativa de que regressariam a salvo à casa. Quando soubemos que tinham sido assassinados a comoção foi grande e, enquanto o coração nos dizia que a única coi sa que queríamos era nos sentar em shivá, a razão indi cava que não podíamos nos dar a esse luxo e que devíamos nos levantar e defender dos foguetes que diariamen te caíam no país todo.
No dia seguinte, após acharem os corpos, duas notícias se destacaram. Um casal de judeus americanos teve trigê meos e deu a eles os nomes dos nossos meninos: Naftali, Gilad e Eyal e, no mesmo dia, Mohamed, um jovem árabe israelense, foi queimado vivo em Jerusalém. Um assassina
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to com tamanho requinte de crueldade, que eu tinha esperança que logo se desco briria a verdade e que seria uma vingan ça do próprio Hamas. Mas eu me enga nei e o inimaginável se confirmou. A bar bárie foi perpetrada por judeus, ditos re ligiosos, assim como os muçulmanos que vêm massacrando outros muçulmanos na Síria também se acham religiosos. O ca lifado que está dilacerando o Iraque tam bém se diz religioso, da mesma forma a Ir mandade Muçulmana do Egito que pro moveu vários incêndios em igrejas coptas na noite do Natal no momento em que elas estavam mais cheias.
O Corão contém 109 versos que cha mam os muçulmanos a fazer a guerra contra os infiéis. Alguns desses versículos são bem gráfi cos, com imperativos de cortar dedos, cortar cabeças e per seguir os infiéis onde for que eles se escondam. Mas seria profundamente injusto condenar aos muçulmanos hoje por aquelas palavras.
O que está causando o mal no mundo de hoje não é a religião. O que está causando o mal no mundo é a falta da mentalidade reformista nas religiões. Quando o fundamentalismo de todos os matizes estiver enfraquecido em todos os quadrantes o mundo terá dado um grande passo adiante.
Pelo fato de que os fanáticos são os que dominam no Islã. Porque há tan tos milhões de muçulmanos que, mes mo que em uma pequeníssima porcen tagem, ainda é uma enorme quantidade de fanáticos. E, principalmente, porque a realidade indica que essa maioria pacífica é uma maioria silenciosa, intimida da e imperceptível. E esse silêncio os tor na irrelevantes. Quem se cala também é inimigo da paz.
Israel vive hoje mais uma escalada pro vocada pelo fundamentalismo religioso que almeja islamizar o mundo todo e eli minar todos os infiéis, sendo os judeus os primeiros da fila. Não falta sustento ao ra ciocínio de que uma invasão, como a is raelense a Gaza, circunstancialmente estimula o radicalis mo. É a perversa lógica na qual nos introduz o fanatismo, que obriga Israel a fazer o que não quer.
A Torá e o Talmud também têm afirmações sanguiná rias muito difíceis de aceitar para nós. Voltando a Amos Oz: “O fanatismo é mais velho que o Islã, que o cristianis mo, que o judaísmo. Mais velho do que qualquer Estado, governo ou sistema político. Mais velho do que qualquer credo ou ideologia do mundo”.
O fanatismo não é patrimônio do Islã, porém há uma forte prevalência islâmica entre os perpetradores de crimes motivados pela xenofobia e pelo racismo. Isso, insisto, não tem a ver com a os livros sagrados, mas com a interpreta ção que se faz dos mesmos.
O que está causando o mal no mundo de hoje não é a religião nem o ser humano. O que está causando o mal no mundo é a falta da mentalidade reformista nas religiões. Quando o fundamentalismo de todos os matizes estiver enfraquecido em todos os quadrantes o mundo terá dado um grande passo adiante.
Não há Reforma no Islã. Então os muçulmanos conti nuam vítimas dos que se julgam profetas, dos que se decla ram califas, dos que se declaram sabedores do que é bom para todos os humanos. A grande maioria dos muçulmanos quer viver em paz. Isso é inegável, mas também insu ficiente, por alguns motivos:
Eu, honestamente, não penso que essa operação militar vá resolver o problema. Hamas é uma ideia, uma ideia fanática e desesperada que surgiu da desolação e da frus tração de muitos palestinos que, ao invés de reconhecer o problema em si próprios, o projetaram contra os vizinhos. Nenhuma ideia foi derrotada, jamais, através da força. Mas também não vejo outra saída do que dizimar o poder do inimigo, que desde o outro lado da linha lança foguetes e cava túneis para aumentar seu armamento e para infiltrar terroristas em Israel.
Quando, quase dez anos atrás, Israel devolveu este ter ritório em troca de uma trégua que esperava ser o tram polim para uma convivência duradora, quem poderia ter imaginado que a resposta, ao invés de um governo dedi cado a desenvolver seu próprio território, fosse dedicado quase que exclusivamente a atacar o país vizinho?
Israel, nesse tempo, montou um inédito escudo de mís seis, para interceptar os ataques e dar um alerta aos cidadãos para correr aos refúgios que absolutamente qual quer lugar tem que ter. Do outro lado, o escudo é huma no. Quando o exército israelense tende a poupar vidas pe dindo aos palestinos para abandonar prédios que vão ser bombardeados, o Hamas chama as pessoas a que fiquem dentro desses lugares e que explodam junto com as pedras para virar fotos de jornal. Utilizar escudos humanos não é
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resistência. É assassinato. É imoral e contrário a qualquer religião bem interpretada. Diante dessa realidade não há muito que Israel possa fazer a não ser se defender da me lhor forma possível e esperar que um dia o Islã – as pes soas de bem do Islã – diga aos seus fundamentalistas que eles não o representa e que não vai mudar o que sua cons ciência lhes indica.
Uma última reflexão cheia de humor de Amos Oz:
“Creio que a essência do fanatismo reside no desejo de obrigar os demais a mudar. Nessa tendência tão comum de melhorar ao vizinho, de corrigir a esposa ou de guiar o irmão em vez de deixá-lo ser. O fanático é uma criatura até mesmo generosa. O fanático é altruista. Frequentemente está mais interessado nos demais que em si mesmo. Quer salvar a tua alma, quer te redimir. Liberar-te do pecado, do erro, de fu mar. Liberar-te da tua fé ou da tua carência de fé. Quer me lhorar teus hábitos alimentícios, lograr que deixes de beber ou de votar. O fanático se anula pelo outro. Das duas uma: ou se lança com os braços ao teu pescoço porque te ama de verda
de ou se nos lança à tua jugular para demonstrar que és irre dimível. (…) De uma forma ou de outra o fanático está mais interessado no outro que em si mesmo, pela muito simples ra zão de que tem um si mesmo bastante exíguo ou nenhum si mesmo em absoluto”.
Não se pode dizer melhor nem com mais ironia. A um fanático que se retira a razão de seu fanatismo não resta nada. Ele é nada.
A pátria não é a terra. É o projeto que nos une. É o sentimento de fazer parte da mesma família. Como disse Golda Meir, com toda a sensibilidade que uma mãe pode ter: A paz chegará no dia em que nossos vizinhos amarem mais seus filhos do que odeiam os nossos.
O rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Is raelita do Rio de Janeiro – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Se minário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Ai res, Argentina, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Je rusalém, Israel.
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o Brasil em i srael: um caso de amor musical
Jaime Barzellai
Há dezenas de grupos israelenses que tocam MPB e que são compostos na sua maioria por israelenses que aprenderam a música e hoje ensinam “a cadência do samba”. Claro que também há pessoas nascidas no Brasil nestes grupos. A música brasileira está lançando raízes próprias em Israel.
Amúsica brasileira é bastante tocada nas rádios de Israel e isto não vem de hoje. No final dos anos 60, a bossa-nova e o samba eram gêneros muito tocados nos EUA e na Europa e Israel embarcou nessa onda, porém com uma intensidade diferente. A música popular brasileira entrou definitivamente no gosto dos israelenses por causa do espírito alegre que músicos e artistas em geral percebiam no Brasil. Eles passaram a traduzir músicas e aprender a tocar os instrumentos com o mesmo espírito dos brasilei ros em busca da leveza brasileira de ser. Num país que luta pela existência todos os dias, um pouco de leveza é muito bem-vinda.
A partir da música o interesse dos israelenses pelo Brasil cresceu. Muitos dos melhores artistas do Brasil se apresentaram em Israel. As rádios tocam chorinho, música clássica, pagode, forró, axé, funk e outros. Música brasileira para todos os gostos, inclusive as de gosto duvidoso. Ouve-se de tudo, toca-se de tudo e tem espaço para todos nas rádios.
Há dezenas de grupos israelenses que tocam MPB e que são compostos na sua maioria por israelenses que aprenderam a música e hoje ensinam “a cadên cia do samba”. Claro que também há pessoas nascidas no Brasil nestes gru pos, mas elas não são a maioria. A música brasileira está lançando raízes pró prias em Israel.
A capoeira é outro fenômeno brasileiro fortemente sentido em Israel. Ela está presente nas escolas, nas academias e até em treinamentos militares. A maior parte das escolas públicas de Israel oferece aulas de capoeira para os jo vens, como matéria eletiva, coisa que não acontece no Brasil. Parece que o isra elense gosta mais da nossa cultura do que nós mesmos. A dança contemporânea
Acervo de discos e fotos: Jaime Barzellai
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do Brasil também ganhou seu espaço. E também tem o fu tebol... mas, pensando bem, vamos deixar isto para lá, pelo menos até nos recuperarmos do vexame da última Copa.
Não tenho dados concretos para dizer de que forma e quanto exatamente isso tudo influenciou a cultura de Is rael. Algumas pesquisas foram feitas, artigos sobre assunto foram escritos, até um documentário foi produzido por F. Ivaniska como tese acadêmica. E eu testemunhei um pou co disto tudo, pois, nas décadas de 70/80, tive a oportuni dade de estar junto com pessoas que, a meu ver, foram de cisivas na propagação da MPB em Israel.
O radialista Eli Israel, o cantor e compositor Matti Caspi, o guitarrista Ori Harpaz e a base da Lehakat Bror -Chail, Marcos Adoni-Bacá, eu e meus irmãos Salvador e Mori Panta Barzellai como ritmistas e com muitos convi dados amigos, como o violonista Oren Perlin, o baixista Carlos Gornic, os irmãos Missuk, Zelio Smith, e outras de zenas de pessoas, profissionais e amadores, que certamente também contribuíram de várias maneiras para essa difusão.
O que eu faço aqui é um pequeno relato pessoal, lon ge de ser a história definitiva, das experiências que vivi no meio musical de Israel, outras que li e ouvi, e como produtor nos últimos 30 anos na ponte Rio/Tel Aviv, divulgando a MPB em Israel e a música israelense no Brasil. Vou elen car alguns pontos relevantes em ordem cronológica, espe rando que eles contribuam para o entendimento da evo lução deste processo.
A bossa-nova correu o mundo na década de 60 com João Gilberto/Stan Getz, Frank Sinatra/Tom Jobim e até mesmo antes disso com a trilha sonora do filme “Orfeu Negro”, e Israel não ficou imune. Nessa época, algumas tentativas de se produzir sambas foram feitas, como “Car naval Banachal”, mais tarde regravada pela cantora Sarit Hadad. A Lehakat Kaveret, de Danny Sanderson, a maior banda de Israel de todos os tempos, se arriscou num samba meio quadrado, “Haolam Sameach”, em seu terceiro disco. A cantora de grande sucesso, Ilanit, que passou sua infância no Brasil, gravou alguns sucessos de Dorival Caymmi, tais
Matti Caspi no show “Eretz Tropit 87”, integrando músicos brasileiros e israelenses.
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como “É doce morrer no mar”. Há também algumas curiosidades dessa época. Yehoram Gaon, um dos maiores cantores de Israel, gravou a música “Custe o que custar” em hebraico, “Al Teshate Baaha vá”, de Shimrit Or, vencedora do Festival de San Remo de 69 defendida pelo cantor Roberto Carlos. Yonathan Geffen, famo so poeta e compositor, entregou ao Duo Dudaim em 70 a letra da música “Milcha má zé Rá” (Guerra é Ruim), com música do Geraldo Vandré, de “Prá não dizer que não falei de flores”. Sérgio Mendes, com o “Mas que nada”, de Jorge Ben, “Upa ne guinho”, “Roda”, era o que se tocava na rádio.
Ao som de músicas de Caymmi, uma audiência quase total em Israel ouvia o locutor Eli Israeli na programação noturna da rádio Galei Tzahal ler em hebraico, capítulo após capítulo, o livro Mar Morto, do escritor baiano Jorge Amado.
Matti Caspi, músico e compositor, foi o pioneiro a compor em hebraico com ritmo reconhecidamente bra sileiro. Em seu primeiro disco há uma bossa-nova, “Eich she Kochav Meez”, e depois o sambinha “Hine Hine”, que colocaram o cantor em destaque nos projetos de mú sica brasileira em Israel. Assim, em 74 a Rádio Kol Israel resolveu fazer uma produção denominada “O Mar”, com músicas de Dorival Caymmi e chamou o cantor para ser o produtor musical. “Maracangalha”, “Samba da minha terra” e “O vento” estão no disco, mas o grande sucesso desse projeto, cantado até hoje, é a “Marcha dos pesca dores”, dos Dudaim.
É importante ressaltar que nessa época havia somen te uma ou duas estações de rádio e um único canal de TV com uma programação bem limitada. Por esse mo tivo, quando aparecia algo na TV ou se ouvia na progra mação de rádio, praticamente todos os israelenses ouviam. E assim, ao som de músicas de Caymmi, uma au diência quase total em Israel ouvia o locutor Eli Israeli
na programação noturna da rádio Galei Tzahal ler em hebraico, com um vozei rão incomparável, capítulo após capítu lo do livro Mar Morto, do escritor baia no Jorge Amado. Outros grandes músi cos, como Yoni Rechter, também do Ka veret, juntamente com o poeta Elia Mohar, fizeram canções memoráveis como “Shir Nevua Cosmi” e a traduzida “Hu kara bishmá”, “Alguém me avisou”, de Dona Ivone Lara, cantada lindamente pelo percussionista Joca Perpignan em seus shows. O conjunto Sheshet, o can tor e compositor Shemtov Levy e o ma estro Ilan Mochiach também mostraram em 1977 uma leve guinada de MPB em suas obras.
Em 1978 aconteceu uma superprodução, um especial para a TV no gramado central do Kibutz Bror-Chail (de população predominantemente brasileira) chamada “Eretz Tropit Iafá” (País Tropical). Talvez pela novidade, pelo co lorido, pela quantidade de músicos no palco, essa produção é considerada pelos críticos a mais significativa envolven do a música brasileira em Israel, exatamente por ser a pio neira. Ela contou com músicos de primeira linha do cená rio de Israel como o próprio Matti Caspi, Yehudith Ravitz, Korin Halal, Tzila Dagan, Parvarim, Ori Harpaz, Shlomo Idov, Iorik Ben David, Arale Kaminski, além da Batuca da de Bror-Chail que ditava todo o ritmo do programa.
Essas músicas definitivamente entraram nas casas e nos corações das pessoas por serem músicas alegres e tra duzidas de uma forma singular pelo poeta Ehud Manor, que buscava fazer uma tradução com a mesma sonorida de do original. Músicas escolhidas com a ajuda de Ori Harpaz, como “Casa de bamba” (Etzli babait) “País Tro
À esq., disco “Eretz Tropit Meshagaat”, de 1987; à dir., “Bo Le Rio”, de Yehudit Ravitz e musicas de Jorge Ben Jor, gravado em 1983.
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pical” (Eretz tropit iafá), “Você abusou” (Azor li azor) “Naquela mesa” (Ha guitarist) “Fio Maravilha”, “Canta canta minha gente”, “Samba em prelúdio”, “A felicida de”, entre outras. Com o sucesso do programa, foram fei tas muitas outras apresentações do gênero. Um ano de pois, a cantora Yehudih Ravitz, que se tornaria uma das maiores de Israel, gravou seu primeiro disco com o sam binha carro-chefe “Lakachta”, música de Caspi e a bossa ‘Mi laahavá”, de sua autoria.
Havia entre os músicos de Israel a compreensão de que uma nova onda estava chegando. O pessoal da Lehakat Bror-Chail, que era o motor e a alma da maioria dessas gravações com ritmo brasileiro, intensificou o trabalho e a convivência com esses artistas. Não pensavam comercial mente, até porque shows, gravações, ensaios e encontros eram feitos fora do horário de trabalho do kibutz. O que se queria era tocar música com alegria e sempre com artis tas amigos que ali frequentavam nos fins de semana. Cor ria-se de um canto a outro de Israel junto a artistas consa grados e em todos os shows que precisassem de uma boa percussão, uma batucada bem brasileira, lá estava o pes soal de Bror-Chail animando a festa.
Como nossos amigos da cidade torciam pelo Hapoel Tel Aviv, a batucada tanto no futebol como no basquete, também fazia a alegria do público. Em eleições e passea tas do partido trabalhista lá ia a batucada. Ia também aos programas de TV e faziam propagandas com produtos re
lacionados ao Brasil ou a coisas tropicais. Ficamos amigos de muitíssimos músicos. E com o Arik Einstein desenvol vemos uma relação especial. Ele tornou-se praticamente um membro da família. Conhecia todos pelo nome. Tinha uma memória fantástica. Sabia tudo de música, sabia tudo de esportes. Sabia tudo de tudo. Tornou-se amigo do Salvador desde os anos 80 até o seu último dia de vida, em dezembro do ano passado. Uma das grandes alegrias que tive na minha vida foi ter tocado percussão em seu dis co “Iosheval ha gader” e no especial para TV no progra ma de maior audiência visto na época. Aliás, a camisa do kibutz na capa deste disco foi o Salvador que lhe deu para trocar a dele que havia rasgado. A foto na capa foi somen te uma brincadeira entre os dois. Nada de homenagem ao kibutz. Pelo contrário. Grande parte dos membros do ki butz não gostava dessa movimentação de famosos invadin do o seu gramado.
Se musicalmente Matti Caspi teve grande importância, eu diria imprescindível, o radialista Eli Israeli foi fun damental para a divulgação dessa grande onda que esta va por vir. Na sua adolescência, Eli veio para o Rio de Janeiro com seus pais, que foram enviados para dar suporte à área de educação judaica no Colégio Hebreu Brasileiro. Se apaixonou pela cidade e pela música principalmente. Fora a locução, era um DJ bem famoso e nas festas sem pre colocava músicas brasileiras. Na rádio Galei Tzahal ti nha um programa diário do meio-dia às duas da tarde tra
Show “Erez Tropit Iafá 78”, com Matti Caspi, Yehudith Ravitz, Parvarim e a Batucada Bror-Chail.
zendo sempre alguma novidade escolhida dos mais de dois mil discos de música brasileira que levei comigo para o ki butz. Eram músicas de Alceu Valença, João Bosco, Moraes Moreira, Milton Nascimento etc. A mais marcante de to das elas, acredito eu que esta seja a música brasileira mais famosa em Israel, era o “Trem das onze”, de Adoniran Barbosa. Na voz de Gal Costa, a música fechava o programa diário em alto astral.
Por causa desta música, a cantora tornou-se referên cia da música brasileira, levando-a a fazer quatro visitas para se apresentar em Israel. Como o tempo de rádio era pouco e a vontade de apresentar os novos ritmos do Bra sil era enorme, Eli Israeli, que já apresentava um progra ma noturno, “Tziporei Laila Brazilaiot’, que tinha como abertura “Aquarela do Brasil”, de Ari Barroso, me cha mou para editar com ele alguns progra mas na rádio. Foram mais de 130 pro gramas semanais noturnos sobre a MPB, desde samba, clássico, romântico, carna val, choros, rock, trio elétrico, temáticos com pássaros, instrumental, vocais, dedi cado às mulheres, sertanejo, caipira, val sas e por aí vai. Era uma viagem daquilo que o Brasil tinha de mais belo. Formou -se um elo quase familiar entre os artistas
de Tel Aviv e o pessoal de Bror-Chail no qual eu me in cluo juntamente com meus irmãos, além de Bacá Adoni, talvez o primeiro percussionista brasileiro de fato em Isra el, que, de todos do grupo, foi o único que seguiu carreira.
Início dos anos 80. Esses sim, podemos dizer que fo ram os anos de maior intensidade de música brasileira em Israel e de músicas israelenses originais com ritmo brasi leiro. O cantor mais famoso de Israel, Arik Einstein, gra vou com o grupo o sambinha “Beshivchei Ha Samba’, com música do guitarrista Itzhak Klepter. Shemtov Levy gra vou o samba original “Bo Elai Parpar”, inspirado na músi ca infantil, Matti Caspi gravou dezenas de sambas em hebraico, muitas com o grupo Parvarim. Tropical era o nome do disco do duo de Ori Harpaz e Yossi Hoory, que tinha “Laranja madura”, “Ponteio” e “Regra três” como desta ques. Miki Gabrielov, Natanela, Arik Si nai, David Broza e Chava Alberstein fo ram alguns cantores que também traba lharam com o grupo.
Os anos 80 foram os anos de maior intensidade de música brasileira em Israel e de músicas israelenses originais com ritmo brasileiro.
A passagem do Jorge Ben, hoje Ben jor, em junho de 83, com a Banda do Zé Pretinho que o acompanhava, foi bem marcante. Além de uma partida de futebol entre as bandas no kibutz, com chur rasco e música, seguimos para o show da
Disco “País Tropical”, do conjunto Parvarim Tropical, destaque para a música “Laranja Madura”, que em hebraico foi traduzida como “Matok HaTapuach”.
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noite no Eichal Há Tarbut de Tel Aviv. A principal sala de concertos da Filarmôni ca havia se transformado num verdadei ro caldeirão musical onde o cantor teve uma performance memorável e o públi co de duas mil e duzentas pessoas dando seu show à parte.
Após o show entramos com a banda no estúdio para fazer a base do disco da cantora Yehudith Ravitz, intitulado “Bo Le Rio”, um dos maiores sucessos da cantora em toda sua carreira. Este disco, gravado em uma noite, contém somente músicas do Benjor e letras de Yakov Gui lad. Entre os sucessos estão: Santa Clara, Taj Mahal, Que Pena, Que Maravilha e Zazoeira.
É de se destacar que no início dos anos 80 começaram a chegar mais cantores famosos do Brasil: Gal Costa, Jorge Benjor e Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elba Ramalho, Djavan, Ney Matogrosso, Alcione, Maria Bethânia, Nazaré Pereira e Egberto Gismonti.
É de se destacar que no início dos anos 80 começaram a chegar mais cantores famosos do Brasil. É o caso de Gal Costa, que fez um show que ficou na história no Eichal Ha Tarbut de Tel Aviv. Jorge Benjor e Gilberto Gil tam bém marcaram presença mais de uma vez, além de Caeta no Veloso, Elba Ramalho, Djavan e Ney Matogrosso, que se apresentaram no Estádio Blumfield de Tel Aviv na mes ma noite. Na época também passaram por lá Alcione, Ma ria Bethânia, Nazaré Pereira e Egberto Gismonti.
A música brasileira, o futebol e a cultura brasileira em geral foram sempre muito bem aceitos em Israel, a ponto de virar praticamente uma obsessão e uma passagem obri gatória entre os milhares de jovens mochileiros a viajar pelo Brasil depois do serviço militar. Ao retornar para Is rael, esses jovens traziam consigo na bagagem ritmos, ma nias, jeitos e amor pelo Brasil. Havia a necessidade de pro mover encontros, festas entre esses grupos, já que no final dos anos 80 houve uma leve queda nas visitas de artistas internacionais a Israel. Houve também uma dispersão da base do grupo musical de Bror-Chail. Moti Adoni (Bacá) continua fazendo música em Tzfat, onde mora. Salvador (Salva) vive em Tel Aviv e é comentarista esportivo na TV de Israel. Eu resolvi voltar ao Brasil e o DJ Mori Panta en tendeu a necessidade de juntar as pessoas e passou a pro mover todas as quintas-feiras na praia de Tel Aviv festas dançantes para mais de mil pessoas por noite.
Foi dele também a ideia de dar continuidade aos batuqueiros que ali se reuniam e montou a Batucada Tel Aviv. Um grupo que se reunia simplesmente para batu
car. Fora muitos e muitos convites para eventos, casamentos e bnei-mitsvá. Des se grupo saíram outros, como Morango, Amazonas, Coco-loco, Trio Brasil, e tam bém os artistas que mais tarde viriam for mar o maior grupo de percussão de Isra el, o Mayumana.
Foi justamente numa dessas noites em 1987 que surgiu a Capoeira em Is rael. Um grupo liderado pelo pioneiro nesta arte, hoje, Mestre Isac, se reu nia para uma roda no samba das quin tas na praia. Com a adesão de muitos is raelenses que tiveram a oportunidade de aprender a jogar na Bahia, hoje são de zenas de academias espalhadas por Israel, adotadas prin cipalmente pelas crianças, estimuladas pelos pais como uma atividade física, rítmica e criativa. Nesse ano, fui convidado pelo Matti Caspi para montar uma banda com 15 ritmistas, 4 dançarinas, 3 músicos de sopros (entre eles David Ganc e Humberto Araújo), uma cantora, um percussionista e um acordeonista (Julinho do acordeão) para se juntar à banda-base dele composta por oito mú sicos israelenses. Foi uma superprodução que correu Israel por cinco meses. Para este show Caspi compôs for ró, baião, xaxado e maxixe, o original em hebraico, que teve uma boa recepção do público. A cantora Silvinha, que ainda faz muito sucesso, nunca mais voltou ao Bra sil. O percussionista Luís Carlos, da Banda do Zé Preti nho, ficou mais alguns meses ensinando israelenses a ba tucar. Nessa época chegava a Israel a seleção brasileira de Romário, Miller, Evair para um amistoso contra Israel. O jogo terminou 4x0 para o Brasil, mas o resultado foi o que menos importou, diante da festa que fizeram israe lenses e brasileiros no estádio de Ramat Gan.
No início dos anos 90 surgiram outros personagens que também fazem parte desse movimento, que, de uma forma ou de outra, contribuíram para que a música brasileira seja mais conhecida e divulgada. Destaco o can tor baiano Fernando Seixas, que trouxe um pouco do so taque e do axé music baiano. Gravou a música de sua au toria “Eizebalagan’ (Que bagunça), de grande sucesso nas rádios. Recentemente gravou com a Banda Etnix e conti nua se apresentando nos palcos de lá.
Joca Perpignan é um músico, percussionista, que tam
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bém faz muito sucesso em Israel. Já trabalhou com artistas de ponta como Matti Caspi, Yoni Rechter e hoje com o cantor Idan Raichel. Joca é o criador do Trio Tucan, ba sicamente um grupo instrumental com composições pró prias, assim como seu último disco recém-lançado, “Man so Balanço”, muito elogiado pela crítica especializada. Joca fará alguns shows em Israel na companhia do percussionis ta Naná Vasconcelos, um dos maiores do mundo.
Na mesma época e um pouco mais adiante começou a chegar a Israel outra leva de artistas. O principal deles foi o maestro Tom Jobim, que foi convidado pelo Festi val Jerusalém de 1996 e, juntamente com sua banda, fez um show memorável diante das muralhas da cidade velha. Este foi seu último show, conforme está devidamente do cumentado no filme “A música segundo Tom Jobim”, de Nelson Pereira dos Santos.
Marisa Monte, o Grupo Corpo, Olodum, Arman dinho, Daniela Mercury, Edu Lobo, Roberto Menescal viajaram para Israel, e até a apresentadora Xuxa para pro mover seu programa infantil no canal para as crianças. Como curiosidade, ao ser questionada sobre se estaria com medo de viajar para Israel algumas semanas após o assassinato do primeiro ministro Itzchak Rabin, foi en fática ao afirmar: “Agora mesmo é que eu vou dar meu
apoio às crianças e a Israel”.
Gravou um clipe da música “Let’s bring the peace”, es crita especialmente para esta visita bem ao estilo “We are the world”. A música “Ilariê” é cantada até hoje nas festas infantis em todo o país e nas animações de batucadas em português e em hebraico.
Igualmente digno de nota é o fato de o canal de novelas Viva ter importado as principais novelas da Globo, como Esperança, Avenida Brasil, Laços de Família e Senhora do Destino. Faladas em português, legendadas e com as tri lhas sonoras originais, as novelas agradaram muito aos is raelenses que, através delas, se familiarizaram com a língua e com o jeito brasileiro.
Nos últimos 12 a 13 anos, artistas renomados, como Caetano Veloso, Gal Costa e Giberto Gil, voltaram outras vezes a se apresentar, além de outros artistas menos co nhecidos que fizeram shows, workshops e parcerias em Is rael e no Brasil.
Uma das maiores, senão a maior, produção brasileira realizada em Israel foi a de Roberto Carlos em 2011. Mais de mil pessoas viajaram do Brasil para se juntar a outros quatro mil sul-americanos no Anfiteatro das Piscinas do Sultão em Jerusalém. O show, que virou um especial de TV, teve um dos mais bonitos e um dos mais caros cená
Disco “Bossa Nova Israelit”, com musicas originais em hebraico e ritmo brasileiro.
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rios já feitos em Israel. O auge do show foi quando o cantor interpretou a músi ca de Naomi Shemer, “Yerushalaim shel zahav”, em hebraico.
A partir de 2005 vieram Casuarina, Yamandu Costa, Guinga, Daniela Szpil man, Fabiana Cozza, Denise Reis, Hamil ton de Hollanda, Cristina Braga e muitos outros. Surgiram várias parcerias musicais deles com músicos e grupos atuantes em Israel, como o caso do Chôrole, Samba do Bom, Bossa Trio de Giba Perelman, Ro berto Mendes, Daniel Ring, Jacob Fain guelernt, Ba Freire, Marcelo Nami, Sa lit Lahav, Noa Peled, muitos formados na conceituada Escola de Música Rimon. Os percussionistas israelenses Rony Ivrin, Zohar Fresco, Boaz Berman, Oren Balaban aprenderam bastante o rit mo, além de Gadi Seri, o mais requisitado de todos, que dedicou um disco em homenagem ao maestro Tom Jobim chamado Arabossa, um CD instrumental com os maiores sucessos do maestro em ritmo oriental.
A música brasileira, o futebol e a cultura brasileira em geral foram sempre muito bem aceitos em Israel, a ponto de virar uma obsessão e uma passagem obrigatória entre os milhares de jovens mochileiros a viajar pelo Brasil depois do serviço militar.
to sucesso, Kol Mashe Tirtzi, apresentado recentemente em português e hebraico no show realizado na ARI no Rio de Janeiro. Um dos maiores cantores da atualidade, Idan Raichel teve uma leve parceria com o músico Carlinhos Brown. David Broza fez algumas parcerias com a cantora violonista Badi Assad. Agora foi lançado um CD da cantora Achinoam Nini (Noa), no qual ela canta em hebraico a versão da música “Paz”, de Gilberto Gil e João Do nato, fruto de um encontro que a canto ra teve no palco com o cantor João Bos co no último verão, no Festival de Música de Eilat, dirigido por Dubi Lenz, grande incentivador e atuante em todo esse pro cesso. Tudo isso junto e misturado numa tremenda salada musical. Podemos dizer que sim, Israel tem um sério caso de amor com a música brasileira.
Numa retrospectiva, eu diria que o artista mais próxi mo do Brasil durante anos foi sem dúvida o Matti Caspi. Porém, outros cantores também tiveram um flerte com a MPB. Rami Kleinstein canta um samba original de mui
Jaime Barzellai é educador de formação, ex-assessor de impren sa e divulgação do Consulado-Geral de Israel, ex-diretor-geral da Confederação Israelita do Brasil, ex-conselheiro e diretor de comu nicação da Fierj, correspondente no Brasil do jornal Yedioth Ahro noth e da rádio Galei Tzahal por 18 anos, empresário artístico, pro dutor musical, representante da IL-Productions na América Latina.
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Tomch
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o s se G redos do nome de d eus
ricardo Gorodovits
No dia 7 de junho de 1993, o cantor e compositor Prince anunciou em entrevista a mudança de seu nome. Ele decidira que a partir daquela data não atenderia mais pelo nome Prince (aliás, seu nome verdadei ro) e adotaria um nome impronunciável, associado a um símbolo, composto por uma mistura dos símbolos dos gêneros masculino e feminino, associado a um símbolo de alquimia. Se por um lado seus fãs e biógrafos asso ciaram a mudança a um jogo de forças entre o músico e sua gravadora (o que se justifica pelo fato de que ao final do contrato com a mesma, em 2000, ele vol tou a adotar seu nome original, mantendo o símbolo apenas como um logo), há outro aspecto nesta mudança que nos interessa em especial para este texto.
Não podendo chamá-lo pelo nome, a mídia passou a denominá-lo “o artista que anteriormente chamava-se Prince”, o que acabou reduzido apenas para “o artista”. Prince (e talvez sua equipe de marketing) certamente percebeu a for ça que a “impronunciabilidade” do seu novo nome trazia, carregando de mis tério toda menção a ele, associando-o com a arte da forma mais ampla, como se ele passasse a ser não apenas um artista único, mas o único artista. Na au sência do nome, ampliavam-se as possibilidades de entendimento de quem ou o que ele era, sua representação visual por meio de um símbolo místico, disso ciava sua arte dos limites da normalidade, das regras, lançava-o no universo do imaginário, do intangível.
Deslocando-nos do mundo da música para o da literatura, em 30 de ju nho de 1997, a Inglaterra foi invadida por uma febre que se espalharia pe los quatro cantos do mundo nos anos subsequentes. Naquela data foi lan çado o primeiro dos sete livros que compõem a saga mágica de Harry Pot
Nomear é, de certa forma, obter domínio, definir fronteiras, eliminar dúvidas. Se na atribuição de um nome paira a indefinição sobre a que se refere, o nome perde o sentido. Talvez por isso, em sua essência, Deus será sempre inominável.
Ao lado e páginas seguintes: a sinagoga e o cemitério judaico de Praga.
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ter, de J. K. Rowling. Ao compor a história, a autora criou um personagem, que assume o papel de principal antagonista do jovem, cujo nome gera tanto medo e apreensão que simplesmente não deve ser pronunciado. Os leitores têm estimula da a imaginação, que busca criar a figu ra ao qual se associa “aquele cujo nome não se deve pronunciar”. Seu poder é tre mendo, e sua busca por mais poder, insa ciável. E como no início da história Lord Voldemort (oops) é dissociado de um cor po (ele precisa de outros corpos para efe tivamente existir), toda a liberdade nos é dada para construir uma imagem para... “você sabe quem”.
Ao longo da novela, aprendemos que a simples menção ao seu nome pode ser identificada por seus seguidores, dando, portanto mais substância ao receio de no meá-lo. Harry Potter, um dos poucos que não tem medo de falar Voldemort acaba, por isso mesmo, sendo encontrado e rap tado pelos discípulos do grande e per verso líder. Está claro que, mesmo para o nosso herói, o nome a ser evitado é um gigantesco desafio, cuja presença pode permear todos os lugares, cuja força é quase ilimita da. Não poderiam existir dois personagens inomináveis: o “sem nome” é apenas um.
Para alguns estudiosos, o nome de Deus não deve ser retirado dos céus para uso terreno. Mas essa busca por extrair o uso no cotidiano pode gerar uma percepção em contradição com um valor fundamental judaico, de que Deus permeia o mundo inteiro. A presença da essência divina se dá não apenas nos momentos da prática ou do estudo religioso, mas faz parte da vida de forma mais ampla.
aprendizado, pela capacidade de transmi tir e acumular conhecimento, que concei tua e comunica o abstrato. No caminho desta evolução, o homo sapiens moderno ganha consciência de si mesmo e sua fini tude, torna-se capaz de perceber em seu objeto de caça seres vivos como ele e identifica seu controle sobre vida e morte do outro. Neste momento, e provavelmente não antes disso, o homem descobre (ou para alguns, cria) Deus.
No judaísmo, Deus é a força motriz do mundo, criador e senhor do univer so, onipresente, onisciente e onipotente, cujas características estão todas além da nossa compreensão, definindo-se melhor pelo que não é do que pelo que é, já que o homem tem uma percepção que se li mita ao que lhe é conhecido, e portan to nomeável. Por isso, no judaísmo, Deus não deveria ter um nome e qualquer referência a Ele deveria persistir na lacu na da nomeação. Ao relacionar em nos sas orações “Deus de Avraham, Deus de Itzchak, Deus de Yaacov”, o judaísmo reconhece as dife rentes percepções de Deus, que como inspiração para o sa grado mantem-se distante de uma única e definitiva defi nição. Em Deus, portanto, convive o paradoxo de serem muitos, sendo um só.
Não por acaso buscamos estes dois exemplos em que a importância do nome, ou melhor, de sua ausência, é alçada a um nível muito além do que atribuímos no cotidiano, já que neste, nomear coisas e pessoas é o caminho mais cur to para entendê-las e para nos fazermos entender. Nomear é, de certa forma, obter domínio, definir fronteiras, elimi nar dúvidas. Se na atribuição de um nome paira a indefi nição sobre a que se refere, o nome perde o sentido. Talvez por isso, em sua essência, Deus será sempre inominável.
O autor Jared Diamond, em seu livro Armas, Germes e Aço, menciona um momento da história da humanidade em que o desenvolvimento humano dá um salto à frente, um momento em que o homem se afasta definitivamente da evolução associada exclusivamente ao processo da seleção natural, necessariamente lenta e gradual, e avança de forma célere para se transformar num ser que evolui pelo
Sendo muitos, a criação menciona “Elohim”, tipica mente plural (em hebraico a terminação “im” representa, como norma, o plural para o gênero masculino). Mas dize mos no singular em nosso shacharit (reza matinal) de sha bat “El adonai kol há maassim”, Deus que é senhor sobre todas as coisas. Diversas são as formas de se referir a Deus na Torá, no Tanach, em nossas fontes de forma geral. Es tudos de nossos sábios vinculam o uso de cada denomina ção a um atributo divino, e muitos são os nomes usados em referência a Deus. De todos, porém, apenas um é con siderado como nome, no sentido que usamos para nossos nomes próprios. É o nome formado pelo tetragrama yud, hei, vav, hei ( ).
Curiosamente, no texto bíblico, Deus se autodenomi na de forma distinta, na resposta dada a Moshé quando este pergunta, diante da sarça ardente, que nome Lhe de
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יהוה
veria ser atribuído para comunicar aos filhos de Israel a missão da qual acabara de ser encarregado. Deus se apresenta como: Eheie Asher Eheie, ou, em seguida, sim plesmente Eheie. A tradução direta, “Se rei o que Serei” ou apenas “Serei”, nos in dica claramente a preocupação em pre servar o mistério e a intangibilidade de Deus, fundamento básico do judaísmo. Mas é da natureza humana buscar signifi cados e a provocação do indefinido faz ir resistível a tentativa de compreensão.
O caminho mais simples nos leva a perceber Deus como potência, que pode ser o que quiser, da forma mais ampla e completa, e assim sempre será. Também nos leva à onipresença, já que o mesmo verbo é usado para “ser” ou para “estar”. Também nos conduz para uma visão di nâmica de algo em eterna transformação, inalcançável, portanto, à mente humana.
Evitar-se o nome de Deus no dia a dia é uma forma sutil de confiná-Lo nas orações ou nos textos, o que pode nos induzir a ações que fogem às regras de conduta que o judaísmo define como o caminho correto. Se o nome de Deus entrar em nosso dia a dia, buscaremos diuturnamente o comportamento ético que justifique o milagre da centelha divina em cada um de nós.
Há também um significado implíci to que me parece igualmente instigante. “Serei” como Me fizerem ser. “Serei” como quiserem que Eu seja. “Serei”
como Me permitirem ser. A potência se concretiza num processo em que “Serei” a partir da imagem e semelhança, da par cela divina que há em cada ser humano. Deus intangível e inatingível se entrega ao homem, à espera do que faremos Dele. Mas voltando ao tetragrama, sua raiz está associada ao verbo ser (que é tam bém o verbo estar em hebraico), num tempo verbal hoje inexistente. Então te mos uma definição que deixa proposital mente duas lacunas: um nome (ou uma definição) inexistente, de algo dissocia do do tempo e lugar. Deus é infinito, Ein Sof (sem fim). Ora, a existência no tem po e a percepção do espaço são elemen tos profundamente humanos e ao disso ciar Deus do tempo e espaço, distanciamo-nos de qualquer chance de antropo morfização, uma preocupação central no judaísmo. Deus está fora do escopo, da abrangência da capacidade de compreen são humana e, portanto, não pode ser nominado. Em sín tese, Deus, no entendimento individual ou coletivo, será
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sempre indefinível nas dimensões conhecidas, externo ao universo do que é no meável, externo ao tempo. Se falamos de um Deus intangível, não poderia haver síntese melhor.
Possivelmente por isso a liturgia judai ca optou, com o passar do tempo e em seu processo contínuo de mudança e evo lução, por evitar pronunciar o tetragra ma (ou o “nome de Deus”), o que se deu provavelmente de forma gradual. Sabe-se, por exemplo, que na celebração do Yom Kipur durante o período de existência do segundo templo em Jerusalém, o Co hen Gadol (Sumo Sacerdote) lia de forma completa e audível o “nome de Deus”, que, ao ser ouvido pelo povo do lado de fora, fazia com que todos se prostrassem com o rosto no chão. Este ritual é lembra do hoje num trecho de nossa liturgia (Avodá), durante o Mussaf de Yom Kipur.
Com sua proibição, o nome de Deus torna-se mistério e passa a ser foco de magia, para a atribuição de “poderes mágicos” a quem tivesse o domínio sobre o Seu nome. Com isso, o homem submete o divino, obrigando-o a seguir seus desígnios. A magia aniquila, portanto, o belíssimo conceito judaico do homem a serviço de Deus.
na busca contínua do aprimoramento de conceitos essenciais do judaísmo, como a melhor internalização da intangibilidade de Deus e a fuga contínua à tentação de antropomorfização divina, seja por seus atributos ou ações, muitos outros moti vos se somaram a esta iniciativa, carregando-a paradoxalmente de muitos elemen tos contrários àquela essência que se bus cava preservar. Por isso, o movimento reformista questionou estas restrições, rever tendo a maioria delas, preservando apenas o tetragrama como impronunciável.
A sacralização do “nome” é possivel mente o menos perceptível destes ele mentos. Nosso decálogo expressa clara mente a proibição do uso do nome de Deus em vão (terceiro mandamento).
É difícil localizar no tempo o momento exato em que toda menção oralizada ao tetragrama foi substituída pelo termo “Adonai” (Senhor), isso mesmo na leitura da Torá e em nossas orações, ou seja, mesmo nos contextos mais estritos de imersão na prática religiosa. Curiosamente, a menção escrita não foi alterada, ou seja, não se lê o que está escrito, mas “traduz-se” a sua leitura, criando-se um paradoxo, ou seja, a preservação do tetragrama escrito, mas não a sua oralidade, apesar de ambas serem capacidades humanas e darem margem à exposição pública do “nome”.
As demais referências a Deus persistiram sendo escri tas e lidas normalmente, dando ainda maior peso ao tetra grama, atribuindo a essa nomenclatura um peso, uma sa cralidade diferenciada. Com o passar do tempo, o judaís mo alijou o uso de todos estes nomes fora dos serviços reli giosos, substituindo, por exemplo, “Elohim” por “Elokim” nas conversas mundanas. Como o tetragrama já não era pronunciado, mesmo em nossas orações, seu substituto “Adonai” foi substituído no uso corrente por “Há Shem”, “o nome”. Se esta substituição fez lembrar o leitor da refe rência a Prince por “o artista”, talvez não tenha sido mera coincidência.
Apesar do texto acima deixar clara a opinião de que a ampliação das restrições à nomeação de Deus tem origem
A interpretação deste veto, porém, as sumiu leituras variadas, uma delas, expressa por Mai mônides, concluindo que o nome de Deus (ou simplesmente qualquer referência a Ele) não pode ser usado no dia a dia, deve ser sempre evitado no aspecto munda no de nossas vidas, ou, como traduzem alguns estudiosos, o nome de Deus não deve ser retirado dos céus para uso terreno. Essa busca por extrair o uso do nome de Deus do cotidiano, me parece, pode gerar uma percep ção quanto a Deus em contradição com um valor funda mental judaico, de que Deus permeia o mundo inteiro.
A presença da essência divina se dá não apenas nos mo mentos da prática ou do estudo religioso, mas faz parte da vida de forma mais ampla. Evitar-se o nome de Deus no dia a dia é uma forma sutil de confiná-Lo nas orações ou nos textos, o que pode nos induzir a ações que fogem totalmente às regras de conduta que o judaísmo define como o caminho correto. Isso, a meu ver, é exatamente o que se pretendia evitar ao proibir-se a utilização do Seu nome em vão: se o nome de Deus entrar em nosso dia a dia (e não apenas em nossos ritos), buscaremos diutur namente o comportamento ético que justifique o mila gre da centelha divina em cada um de nós.
Talvez, porém, o aspecto mais grave gerado por este distanciamento do nome de Deus seja derivado da máxi ma: “Todo proibido é mistério, todo mistério seduz”. Com sua proibição, o nome de Deus torna-se mistério e passa a
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ser foco de magia, para a atribuição de “poderes mágicos” a quem tivesse o domínio sobre o Seu nome. Desde os primórdios da humanidade o homem enfrenta sua impotên cia e limitações e, enquanto o judaísmo trata de orientá-lo quanto a como conviver com as mesmas em seu tempo e espaço, a magia promete ao homem deixar de exercer o li vre arbítrio, passa a ser oferecida a chance de nunca op tar, porque tudo pode, sempre pode. Com isso, o homem submete o divino, obrigando-o a seguir seus desígnios. A magia aniquila, portanto, o belíssimo conceito judaico do homem a serviço de Deus. Deus passa a ser seu escravo.
O exemplo mais conhecido que retrata este desvio re side no folclore judaico, e foi escrito com objetiva clareza (sem abrir mão da poesia) por I. L. Peretz em seu conto “O Golem”. Nele, narra a fábula que atribui ao Maharal de Praga (Rav Judah Loew bem Bezalel, que viveu no século XVI) ter criado, a partir de um ser moldado do bar ro, um monstro que defendeu o gueto contra a turba que buscava invadi-lo, dando-lhe vida após soprar em seu ou vido o nome de Deus. Em outras histórias de teor seme lhante, o nome é escrito em sua testa ou colocado em sua boca. Em todas as versões, porém, é dado ao homem, por meio da magia trazida pelo domínio do nome divino, o poder de criar e controlar a vida.
O esforço de proteger o nome de Deus de uso inde vido, portanto, acabou por gerar mais e mais distorções. O trecho do livro de Devarim (Deuteronômio), na parashá (leitura semanal da Torá) Reê, em que Deus orde na ao povo que destrua todo e qualquer vestígio associado aos deuses e ídolos locais, eliminando seus nomes dali, e a ordem que vem em seguida, de não fazer o mesmo com Deus, ao contrário, devendo-se preservar seu nome no lu
gar que Ele apontará, foi interpretado por alguns de forma absolutamente literal, gerando, portanto, a proibição de apagar-se o nome de Deus, ou, por extensão, qualquer de seus nomes ou designações. Mesmo em português, muitos chegam ao extremo de usar a palavra Deus grafada como D´us, para não correr o risco de, apagando-a, infringir a proibição (cada idioma adotou uma forma, por exemplo, em inglês costumam escrever G’d. Digno de nota é o esfor ço de alguns ultraortodoxos que, em sua corrida para se rem ainda mais santos que os demais, escrevem D’s). Esse hábito faz parte do conjunto de “jeitinhos” que permeiam alguns hábitos judaicos, especialmente na ortodoxia, fru tos de interpretações literais e/ou equivocadas ou até mes mo gerados a partir de mandamentos que na realidade não constam de quaisquer fontes judaicas.
O segredo do nome de Deus não está em sua grafia, pronúncia (aliás, a princípio desconhecida, já que o he braico se escreve sem vogais e o termo não se preservou, já que era proibido pronunciá-lo), num poder que lhe seja inerente ou em qualquer mistério que lhe seja falsamen te atribuído.
O segredo do nome de Deus se revela no quanto, ao deixar de repeti-lo, nos lembramos de Deus como fonte de inspiração para a vida, admirando e respeitando os in findáveis milagres da criação, nos propondo humildemen te como reparadores do Universo, na obra persistente de Tikun Olam (literalmente, reparo do mundo, modo pelo qual o judaísmo vê a missão do homem, sua obrigação como parceiro de Deus na criação).
Ricardo Gorodovits é engenheiro, ex-boguer da Chazit Hanoar e ativista comunitário, especialmente na ARI.
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a visão de uma ra B ina li B eral em Berlim
entrevista com a Rabina Gesa ederberg
A vida judaica na Alemanha vive ainda sob a sombra da Shoá, isto tanto no que diz respeito à vida interna das congregações como também no relacionamento com a comunidade maior. A recordação faz parte do dia a dia.
por ricardo sichel
Conheci a Rabina Ederberg, da sinagoga da Oranienburger Strasse, em Berlim, durante o último Yom Kipur, quando fui muito bem recebido por sua comunidade tanto em Kol Nidre como no dia de Yom Kipur. Eu estava na cidade a trabalho e fiquei muito bem impressionado pelo clima participativo e caloroso das rezas, muito distante da lendária frieza germânica. Acreditando ser interessante mostrar um pouco do incrível renascimento judaico na Alemanha aos leitores de Devarim, pedi uma entrevista à rabina, que prontamente concordou em responder via e -mail as perguntas que formulei.
Devarim – A senhora poderia fazer uma apresentação e os motivos pela escolha do Rabinato?
Gesa Ederberg – Eu diria inicialmente que a profissão me escolheu. Eu co mecei ministrando aulas para Bnei Mitsvá e percebi que estas me davam prazer, como também aos alunos. Depois disso criamos uma nova Chavurá, uma vez que os serviços religiosos tradicionais em Berlim não nos deixavam satisfeitos, e desta forma eu me tornei responsável pelo novo ofício religioso, o que, igual mente, me dava prazer. A partir daí imaginei que seria mais adequado estudar, o que fiz no Instituto Schechter em Jerusalém.
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Devarim – Como a senhora avalia a vida judaica na Europa e na Alemanha, em especial após a queda do Muro de Berlim?
Gesa Ederberg – Na Alemanha hou ve uma profunda alteração da vida judai ca após a queda do Muro de Berlim pela imigração oriunda da antiga União So viética, como também pelo surgimento de uma nova geração, que objetivava fi xar domicílio na Alemanha. Por isso fo ram tomadas várias iniciativas com cria ção de instituições de forma a tornar a vida judaica mais diversa.
Devarim – Como é o reconhecimen to das comunidades não ortodoxas pela Confederação Judaica da Alemanha e pelas Federações Estaduais?
Gesa Ederberg – O reconhecimento pela Confederação Judaica da Alemanha é positivo. Em nível estadual ainda sur gem alguns conflitos locais, mas, na mi nha percepção, estes decorrem mais de questões pessoais do que em função de temas religiosos ou filosóficos.
Devarim – E como é o relacionamen to entre comunidades não ortodoxas e as ortodoxas? A senhora é reconhecida como rabina?
Os jardins de infância judaicos em Berlim têm listas de espera e jovens israelenses têm vindo também. Em pequenas comunidades tem sido mais difícil, até porque os jovens acabam se mudando de lá. Mas nas grandes cidades a vida judaica é bastante intensa, criativa e instigante.
Gesa Ederberg – O relacionamento depende muito da situação local, das pessoas de cada local. Em algumas cidades existe apenas uma sinagoga; não há como falar em relacionamento. Em outras cidades temos congregações distintas, mas que pouco ou nenhum con tato mantêm entre si. Contudo, também existem cidades onde as sinagogas de todas as denominações estão organi zadas numa estrutura comum (por exemplo, em Berlim ou Frankfurt) que funciona muito bem.
Eu sou de Berlim, onde há cooperação numa mesma estrutura e acho que esta proximidade é positiva, na me dida em que a diversidade passa a ser sentida diariamente. Eu tenho boas relações com alguns colegas ortodoxos, que, apesar de não reconhecer uma conversão feita por mim,
apreciam o nosso trabalho e participam em conjunto de fóruns de discussões. E estes convivem bem com outros rabinos ortodoxos que preferem ficar mais distan ciados de nós. Como disse, tudo depen de das pessoas.
Devarim – Como é a relação entre as co munidades da Europa e Alemanha com o Estado de Israel?
Gesa Ederberg – O Estado de Israel ocupa um lugar central para os judeus na Alemanha. Muitos têm parentes lá e via jam com regularidade. O Ginásio Judai co de Berlim, por exemplo, tem um pro grama de intercâmbio com a Leo Baeck Highschool de Haifa. Yom Hatzmaut é celebrado com grande destaque, e assim por diante.
Devarim – Como a senhora analisa a vida judaica atual na Alemanha, em es pecial após a vivência do nazismo?
Gesa Ederberg – A vida judaica na Alemanha vive ainda sob a sombra da Shoá, isto tanto no que diz respei to à vida interna das congregações como também no relacionamento com a co munidade maior. A recordação faz parte do dia a dia, estando presente também nas cidades.
Mas a recordação da Shoá não é tudo. A imigração nos propõe grandes desafios tanto na absor ção de novas famílias como na medida em que provoca a necessidade do fortalecimento, talvez mais que no passado, de uma educação judaica.
Também me é bastante prazeroso observar que conta tos com comunidades no exterior foram estabelecidos, de forma que em nossa sinagoga, em quase todo shabat, te mos turistas do mundo inteiro.
Os jardins de infância judaicos em Berlim têm listas de espera e jovens israelenses têm vindo também. Em pe quenas comunidades tem sido mais difícil, até porque os jovens acabam se mudando de lá. Mas nas grandes cida des a vida judaica é bastante intensa, criativa e instigante.
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Devarim – Como a senhora analisa o antissemitismo na Europa e na Alema nha? Em vários países se discute a proi bição da circuncisão (brit milá) e do abate ritual. A senhora acredita que haja nis to um fundo de antissemitismo?
Gesa Ederberg – É uma questão complicada. De uma parte o antissemi tismo é evidente, por outro lado algumas pessoas pensam estar defendendo questões de direitos humanos e de proteção aos ani mais sem perceber que utilizam o discur so antissemita. Isto dificulta a discussão: quando eu participo de uma discussão e afirmo tratar-se de argumento antissemita isto causa revolta, porque ninguém admite o preconceito, o que a princípio é positivo. Porém isso dificulta as coisas.
Mas a recordação da Shoá não é tudo. A imigração nos propõe grandes desafios tanto na absorção de novas famílias como na medida em que provoca a necessidade do fortalecimento, talvez mais que no passado, de uma educação judaica.
Eu vejo com preocupação que, após as discussões havidas na Alemanha acerca da circuncisão e do abate ritual, que tive ram um resultado jurídico positivo, o debate passou a ganhar campo na Europa sem que tenhamos a certeza de qual será a conclusão dos diversos países.
Devarim – Como a senhora vê o futu ro das comunidades judaicas na Europa e na Alemanha?
Além do antissemitismo clássico de direita, existe um de esquerda, que muitas vezes se camufla como críticas a Israel, como também há um antissemitismo particular dos imigrantes árabes, que ficou despercebido, mas que agora tem sido objeto de medidas corretivas.
Gesa Ederberg – Eu sou bem oti mista em relação à Alemanha, na medi da em que ninguém há 20 anos imagina ria a evolução ocorrida. A situação é dife rente na Hungria e na França em função do crescimento do antissemitismo. Porém, eu acredito muito que seja im portante a manutenção de uma intensa e diversa vida judaica na Alemanha e na Europa.
Ricardo Sichel é conselheiro da ARI, ativista, professor universitá rio (Unirio) e Procurador Federal.
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J udeus: um F uturo de interro G ações
É sobretudo a partir de 2008 que as críticas de Erdogan contra Israel se transformam em críticas ao “lobby judaico” ou à “diáspora judaica”. Temas claramente antissemitas começaram a circular pela mídia próxima ao governo, sem reação por parte deste. Isto permitiu o incremento de sentimentos antijudaicos na parcela menos educada da população turca.
michel alfandari
Aprimeira questão a se colocar em perspectiva é que restam hoje apro ximadamente 17 mil judeus na Turquia (enquanto eram mais de 100 mil após a Primeira Guerra Mundial) e que as projeções demo gráficas mostram que a comunidade, infelizmente, vai desaparecer em 30 a 40 anos.
População dos judeus na Turquia
Um total de 95% dos judeus da Turquia é descendente de judeus espanhóis expulsos em 1492. Os 5% restantes são ashquenazis descendentes de judeus fugidos da Alemanha no século XVII, e da Polônia, do Império Austro-Hún garo e da Rússia no século XIX, bem como um pequeno número de Caraitas.
Uma característica dos judeus da Turquia após o período otomano é que permaneceram ao mesmo tempo dóceis e discretos em relação ao poder, muito mais que os gregos e armênios (as duas outras principais comunidades não muçulmanas). Isto se explica pelo fato que, contrariamente aos gregos e armê nios, que podiam contar eventualmente com o apoio das potências ocidentais cristãs, os judeus não tinham com quem contar. De todo modo, em geral, fo ram mais protegidos pelo poder que os cristãos.
De fato, as duas grandes tragédias da Turquia atingiram: 1) Os armênios em 1915 ao final do período otomano (entre 600 mil e 1,5 milhão assassina dos em massacres e deportações) e 2) Os gregos em 1923 (1,3 milhão obriga a t urquia e os
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dos a emigrar para a Grécia, no acordo de troca de populações firmado entre Grécia e Turquia).
Outras tragédias menores também atingiram os judeus: Primeiro os “Incidentes da Trácia”, em 1934, quando uma série de incidentes se iniciaram pelo boicote aos negócios de judeus, seguidos de ameaças físicas, agressões e o assas sinato de um rabino. Estes episódios foram o estopim de uma fuga em massa em direção a Istambul de milhares de judeus (3 mil segundo a versão oficial e mais de 10 mil aparentemente), abandonando todos os seus bens.1
Segundo: de 1942 a 1943 um imposto sobre a fortuna extremamente discriminatório (o Varlık Vergisi), com taxas de 10 a 20 vezes mais alta que para os não muçulma nos ocasionou duas dezenas de mortos e alguns suicídios entre os que foram enviados a campos de trabalho por não terem como pagar.2
Terceiro: os acontecimentos de 6 e 7 de setembro de 1955. Em um contexto de fortes tensões com a Grécia por causa de Chipre, uma horda de manifestantes organizados pelos serviços secretos do Estado saqueou em Istambul lo
cais de culto, escolas, milhares de negócios e também residências de gregos, num primeiro momento, e em segui da de judeus e de armênios, deixando uma quinzena de mortos e mais de 500 feridos.3 Este evento marca o iní cio do fim de Istambul como cidade cosmopolita e mul ticonfessional.
Em realidade, os dois primeiros atos mostram um de sejo e uma política de Estado de “nacionalizar”, por expro priação, os ativos pertencentes principalmente a minorias não muçulmanas. Esta política consistiu, em relação aos judeus, de propaganda antissemita importada, ou ao me nos inspirada na Europa, e, em particular na Alemanha, que exerceu influência considerável nos anos 30 e 40 em algumas elites turcas nacionalistas. Entrementes a Turquia conseguiu permanecer neutra durante a Segunda Guerra Mundial, apesar das pressões alemãs, e permitiu a passa gem de judeus, principalmente búlgaros e romenos, que queriam alcançar a Palestina.
Ademais, durante a ocupação nazista na França, diplo matas turcos baseados em Paris e Marselha salvaram a vida
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de um número de judeus turcos que tinham emigrado nos anos 30. Um recente estudo4 demonstrou que se tratavam de inciativas pessoais e não de uma política oficial, e que o número real é provavelmente próximo a 600 pessoas salvas ao invés de milhares como citado por algumas fontes tur cas. O mesmo estudo mostra que a Turquia não foi melhor que outros países no acolhimento a refugiados judeus: ela teria acolhido um pouco mais de um milhar de refugiados.
A metade da comunidade que ficou após 1948
No total, ao longo do tempo, metade dos judeus da Turquia emigrou para Israel após 1948, onde hoje estimamos que vivam ao redor de 100 mil judeus de ori gem turca.
Para os judeus que ficaram na Turquia a partir do fim dos anos 50, os atos antissemitas organizados ou tolerados pelo Estado não se reproduziram mais. O país entrou em um novo período5, muito mais “calmo” no que se refere às minorias não muçulmanas.
Entretanto, a partir dos anos 70, um novo ator entra na paisagem política: o Islã político cujo fundador foi um cer to Necmettin Erbakan. Este movimento chamado “Milli Görüş” (Visão Nacional) adotou um discurso duramente antiocidental, antieuropeu, antissionista e antissemita. O partido AKP de Erdoğan, no poder desde 2002, tem ori gem numa divisão “modernista” do partido de Erbakan. Os temas racistas ouvidos de alguns dirigentes do AKP, re percutidos e ampliados pela mídia próxima ao poder, en contra origem neste antissemitismo islâmico, diferente da quele dos anos 30 e 40 importado da Europa.
Dentre os principais atos antissemitas deste período destacamos: em 1986, 21 judeus são assassinados no sha bat na grande sinagoga de Neve Shalom pela organização Abu Nidal. Em novembro de 2003 vários atentados sincronizados pela Al-Qaida contra duas sinagogas, o consu lado inglês e o banco HSBC fazem 31 vítimas, das quais seis judeus. Um industrial judeu, Üzeyir Garih, é assassi nado em 2001 e um dentista judeu em 2003.
Rognar
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Quanto aos objetivos antissemitas, é sobretudo a partir de 2008 que as críti cas de Erdoğan ou de sua comitiva con tra Israel se transformam em críticas ao “lobby judaico” ou à “diáspora judaica”. Assim, temas claramente antissemitas co meçaram a circular pela mídia próxima ao governo, sem reação por parte deste. Isto permitiu o incremento de sentimen tos antijudaicos na parcela menos edu cada da população turca. Segundo o Pew Research Center, as opiniões desfavoráveis aos judeus na Turquia passaram de 49% em 2004 a 76% em 2008.6
Existe uma associação cuja missão é monitorar e denunciar todos os temas ra cistas e discriminatórios nas mídias.7 Esta associação publica regularmente relató rios bem detalhados com constatações precisas, categoria por categoria, citando nominalmente os órgãos de imprensa e os autores dos artigos. De acordo com os dois últimos relatórios, os judeus apare cem logo atrás dos armênios na lista de comunidades ata cadas pelos artigos racistas.8
Em 2012, o filme Shoah, de Lanzmann, foi transmitido em uma cadeia nacional de televisão, por iniciativa do Projeto Aladim. Em outubro de 2013, um grupo de 25 universitários turcos participou de um seminário de formação organizado em Istambul pelo Projeto Aladim para formar especialistas no ensino da Shoah nas universidades turcas, primeira iniciativa no mundo muçulmano.
Em 2012, o filme Shoah, de Lanz mann, foi transmitido em uma cadeia nacional de televisão, por iniciativa do Projeto Aladim.10 Em outubro de 2013, um grupo de 25 universitários turcos participou de um seminário de forma ção organizado em Istambul pelo Proje to Aladim para formar especialistas no ensino da Shoah nas universidades tur cas, primeira iniciativa no mundo mu çulmano.11 Enfim, em 27 de janeiro pas sado houve uma comemoração em Istambul por ocasião do Dia Internacio nal do Holocausto, o que demonstra um movimento progressivo de esclarecimento promovido pela sociedade civil.
Deve-se observar igualmente a apro vação de uma lei em 2012 que permite a restituição de bens comunitários confis cados pelo Estado a partir dos anos 20, mesmo em se tratando de uma restitui ção parcial.12
Desde então, é possível se falar de uma “esperança de melhoria” quando o desaparecimento gra dual da comunidade é inevitável? Tentaremos a seguir:
Entretanto, esta associação se limita à imprensa escrita e tem um alcance limitado. Não existe na Turquia um or ganismo forte para combater o racismo, o antissemitismo e a xenofobia. Uma lei esperada há muito tempo para me lhor combater o racismo e a discriminação foi finalmen te adotada em março, mas com um alcance muito abaixo da expectativa.9
Prognósticos para os judeus da Turquia
Verifica-se que os judeus da Turquia e seus represen tantes são geralmente reticentes em registrar queixas con tra ataques racistas nas mídias e não podemos assegurar que os procuradores da República façam seu traba lho neste tema.
Em contrapartida, se observam iniciativas recentes que não poderíamos imaginar há alguns anos: notada mente, não é mais tabu falar sobre os massacres de 1915 e dos acontecimentos antiminorias ocorridos nos anos 30 a 50. Com isto aparecem colóquios, debates e exposições sobre estes temas.
Podemos distinguir uma melhoria “mínima indispensável” e uma melhoria “desejável”. O mínimo indispensá vel seria que as ideias antissionistas e antissemitas dos di rigentes cessem. Para que isto possa acontecer é necessá ria a queda de Erdoğan. Entretanto, Erdoğan não deixará o poder tão rápido, como demonstram os resultados das eleições municipais de 30 de março. E, mesmo após a saí da de Erdoğan, é provável que os preconceitos de ódio de morem a desaparecer. Dito de outra forma, mesmo o “mí nimo indispensável” não está assegurado (apesar de uma melhora nas relações com Israel, prevista pelos observado res, impactar positivamente.)
Quanto à melhora “desejável”, ela parece utópica. Com efeito, ela consistiria numa liberdade e igualdade verdadei ras para os judeus turcos e outras minorias e não somente no papel.13 Os critérios de Copenhaguem, de acesso à União Europeia, garantem estas liberdades e igualdades. Vemos, entretanto, que, após alguns anos, a perspectiva de acesso da Turquia à União Europeia é altamente imprová vel num futuro previsível (o que não agrada nada aos ju
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deus da Turquia). Só restariam, portanto, as dinâmicas internas do país.
Quanto às dinâmicas internas, exis tem esquematicamente uma visão oti mista e uma visão pessimista. Segundo a visão otimista, as grandes manifestações de junho 2013 na Praça Taksim, em Is tambul, constituem uma tomada de po sição cidadã do poder, aparentemente li berado de antigas reflexões paternalis tas e militaristas da frente laica, uma pri meira na história da República turca.14 Se este movimento conseguir se liberar definitivamente de suas referências na cionalistas e assimilacionistas (com relação às minorias) e se conseguir se organizar em movimento político, esta ria em condições de representar uma alternativa política séria ao AKP de Erdoğan.
Em 27 de janeiro passado houve uma comemoração em Istambul por ocasião do Dia Internacional do Holocausto, o que demonstra um movimento progressivo de esclarecimento promovido pela sociedade civil.
fato seria pedir muito, pois ele não teve nem o poder nem o tempo de mudar em profundidade a sociedade turca (Atatürk morreu aos 57 anos). Se bem que para os sucessores de Atatürk e para uma grande parte da sociedade, a identidade “turca” ficou extremamente associada à identida de “muçulmana”15 e os judeus turcos fo ram considerados “convidados”, devendo ficar eternamente gratos aos turcos por tê -los acolhido em 1492.
Segundo a visão pessimista, Atatürk instituiu uma ci dadania turca destinada a englobar todos os habitantes do país qualquer que seja sua religião ou etnia, mas de
Sempre de acordo com a visão pes simista16, mais fundamentalmente não houve a “Renascença” nem o “século das luzes” na Turquia (que é pois uma república relativamente jovem) nem no Islã (que tem “apenas” 1.400 anos), que poderia ter aproximado o país do humanismo, da emanci pação do indivíduo e dos valores universais de liberdade e igualdade. Desta forma restaria, pois, um longo caminho a percorrer pela sociedade turca. Em todos os casos será mui to pouco e muito tarde para os judeus da Turquia.
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Notas
1. Rıfat Bali, The 1934 Thrace events, entrevista no European Journal of Turkish Studies, n. 7: http://www.ejts.org/document2903.html e Avner Levi, Türkiye Cumhuriyeti’nde Yahudiler (Les Juifs de la République de Turquie), İletişim, Istan bul, 1996
2. Ayhan Aktar, Varlık Vergisi ve Türkleştirme Politikaları (L’impôt sur la fortune et les politiques de turquification), İletişim, Istanbul, 2000
3. Dilek Güven, 6-7 Eylül Olayları (Les événements des 6-7 septembre 1955), İletişim, Istanbul, 2006
4. Corry Guttstadt, Turkey, the Jews, and the Holocaust, Cambridge University Press, 2013 et http://www.salom.com.tr/newsdetails.asp?id=88997
5. Adesão à ONU e começo do período multipartite, principalmente
6. http://www.pewglobal.org/2008/09/17/chapter-1-views-of-religious-groups/
7. http://nefretsoylemi.org/
8. http://nefretsoylemi.org/rapor/Eylul-Aralik2013_nefretsoylemi_ayrimcisoylem_ raporu.pdf, p. 9 e Mehveş Evin, no jornalMilliyet : Müslüman olmayana nefret arttı(La haine des non-musulmans a augmenté): http://www.milliyet.com.tr/mus luman-olmayana-nefret-artti/gundem/ydetay/1870029/default.htm
9. http://www.salom.com.tr/newsdetails.asp?id=90229 et http://marksist.org/yazar lar/roni-margulies/14224-bugunnkimdennnefretnedelim
10. O Projeto Aladim (http://projetaladin.org/) é uma iniciativa lançada em 2009 pela Fondation pour la Mémoire de la Shoah, colocando à disposição de países mu çulmanos informações históricas confiáveis sobre a Shoah e sobre a cultura judaica
11. http://www.projetaladin.org/fr/s%C3%A9minaire-international-sur-lenseigne ment-de-la-shoah-1.html
12. http://turquieeuropeenne.eu/turquie-un-grand-pas-pour-les-droits-des-non.html
13. Mesmo se o Tratado de Lausanne de 1923 garante aos cidadãos turcos não mu çulmanos o livre acesso aos empregos públicos, inúmeros altos postos estão de fato vedados principalmente na diplomacia, na magistratura e no exército
14. OyaBaydar: http://www.courrierinternational.com/article/2014/03/05/turquie -enfin-une-troisieme-voie
15. Harold Rhode: http://www.sephardichorizons.org/Volume4/Issue1/turkey.html
16. Jack Salom, Difficile transition vers la modernité: o caso da Turquia (conferência de 23 de março de 2013 na Inalco em Paris)
17. O Projeto Aladim (http://projetaladin.org/) é uma iniciativa lançada em 2009 pela Fondation pour la Mémoire de la Shoah, colocando à disposição de países mu çulmanos informações históricas confiáveis sobre a Shoah e sobre a cultura judaica
18. http://www.projetaladin.org/fr/s%C3%A9minaire-international-sur-lenseigne ment-de-la-shoah-1.html
Michel Alfandari nasceu em Istambul, vive em Paris, trabalha como gerente de risco operacional de um grande banco internacional e mantém o blog www.alfandar.fr, onde podem ser encontradas mais informações sobre os judeus da Turquia.
Traduzido do francês por Michel Ventura.
Nicoolay
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o paradi G ma e quivocado do c on F lito á ra B e- i sraelense
entrevista com a professora Ruth Wisse
O fator preponderante para avaliar se o mundo árabe avança para a democracia ou se está recuando em direção a mais repressão é identificar se o mundo árabe está pronto a aceitar o Estado de Israel sem pré-condições e sem preocupações.
Aentrevista abaixo foi concedida ao jornal israelense Jerusalem Post em julho de 2011, quando ainda estava “quente” o episódio da flotilha que tentou furar o bloqueio israelense a Gaza em maio de 2010. Deva rim decidiu publicar esta entrevista agora, três anos após ela ter acon tecido, por julgar que seus conceitos continuam atuais e também para instigar a reflexão sobre o conflito que consome grande parte das preocupações dos judeus do Brasil.
Ruth Wisse é professora de Iídiche e de Literatura Comparada na Univer sidade de Harvard. Em 2007 recebeu a “National Humanities Medal” por sua “erudição e cátedra que iluminaram as tradições literárias judaicas”. É autora de The Shlemiel as a Modern Hero; If I Am Not For Myself: The liberal betrayal of the Jews; The Modern Jewish Canon: A journey through language and culture; Jews and Power e No Joke: Making Jewish Humor. É membro do conselho editorial do Jewish Review Books e comentarista habitual de Commentary.
JP – Professora Wisse, gostaria de perguntar sua opinião sobre a instável si tuação do caso da flotilha.
Ruth Wisse – Como denominaríamos a flotilha? É uma flotilha “acabe -com-os-judeus”. É como eu a chamaria, simplesmente. A arte da guerra mo dificou-se em nosso tempo, como você bem sabe. A guerra dirigida aos EUA, por exemplo, foi levada a cabo por um par de pessoas direcionando aviões con tra edifícios.
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Neste caso não se trata de um exército invasor e sim algo muito mais sofisticado que utiliza vários outros métodos, pois é muito difícil derrotar o exército de Israel da maneira convencional. A flotilha é en viada para ajudar o Hamas, que se ocupa em destruir o povo de Israel e o Estado Ju daico, e o único meio de que Israel dispõe para se proteger é colocando certas restri ções ao povo de Gaza.
Israel não tinha intenção de impor tais restrições quando se retirou de Gaza. Foi deixada uma tremenda infraestrutu ra para que fosse usada em proveito de sua prosperidade, mas, como se sabe, ela foi utilizada como plataforma para lan çamento de mísseis e para todo o tipo de ataques contra Israel, cujas fronteiras não são impenetráveis.
O mundo árabe criou e continua a criar esses problemas e enquanto tal situação permanecer, enquanto usar Israel como desculpa conveniente para não cuidar de seus problemas internos, enquanto não implementar suas necessárias reformas, o mundo árabe não progredirá.
Assim Israel teve de impor certas restrições para impe dir o fluxo de armamentos, de modo a reduzir a capacida de agressiva de seu vizinho de Gaza. De repente aparece a tal flotilha, cujo propósito é o de desacreditar a tentativa de Israel de se proteger, dizendo: “Queremos trazer auxílio aos matadores de israelenses”. Não se trata de uma flotilha de ajuda, mas uma flotilha “mate-os-judeus”.
Se for chamada pelo seu nome próprio, será reconheci da pelo que realmente é. Neste contexto a nomenclatura é extremamente importante, clarificando da melhor forma a situação. Se ela for adequadamente designada, será reco nhecida pelo que realmente é.
Penso que um dos objetivos principais do antissemitis mo é o de distorcer e mesmo inverter a realidade e, quanto mais se embarca nessas distorções e inversões, tanto mais se facilita o antissemitismo e seu poder destrutivo. Portan to, creio que é importante usar os termos simples e cor retos, de modo a trazer a necessária clareza moral e polí tica à situação.
JP – Professora Wisse, tendo escrito bastante sobre o conflito árabe-israelense, qual é seu pensamento sobre a Pri mavera Árabe, e mais especificamente sobre a atuação do governo norte-americano em suas tentativas de fazer avançar a paz e a democracia no Oriente Médio?
Ruth Wisse – Penso que é muito nobre a tentativa
de inspirar aperfeiçoamentos no mundo, mas creio que nenhum aporte financei ro a qualquer país no Oriente Médio será útil, a menos que os líderes árabes e seus povos aprendam a aceitar o Estado de Is rael e sua irmandade com o povo judaico, bem como a legitimidade do Lar Judaico.
A meu ver o fator preponderante para avaliar se o mundo árabe avança para a democracia ou se está recuando em di reção a mais repressão é identificar se o mundo árabe está pronto a aceitar o Es tado de Israel sem pré-condições e sem preocupações.
Penso que este ponto simplesmente não é entendido. Não é certamente en tendido pelos árabes, mas também não o é pelos judeus e pelos israelenses. Cer tamente também não é entendido pelo atual governo dos EUA, contudo é intuitivamente entendido pela socieda de dos Estados Unidos, embora não de maneira conceitual e completa.
Creio que este é o ponto que deve ser endereçado an tes que qualquer progresso real possa ter lugar. Isto por que a organização política contra os judeus – que moder namente ganha o nome de antissemitismo –, além de ser uma das mais atrativas ferramentas da política moderna, é também uma das mais destrutivas.
O antissemitismo na Alemanha e em outros países da Europa foi altamente destrutivo não apenas para os judeus, mas também para as respectivas populações. É o antissemi tismo, mais do que qualquer outro fator, que fez com que a Alemanha tivesse perdido sua posição proeminente no mundo ocidental. Uma proeminência que ela teve no sé culo XIX e que ainda não conseguiu retomar por causa do efeito corrosivo do antissemitismo na sociedade.
Penso que o efeito corrosivo seja ainda pior nas socieda des árabes desde meados dos anos 1940 do século XX. Se as lideranças árabes, e o mundo árabe que as segue, tivessem conseguido aceitar a irmandade entre os filhos de Ishma el e os filhos de Isaac, simplesmente dizendo: “Sim, muito bem, nós possuímos 800 vezes mais terra do que os judeus – o que poderia até evidenciar uma ‘superioridade’ da ci vilização árabe muçulmana sobre a civilização judaica – e nós conseguiremos ter sucesso com 800 vezes mais terra”.
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Ao invés disso, o que o mundo árabe fez foi usar a sua organização política contra os judeus e para a guerra con tra Israel, artificialmente doutrinando o deslocado e perse guido povo palestino, assegurando que ele permaneça por muitos anos em campos de refugiados, como um perpé tuo espinho nas costas de Israel.
O mundo árabe criou e continua a criar esses proble mas e enquanto tal situação permanecer, enquanto usar Is rael como desculpa conveniente para não cuidar de seus problemas internos, enquanto não implementar suas ne cessárias reformas, o mundo árabe não progredirá.
Creio que a análise do antissemitismo é o assunto mais mal-entendido e mais mal diagnosticado da política mo derna. Pelo fato de ser mal direcionada, conscientemen te tenta tirar a ênfase da política interna, apontando para fora. Estão sempre dizendo: “Veja, é culpa dos judeus, se apenas eles não estivessem em Israel, se apenas não esti vessem construindo assentamentos, se apenas não estives sem fazendo isso ou aquilo”. O teor da acusação sempre
muda, mas não o instrumento político, o ódio aos judeus permanece inalterado.
JP – Professora Wisse, gostaria de pedir esclarecimento sobre sua referência ao conflito árabe-israelense como um “paradigma errado”. O que a senhora quer dizer com isso?
Ruth Wisse – Bem, é um paradigma errado em ter mos de conflito porque quase todos pensam que existem dois lados em guerra. Certamente, pessoas como o jorna lista Tom Friedman do The New York Times, bem como muitos líderes israelenses e mundiais aceitam tal paradig ma, e isto é tão absurdo! Nada poderia estar mais afasta do da verdade.
Esta não é uma guerra entre duas entidades por uma terra, como às vezes é colocado, e não é uma “guerra nor mal”, em termos de duas entidades que se defrontam com interesses em conflito: este é um genuíno assalto unilateral e muito desequilibrado. Não acho que haja existido na
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história humana uma guerra tão desequilibrada como a do conflito dos últimos 60 anos do mundo árabe contra Israel.
Assim, este não é um conflito que pos sa ser finalizado, pois não se consegue tra zer os dois lados a uma mesa, já que exis te um único lado!
Aos judeus não interessa a guerra. Certamente não nos interessa guerrear com o povo do qual procuramos aceita ção! Desta forma, nossa estratégia é dizer: “Por favor, aceitem-nos”, “por favor, fare mos isto, tentaremos isto, faremos aqui lo, tentaremos aquilo”. E a única razão de possuirmos uma força de defesa forte e que precisa ser mais forte com o pas sar dos anos é porque ela tem que estar lá, pois é o único meio de o Estado de Israel sobreviver.
Uma das tragédias de ter perdido contato com o iídiche é que perdemos contato com o nosso processo de modernização. O que nos falta é a história do que deu errado. Se a conhecêssemos melhor, estaríamos mais bem preparados para lidar com a situação atual.
sos físicos em abundância e tem também recursos humanos. Creio que esses recur sos humanos estão muito subdesenvolvi dos por causa de suas preocupações com “aquilo lá fora”: a crescente mania, eu di ria também, a crescente patologia de vi sar os judeus gritando o tempo todo: “Israel, Israel, Israel”, como se a presença de Israel fosse de alguma maneira relevante ao mundo árabe.
JP – Professora Wisse, a senhora escre veu no passado que os judeus consti tuíam-se numa falsa entidade política. Gostaria de perguntar como caracteriza ria o Estado Judeu hoje.
Do outro lado existem países que não são democráti cos, dirigidos por líderes que podem unilateralmente mu dar de pensamento e de política da noite para o dia. Es ses países têm usado, como menciono acima, sua organi zação política contra Israel de uma forma que eles acham muito criativa.
Para dar um exemplo bem claro, o mundo árabe é constituído de muitas diferenças. Há diferenças internas, há conflitos entre o Irã e o Iraque, entre sunitas e xiitas, en tre os que querem ser muçulmanos tradicionais, entre os que são tradicionalistas e querem se tornar seculares, enfim, há todos os tipos de conflitos internos. Quão conve niente tem sido para o mundo árabe e para boa parte do mundo muçulmano usar a oposição a Israel como o ele mento de aglutinação. Creio que não haja nada mais no mundo árabe, e em boa parte do mundo muçulmano, tão atrativo como o antissemitismo para forjar a sua unidade.
Minha tese é de que a utilização da organização políti ca contra os judeus e contra Israel será destrutiva aos seus usuários e aos seus apoiadores. Parece destrutiva aos ju deus porque visa-os, mas, de fato, embora possa destruir judeus fisicamente, não consegue destruí-los, porque os ju deus não usam o conflito como recurso para resolver seus problemas.
Os judeus “olham para dentro”. A democracia “olha para dentro”. Interessa-se pelo desenvolvimento de recur sos internos. O mundo árabe tem tais recursos, tem recur
Ruth Wisse – Às vezes uso a seguinte frase, que ouvi de um chofer de táxi em Boston, para caracterizar o que o Estado judeu se tornou: “A frente de luta do que costu mávamos chamar de a Civilização Ocidental, do mundo livre e democrático”.
Certamente não por escolha. Não há um só israelense que eu conheça que gosta de pensar que está em tal posi ção ou que gosta de exercer tal papel no mundo. Mas os judeus foram colocados em tal posição, e então a questão é: como se comportar?
Chamei aos judeus, no passado, de uma falsa entidade política muito relutantemente, porque meu ponto princi pal é que os judeus não podem solucionar os problemas dos quais são acusados. Este é o dilema com que os judeus se defrontaram por muitos e muitos séculos e ainda se de frontam hoje, embora de uma forma diferente.
Como podemos solucionar a situação dos árabes, como podemos fazê-los aceitar o Estado de Israel? É um desejo natural de solucionar tais problemas, porque a agressão é voltada contra nós. Acho que a primeira coisa a ser reco nhecida é que somos o último povo que pode fazer algo para achar uma solução.
A única maneira de auxiliar é certificar-se que o agres sor entende que nunca conseguirá vencer-nos. Fazer o agressor acreditar que ele não necessita da agressão. Se pu dermos persuadir o agressor que a agressão será mais preju dicial a ele próprio, aí penso que temos uma chance. Mas, até agora, nem Israel nem o povo judeu entenderam sufi cientemente seu papel na política para tomar tal iniciativa.
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JP – Professora Wisse, a senhora tem sido chamada de otimista por uns e de pessimista por outros. Por favor, diga algo a este respeito.
Ruth Wisse – Quando ouvem meu diagnóstico, di zem: “Oh, a senhora é tão pessimista!” porque o meu diag nóstico requer uma mudança radical no mundo árabe. E eles acham pessimista esperar que a mudança aconteça para o lado positivo.
E assim pensam ser mais otimista acreditar que Israel seja responsável. E por que isto seria mais otimista? Por que assim basta convencer aos judeus de que retirando-se daqui ou não construindo ali será mais fácil chegar a uma solução. Mas isto é um falso otimismo.
Porque desta forma tudo o que tenho de fazer é per suadir o meu lado de que eu é que devo mudar para que tudo se solucione. E como é fácil persuadir os judeus de algo! Temos visto quantos compromissos os judeus es
tão preparados a fazer. Assumimos compromissos todos os dias!
Porém, no instante em que assumimos compromissos as coisas somente pioram, pois estamos dando munição ao lado contrário, reforçando a ideia de que nós somos os res ponsáveis, e que por isso estamos fazendo as concessões.
Eu insisto que o problema está no aspecto unilateral do conflito e que sua solução depende exclusivamente dos árabes decidirem descartar de sua política o antagonismo com Israel.
Parece pessimista porque sabemos que o mundo árabe levará um tempo muito longo para se modificar, mas eu gostaria de dizer que sou otimista porque realmente espe ro que o mundo árabe vá mudar.
JP – Concluindo, professora Wisse, parece-me curioso como uma pessoa erudita em iídiche, uma intelectual co
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nhecida, acaba escrevendo um livro sobre poder e política judaica?1
Ruth Wisse – É uma boa pergunta. Às vezes eu men ciono, brincando, que a literatura iídiche me ensinou a história dos erros judaicos. E isto não está muito longe da verdade, pois se você ler a moderna literatura iídiche per ceberá quão profundamente os judeus adotaram ideias que se revelaram autodestrutivas. O comunismo é uma, o so cialismo radical é outra, uma forma de secularismo é ain da outra e especialmente a ideia de que os judeus devem consertar o mundo. Esta era uma ideia comum nos círcu los judaicos, particularmente nos anos 1920-30.
Não dá para discutir isto em maior profundidade nes ta entrevista, mas se você ler literatura iídiche e entrar em contato com as posições de seus grandes escritores, e quais as consequências de algumas delas em termos políticos, verá que eles não poderiam ter previsto suas consequên cias políticas. Não se pode culpá-los retroativamente e lon ge de mim tal intenção.
Eles estavam experimentando e entrando em um mun do que ninguém conhecia bem. Era a primeira vez que a modernidade ocorria, e então tentaram ajustar-se o melhor possível. Porém nós, agora, olhando para trás, certamente podemos perceber o que deu certo e o que não deu certo e podemos aprender disso.
Uma das tragédias de ter perdido contato com o iídi che é que perdemos contato com o nosso processo de mo dernização. O que nos falta é a história do que deu errado. Se a conhecêssemos melhor, se a tivéssemos melhor internalizado, estaríamos mais bem preparados para lidar com a situação atual.
A propósito da ligação entre o iídiche e a política, dei xe-me citar um único exemplo. Estou presentemente es crevendo um livro de humor iídiche2, mas que será mui to diferente de outras coleções de humor judaico. Espe ro que seja engraçado, que contenha parte do melhor hu mor judaico, mas meu propósito é de alertar contra exces sos, como no exemplo que se segue, que se conecta com nosso tempo.
Uma das peças de humor cheia de sagacidade, am bientada no gueto de Varsóvia, diz: “Que Deus proíba que esta guerra continue enquanto pudermos resistir”. Se você entende bem esta piada, então você entende as ter ríveis consequências de quão profundo o humor judai co se tornou.
O natural seria “Que Deus proíba que esta guerra continue por mais tempo do que podemos resistir”. Porém, para os judeus o valor supremo é resistir e não obter a vitó ria ou uma existência sadia. É simplesmente que um en tre dez, ou não sei quantos, sobreviva. É isto que está na origem desta piada.
Esperamos que o humor israelense resulte em algo completamente diferente, pois a situação dos judeus em Israel é completamente diferente, visto que Israel é capaz de defender-se. Que Deus proíba que este tipo de piada se torne característica dos israelenses.
Notas
1. O livro Jews and Power, publicado em 2007 pela Schocken Books, sem tradução para o português.
2. O livro No Joke: Making Jewish Humor, publicado em 2013 (depois desta entrevis ta) pela Princeton University Press, sem tradução para o português. Traduzido do inglês por Daniel Kovarsky.
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a s lon G as som B ras da Guerra de 1967
luiz dolhinkoff
Nos dias que antecederam a destruição de Israel e a aniquilação de sua população em junho de 1967, estas foram as palavras de ordem lan çadas antes das primeiras bombas:
“Soldados! 300 mil combatentes do Exército do Povo estão com vocês na batalha, e atrás deles 100 milhões de árabes. A nata de nossas tropas está à fren te. Ataquem os assentamentos do inimigo, transformem-nos em poeira, pavi mentem as estradas árabes com os crânios dos judeus. Ataquem sem piedade” [ministro da Defesa sírio em exortação às suas tropas].
“A guerra só terminará com a destruição de Israel” [governo sírio].
“Já é tempo [...] de tomar a iniciativa de destruir a presença sionista na ter ra árabe” [Hafez al-Assad, ditador sírio].
“Quando as hostilidades começarem”, calculava [o coronel Mustafá] Tlas [comandante da frente central], “a Síria e o Egito poderão destruir Israel em, no máximo, quatro dias.”
“Eu acreditava que [...] atacaríamos primeiro e destruiríamos Israel em questão de horas. Eu tinha muitas ideias sobre o que fazer com Israel depois de conquistado e eliminado” [general Amin Tantawi, comandante da 4ª Di visão egípcia].
Este texto pretende romper a inércia pseudoexplicativa de alguns mitos cristalizados através do impacto da ficcionalização parcial da história. Para entendê-lo é fundamental ler suas notas de rodapé, ao final do artigo.
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[O marechal Amer, chefe das Forças Armadas egípcias] expressou numa conversa telefônica com Ahmad Shuqayri a esperança de que “logo poderemos tomar a iniciativa e nos livrarmos para sempre de Israel”.
“Destruiremos Israel e seus habitantes, e quanto aos so breviventes – se houver algum – os navios estarão pron tos para deportá-los” [Ahmad Shuqayri, chefe da OLP].
O primeiro-ministro argelino, Houari Boumedienne, declarou: “A liberdade da pátria será completada com a destruição da entidade sionista”.
O ministro do Exterior do Iêmen, Salam: “Queremos a guerra. A guerra é a única forma de resolver o proble ma de Israel”.
As forças jordanianas devem “destruir todos os edifí cios e matar todas as pessoas que estiverem” nessas áreas, incluindo civis [israelenses].
Datadas dos dias anteriores ao início da Guerra de Junho, como ficou conhecida a catastrófica guerra árabe-isra elense de 1967, estas declarações de altas autoridades ára bes podem ser encontradas na obra fundamental de Mi chael B. Oren.1 A maioria, em todo caso, é bastante conhe cida (para o leitor atual que não tenha lido o livro, causará certa estranheza, e será talvez motivo de uma busca na in ternet, somente a obscura sigla “OLP”, na quinta citação).
Com a esmagadora – literalmente – vitória árabe em apenas três semanas dos combates mais cruéis e cruentos da história recente, até que o último foco de resistência is raelense fosse brutalmente eliminado, o mundo de certa forma se acostumou, como afinal se acostuma a tudo (ou, ao menos, a tudo que seja um fato histórico consumado), com aquilo que o Ocidente, aos poucos, passou a reconhecer, em mais um surto de arrependimento tão inútil quanto tardio, como o “Segundo Holocausto” – em que 600 mil judeus israelenses foram mortos, enquanto quase um milhão abandonou suas casas, num dos maiores e mais dramáticos êxodos da história contemporânea.
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Cunhou-se, então, a expressão “limpeza étnica” para definir e resumir a tragédia tão anunciada, ou seja, a des truição de Israel depois do colapso de suas linhas de defe sa, e a expulsão brutal daqueles que não foram mortos pe las centenas de milhares de soldados das forças árabes inva soras.2 Tudo isso, como dito, é bastante conhecido, e tudo fora fartamente anunciado pelas mesmas forças árabes à época, conforme reproduzido acima.
Uma dessas estranhas, mas familiarmente trágicas, con fluências de circunstâncias históricas, geopolíticas, milita res e ideológicas, neste caso explicáveis – mas jamais jus tificáveis – pelo contexto da Guerra Fria, além da simpa tia de parte importante do chamado “campo da esquer da” pela “causa árabe”, paralisou o mundo por pouco tem po, porém por tempo mais do que suficiente para que o jovem Estado de Israel, então com apenas 19 anos, fos se destruído.
O Conselho de Segurança da ONU, em seguida, dis cutiria e tentaria votar resoluções contra os Estados árabes agressores e pela reconstrução de Israel, mas foi em vão.
Tudo seria vetado pela hoje extinta URSS. E os EUA, úni ca força capaz de reverter a situação, não enfrentariam a ex -URSS e seu poderio atômico, somados às centenas de mi lhões de árabes e seu poder petroeconômico, por mais um punhado de judeus. A Alemanha nazista não foi comba tida, é bom que ainda se diga, por seu programa de exter mínio dos judeus europeus, mas porque invadiu a Polônia.
Mas se tudo isso é tão conhecido (e levou o famoso historiador marxista Eric Hobsbawm a cunhar sua famosa expressão “o pequeno século das grandes catástrofes”, em referência ao século XX e suas tragédias, como a Primei ra Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial, o Primei ro Holocausto e o Segundo Holocausto, que marcaria seu “fim” no ano de 1967 – daí a “pequenez” do século)3, por que recordá-lo mais uma vez, mesmo se no contexto dos 47 anos desses eventos funestos?
Porque é preciso sempre recordar. E porque lembrei há pouco de um surpreendente fato correlato a essa imensurá vel tragédia: a existência, à época, de um “movimento pela libertação da Palestina”.
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O leitor pensará, naturalmente, que estou equivocado. Como poderia existir um movimento pela libertação da Palestina em 1967, quando a Palestina se tornou inde pendente em 1948, com a saída das forças coloniais bri tânicas? Realmente, parece um equívoco – mas, em todo caso, não é meu.
Se o leitor parou de ler este artigo para pesquisar na in ternet a obscura sigla referida no início, ou seja, OLP, terá descoberto que ela significa, de fato, “Organização para a Libertação da Palestina”, criada no Cairo em 1964, sob os auspícios de Nasser e da Liga Árabe. Mas se em 1964 não havia nenhuma Palestina a libertar, mas apenas o Estado de Israel, além de territórios da ex-colônia britânica gover nados, à época, por árabes, ou seja, Gaza (então parte do Egito), Jerusalém Oriental e a chamada Cisjordânia (partes da Jordânia), qual o sentido, ou melhor, qual o objeti vo, dessa hoje esquecida organização? A acreditar em seus estatutos, construir um Estado “palestino” unindo os terri tórios de Israel, Gaza e Cisjordânia. Ou seja, reeditar a an tiga Palestina Britânica, com exceção do que era, durante o Mandato Britânico, a chamada Transjordânia (atual Jor dânia).4 Mas para que, afinal, perguntará ainda o leitor? Para ser o Estado do “povo palestino”.
Muito deste artigo há de parecer ficção, mas é pura his tória; a história de processos e causas quase esquecidos de uma história muito lembrada (a do Segundo Holocausto), razão, aliás, de ele ter sido escrito.
Durante o Mandato Britânico (1922-1948), todos os habitantes da região, árabes e judeus, eram chamados “pa lestinos” (o antigo jornal judaico The Jerusalem Post, que existiu entre 1948 e 1967, chamava-se, durante o manda to, The Palestine Post). Antes do período britânico, a re gião, parte do Império Otomano durante meio milênio, não constituía nenhuma unidade geopolítica, mas estava dividida em províncias (velayats) otomanas, em nada cor respondentes à futura Palestina Britânica – que, aliás, foi buscar esse nome na antiga Palestina Romana. Portanto não havia, antes do curto Mandato Britânico, nem Pales tina nem palestinos.5
Enfim: os referidos palestinos de 1964 eram simples mente os árabes da própria Palestina Britânica, que agora assumiam o nome outrora rejeitado (compreensivelmen te, por sua origem colonial), e, com o nome, reivindica vam uma nova identidade étnica: não mais árabes de uma das muitas ex-colônias europeias desenhadas sobre anti
gas províncias otomanas, mas “palestinos” (a Resolução da ONU de 29 de novembro de 1947, que decretou a extin ção e a partilha da Palestina Britânica, naturalmente não se refere a “palestinos”: “Os [futuros] Estados independentes judeu e árabe [...]” [Resolução 181, I, 3]).6
A destruição de Israel em 1967, como referido, acon teceu depois de três semanas de guerra, iniciadas em 4 de junho com a invasão, a oeste, pelas forças egípcias, segui das pelas forças jordanianas, sírias e iraquianas, além de voluntários de dezenas de países árabes, que formaram a Segunda Legião Árabe (a primeira fora derrotada na guer ra de 1948):
Convergiam para o Sinai contingentes militares de pa íses [como] Marrocos, Líbia, Arábia Saudita [e] Tunísia. [A] Síria [concordou] em enviar uma brigada para lutar ao lado dos iraquianos na Jordânia. Combinados, os exér citos árabes tinham 900 aviões de combate, mais de cin co mil tanques e meio milhão de homens. Acrescente-se a isto um imenso poder político (p. 205 da obra citada de Michael Oren).
Com a capitulação final das FDI (Forças de Defesa de Israel) no dia 25 de junho, a Síria se apoderou da Galileia, enquanto o Egito estendia seu território de Gaza até Je rusalém Ocidental e a Jordânia, mais fraca, grosso modo se contentava em manter sob seu domínio a chamada Cisjor dânia, além de Jerusalém Oriental.
Não, caro leitor: nenhum “Estado palestino” foi afinal criado, nem era esse, de fato, o verdadeiro objetivo da guerra de 1967. A criação da Organização para a Liber tação da Palestina em 1964, quando não havia nenhuma “Palestina” a libertar, fora, na verdade, parte da batalha de propaganda, visando fornecer um objetivo político de fensável a uma guerra política e moralmente indefensável, cujo fim se limitava àquele que, tragicamente, afinal atin giu: a destruição de Israel e a morte ou expulsão de todos seus habitantes judeus.7
Luis Dolhnikoff é escritor, articulista político e tradutor. Trabalha atualmente na tradução para o português de The Torah: A Modern Commentary, do Rabbi Gunther Plaut, para a WUPJ.
Notas
1. Seis dias de guerra – junho de 1967 e a formação do moderno Oriente Médio (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001, pp. 92, 108, 129, 169, 202, 203, 205 e 349). Mi
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chael B. Oren é real (e realmente um respeitado historiador), assim como seu livro e todas suas citações.
2. A expressão “limpeza étnica” (“ethnic cleansing”) foi criada durante a Segunda Guerra Mundial e popularizada durante a guerra civil na Bósnia, nos anos 1990.
3. A famosa expressão de Hobsbawm é, na verdade, “o curto século XX” (“the short 20th century”), referindo-se ao seu “início” em 1914 e ao seu “fim” em 1989 (que da do muro de Berlim).
4. Todas as afirmações deste parágrafo são factuais.
5. Idem.
6. Idem.
7. Este texto pretende romper a inércia pseudoexplicativa de alguns mitos cristali zados através do impacto da ficcionalização parcial da história (o fim desta nota separa o joio ficcional do trigo factual; mas adianto que todas as citações são fac tuais). Não tem, por outro lado, a intenção de “negar” a atual existência de um autoproclamado povo palestino, ainda que ele não tenha existência histórica en quanto tal, ou seja, como um povo com qualquer identidade étnico-linguística separada ou separável da grande identidade árabe. Sem adentrar aqui em com plexos argumentos geopolíticos-antropológicos-culturais, contemporaneamen te, depois do surgimento do Estado-Nação na Europa moderna e do processo de descolonização do século XX, deixando para trás protoestados em busca de na ções, povos são, grosso modo, construções principalmente políticas, e a vontade de autodeterminação, sua razão (quase) suficiente. Mas nada disso justifica mal baratar fatos históricos robustos, enquanto se intoxica politicamente o presente.
Não se pode explicar o fracasso histórico do movimento palestino apenas pela ação ou reação israelense. Nenhum dos incontáveis povos que, durante o século XX, deixou a condição colonial pela autodeterminação, da gigantesca Índia ao
minúsculo Timor Leste, passando pela totalidade da África, pediu permissão às forças antagônicas. Os palestinos, que buscam um objetivo geopolítico frustrado desde 1948, são um caso único (para não falar do grande e grandemente infeliz povo curdo, o verdadeiro povo esquecido – e injustiçado – do período históri co da “autodeterminação dos povos”). Exceções exigem explicações particulares. Se os africanos do sul lograram acabar com o regime do apartheid e encontrar um modus vivendi com os brancos, e se os vietnamitas puderam derrotar (poli ticamente) a maior máquina militar da história, a explicação, neste caso, não se limita e não pode se limitar à “malignidade especial” da “entidade sionista”, ou ao apoio irredutível do irredutivelmente maléfico Tio Sam (tantas vezes derro tado, do Vietnã ao Irã do xá, passando pela Nicarágua de Somoza etc.). A expli cação real e realista passa, necessariamente, pela opção histórica do movimento palestino de priorizar, no contexto maior da geopolítica árabe, não a construção de seu Estado, mas a destruição do Estado de Israel (sequer a derrota de 1967 alteraria esse quadro, como o prova a nova tentativa na Guerra do Yom Kippur, em 1973). Isso só começaria a mudar, de forma hesitante, a partir dos Acordos de Oslo, em 1993. Porém não o bastante para que as hesitações e contradições palestinas não matassem os acordos de Camp David em 2000 – fato ainda mais determinante do que o assassinato de Yitzhak Rabin em 1995, pois este não im pediu a realização das próprias conferências de Camp David, que somente não levaram a um acordo histórico pela desistência de Arafat às vésperas da assinatu ra (motivada, fundamentalmente, pelas consequências políticas contemporâne as das contradições históricas do movimento palestino). De lá para cá, com in tifadas, ascensão do Hamas, ascensão do Likud, morte de Arafat, coma de Sha ron etc., o que era difícil se tornou imponderável. Mais uma vez, e tragicamen te – pois a existência de dois Estados é um imperativo inadiável.
TomAsoN1
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Esta seção costuma comentar acontecimentos variados de interesse do mundo judai co, ocorridos durante os meses que separam duas edições consecutivas da seção em Devarim. Porém, como a edição atual está sendo fechada ainda durante a escala da de violência de julho-agosto de 2014, ela focou integralmente nas questões re lacionadas com o controle do Hamas sobre a faixa de Gaza e suas consequências.
A ética e a vida
A definição sobre o que é “identidade judaica” é um dos temas mais controver tidos em nosso debate comunitário. Há quem defina o judaísmo exclusivamente como uma religião e quem o defina como uma cultura ou uma civilização, com os mais variados matizes entre estes polos.
Centenas de milhares de horas são dedi cadas a discussões sobre a nossa identi dade sem que se chegue a uma conclusão.
Contudo há um indiscutível ponto de convergência entre todas as posições: o judaísmo nasceu de uma visão ética que revolucionou a forma como o ser humano enxerga o mundo e é a partir deste núcleo que irradiam os diversos formatos e per cepções que compõem as diversas verten tes judaicas.
Os judeus costumam discordar sobre tudo, porém são unânimes no orgulho de terem outorgado à humanidade os dez mandamentos e a visão monoteísta. Pode mos afirmar sem muito medo de errar que a esmagadora maioria dos judeus do mun do acredita que “judaísmo” é quase um si nônimo de “ética”.
Assim que, quando o Estado de Israel é acusado de gravíssimas falhas morais, fi camos extremamente angustiados, pois é o principal pilar da nossa identidade que está sendo gravemente contestado.
Neste momento de angústia é funda mental lembrar que a vida precede a ética, pois o imperativo moral só pode ser exer cido em vida. Ou seja, é preciso estar vivo para agir de forma correta para com o se melhante. Assim que a primeira injunção moral sempre é: “Escolha a vida, mante nha-se vivo!”
Rabi Hilel (século 1 a.e.c. – século 1 d.e.c.) deixou isto registrado de forma ma gistral em seu famoso aforismo: “Se eu não for por mim quem será? Mas se eu for apenas por mim, quem sou eu? E se não agora quando?” Ou seja, só é possí vel se conduzir de forma ética se você es tiver vivo. E nem o cuidado consigo nem o cuidado com os outros podem ser adiados para um momento mais oportuno, eles têm que ser exercidos todos os momentos de todos os dias.
Durante os angustiantes momentos em que Israel se defende contra inimigos que tentam aniquilá-lo com todas as forças ao seu dispor, a sabedoria de Hilel resgata o norte moral judaico: antes de tudo é pre ciso manter-se vivo, mesmo quando isto acarreta destruir quem nos ataca.
da vida. Sim, elas geram imagens terríveis e causam sofrimento indescritível, mas são necessárias, pois tanto Israel como os ju deus têm o direito inalienável à vida.
Proporcionalidade
O uso desproporcional da força é a prin cipal acusação assacada contra o Exército de Israel em suas últimas campanhas. Con tudo, poucas pessoas sabem definir com alguma precisão o que significa o conceito da proporcionalidade na legislação interna cional sobre a guerra.
A semântica da palavra não ajuda o en tendimento. Por conta dela as pessoas são levadas a crer que numa guerra é preciso que haja equilíbrio de forças, devendo as partes mais capacitadas conterem o uso de sua superioridade para nivelar o comba te. O termo induz à percepção de que há “desproporcionalidade” quando uma parte impõe mais danos ao inimigo do que aque les que sofre.
Contudo, o conceito de proporcionali dade na guerra passa bem longe disto, não envolvendo nenhuma medida numérica.
Um ataque é considerado injustifica do quando mira em alvos não militares e é considerado desproporcional quando a força usada para neutralizar um ativo mili tar do inimigo é maior do que a vantagem que se espera obter com o ataque.
Israel não tem porque se envergonhar ao defender a vida de seus cidadãos e nem nós, judeus que vivem na dispersão, temos porque nos envergonhar pelas necessá rias ações militares conduzidas em nome e m p oucas palavras
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Ataques contra alvos militares podem causar danos a não combatentes sem que isto seja considerado crime de guerra e o ataque é considerado desproporcional quando usa mais força do que o estimado necessário para neutralizar o alvo militar.
A desproporcionalidade se baseia, en tão, em critérios subjetivos (estimativas são sempre imprecisas), o que torna ri dícula a contabilização dos danos a civis em ambos os lados da guerra para provar uma suposta desproporcionalidade nos ataques militares.
Jornalismo hoje
O jornalismo, inclusive o brasileiro, pa rece estar evoluindo para um estágio no qual a única função das cabeças passará a ser a estética. Jornalistas divulgam falas de pessoas que produzem quantidades im pressionantes de mentiras, sem ousar mi nimamente contestar o seu entrevistado.
“Estamos aqui para divulgar versões e não para verificá-las”, parece ser o lema do jornalismo moderno. E com isto o jornalis mo vai se transformando numa irresponsá vel máquina de propaganda enganosa, vis to que o consumidor (talvez a vítima seja a denominação mais adequada neste caso) ainda imagina que o jornalismo usa algum filtro de veracidade no que divulga.
A população de Gaza dobrou nos últi mos 20 anos. Contudo, a “informação” que Israel estaria perpetrando genocídio no ter ritório ganha trânsito livre na imprensa que se limita a divulgar informações de fontes suspeitíssimas sem confrontá-las com os fatos. Haveria também um bloqueio inuma no contra Gaza, mas não se encontram ca sos de subnutrição ou de epidemia no ter ritório. Na mesma categoria se encontra a suposta limpeza étnica por parte de Israel, um país judaico onde um em cada cinco habitantes não é judeu, proporção que se mantém estável há dezenas de anos.
Ao divulgar de forma acrítica estas e ou tras tolices, o jornalismo desgasta volunta riamente a sua função de pilar da demo
cracia para se transformar em instrumen to de propaganda nas mãos daqueles que se dedicam a mentir da forma mais ousa damente descarada.
Dez em dez vezes estes mentirosos são ditaduras, assim que, com a sua atitude de mero propagador de qualquer tipo de infor mação, o jornalismo está se transformando num instrumento de fomento de ditaduras.
Os suspeitos de sempre
“Prendam os suspeitos de sempre” or dena o policial francês no final do clássico “Casablanca” – considerado um dos me lhores filmes de todos os tempos. O po licial sabia perfeitamente que as pessoas que mandou prender não têm nada a ver com o assassinato em questão, mas era preciso mostrar alguma atividade.
A realidade imita a ficção cada vez que alguém cita as colônias que Israel cons truiu na Cisjordânia como a causa da vio lência em Gaza. Pois, eis que o Hamas não tem o menor prurido em definir como “ocupação” todo o Estado de Israel e como “colônias” todas as suas cidades, de norte a sul. Quando o Hamas fala em “colônias” ele está se referindo a Tel Aviv e não a Ariel na Cisjordânia, como supõem os mais desavisados.
Já que o objetivo do Hamas é acabar com o Estado de Israel por inteiro, por que será que a situação específica do territó rio disputado desde 1967 é invocada cada vez que se fala no que Israel teria que ter feito para evitar o assalto perpetrado a par tir de Gaza? Ora, só pode ser pela mesma razão que o policial do filme manda pren der pessoas que ele sabe inocentes – para criar uma imagem.
Imagem que no caso do Oriente Mé dio é multifacetada. Por um lado existe a intenção (voluntária ou não) de negar que a única forma de neutralizar a ideologia niilista do Hamas é uma guerra que re sulte em sua destruição total, coisa que o mundo não deixa Israel travar na espe rança míope que o problema desapare ça por si só.
Por outro lado existe a insensata su posição que em qualquer disputa ambos os lados compartilham um pouco da ra zão e um pouco da culpa e como as co lônias são inegavelmente um trágico pas so em falso de Israel, elas são invocadas sempre que se sente a necessidade de contrabalancear alguma barbaridade per petrada pelos Palestinos.
As colônias não são o motivo do assal to do Hamas a Israel, mas elas entram no
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cenário para equilibrar o jogo, visto que o mundo democrático tem muita dificuldade em aceitar as intenções totalitárias e ge nocidas do Hamas, independentemente de todas as evidências e das desassombra das declarações deste grupo.
Conflito! Qual conflito?
Um conflito pressupõe que as partes nele engajadas disputem a mesma coisa. Nas relações internacionais, dois Estados almejando o direito de explorar com exclu sividade os mesmos recursos naturais ou a soberania sobre um mesmo território confi guram situações de conflito.
A disputa entre Israel e os Palestinos dificilmente se enquadra na definição aci ma. Até os acordos de Oslo em 1993 a OLP – entidade que representa todos os grupos Palestinos – não reconhecia Israel e não disputava nada com o Estado judai co. A OLP queria a destruição de Israel, o que não configura um conflito, visto que Israel não almejava a destruição dos Pa lestinos. Lembrando que o Estado Palesti no não foi formado em 1948 por decisão estratégica dos países árabes, endossada pelos palestinos.
A partir dos acordos de Oslo e da
aceitação pelas partes do conceito de “dois Estados para dois povos”, é possí vel falar num conflito, pois existem partes do território da Cisjordânia (Jerusalém e arredores e algumas áreas ao longo das fronteiras do cessar fogo de 1949) que são disputadas pelas partes. Existem ou tras questões em disputa, como o chama do “direito de retorno”, pelo qual os Pales tinos querem garantir o direito de poder viver em Israel (ou seja, querem que a so berania num território lhes franqueie o di reito de viver num outro). Algumas destas questões podem ser classificadas como um “conflito” e outras, tais como o “direi to de retorno”, não.
Contudo, existem grupos Palestinos como o Hamas e a Jihad Islâmica que, mesmo fazendo parte da OLP, continuam declarando abertamente que o seu objeti vo é a destruição total de Israel e não de formar um Estado Palestino ao lado de Is rael. Neste caso não estamos diante de um conflito e sim de um assalto, que é como deveria se classificar a situação onde um lado quer destruir o outro.
A relevância de classificar corretamen te o que é um conflito e o que é um assalto resulta do fato que num conflito é possível
negociar, ceder uma parte das demandas para chegar a uma solução de compromis so. Num assalto isto é impossível. Quando um dos lados quer a vida do outro não há negociação possível, pelo simples fato que não há o que ceder.
Há um cartum que resume com per feição a diferença entre o conflito e o as salto. O secretário de Estado Kerry está sentado numa mesa entre o Benjamin Ne taniahu e um personagem representando o Hamas. Kerry mostra a Netaniahu um papel onde se lê: “Demandas do Hamas: morte de todos os judeus do mundo” e pergunta: “Estas são as demandas dele, será que dá para você oferecer pelos me nos a metade?”
A insistência do mundo para que Israel ceda alguma coisa para conseguir segu rança advém da confusão que é feita entre conflito e assalto. Acredita-se em solução via negociações, pois se acredita na exis tência de um conflito, quando o que está acontecendo é um assalto.
Talvez as palavras mais corretas nem sejam “conflito” e “assalto”. Mas mesmo assim é preciso criar uma distinção entre estas duas realidades e urge passar a usar a terminologia correta.
Jcarillet /
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i srael: para ser um e stado
J udaico e democrático
p aulo Geiger
Na última edição de “Cócegas no raciocínio” analisamos a premissa de que Israel é, a partir do projeto sio nista moderno, um Estado judaico e de mocrático, e que nem conceitualmen te nem historicamente isso implica em contradição. Judaico no sentido de ‘Es tado nacional do povo judeu’, o Esta do-nação a que todos os povos têm di reito, e não no sentido de ‘o Estado da religião judaica’. Democrático no senti do de que, como todos os Estados na cionais de todos os povos, é também o Estado de todos os seus cidadãos, que gozam dos direitos de cidadania, dos plenos direitos humanos de opção religiosa, política, cultural.
Mencionamos a confusão inadverti da ou proposital que se faz em relação ao significado de ‘judaico’, atribuindo -lhe conotação religiosa, em parte devi do ao fato único de que no povo judeu se professa uma única religião, também chamada de ‘judaica’. Propusemos, e propomos nesta continuação, atribuir à religião o termo ‘mosaica’, apenas para diferençar os dois conceitos. Nesse as pecto, o Estado judaico teria uma maio ria mosaica, e minorias de outros povos e de outras religiões, como em quase todos os Estados democráticos.
Para completar essa análise, é pre ciso confrontar o conceito com a rea lidade atual, e visualizar de que manei ra, na prática, diante de todos os pro blemas reais que hoje Israel enfrenta,
o conceito de um Estado judaico e de mocrático se configure num fato inequí voco, em benefício do Estado, dos isra elenses e do povo judeu histórico, cujo Estado nacional é Israel.
Para isso seria necessário:
1) A definitiva aceitação de que Israel é o Estado nacional do povo judeu. Esclarecida a questão ‘termino lógica’, seria inconcebível que o povo judeu fosse um dos únicos povos no mundo ao qual seria negado um Esta do nacional. Um povo de quase 4.000 anos que se manteve como povo, e que mesmo durante 2.000 anos de disper são não deixou de ver o Retorno à sua pátria histórica como a sua redenção e a realização de seu destino. Mesmo que não se tenha de mobilizar todo o histórico de vulnerabilidade, massacres e a Shoá, o direito de autodetermina ção que a modernidade outorgou a to dos os povos seria o bastante. Incon cebível que, sob o pretexto da confu são com conceitos étnicos e religiosos, a liderança palestina, que reivindica um Estado palestino para o povo palestino, se recuse a aceitar a ideia de um Esta do judaico para o povo judeu. Lembran do que o povo árabe estabeleceu cer ca de quinze Estados nacionais árabes. O reconhecimento de um Estado na cional não viola os direitos das minorias de outros povos que nele vivam. Con tanto que seja um Estado democrático.
2) A separação entre religião e Es tado. A partir do entendimento de que isso não seria em detrimento do culto religioso, nem da religião mosaica nem de qualquer outra religião praticada no Estado. Os valores da religião mosai ca, suas tradições, o cumprimento de suas mitsvot, a comemoração de seus chaguim tornaram-se muito mais inten sos quando deixaram de ser centraliza dos numa entidade política ou religio sa, seja monárquica, seja sacerdotal. O Templo, arquétipo de um mosaísmo centralizado, ao deixar de existir trans formou-se em sinagogas próximas de cada judeu, em congregações, em co munidades, que se tornaram o territó rio da vivência religiosa dos judeus. A plena vida religiosa em Israel, a dos ju deus mosaicos, como a dos outros po vos e das outras religiões, não só não precisa da cúpula estatal, como sofre com esta ao perder a diversidade, a li berdade de expressão e de nível de de voção, que em toda religião pertence à decisão de indivíduos e comunidades, e não de governos e Estados.
3) Uma solução definitiva para o conflito com os palestinos. Evi dentemente, Israel não depende, nem pode depender, das decisões de ter ceiros para configurar seu caráter de Estado judaico e democrático. Mas as consequências de um conflito do qual é mais vítima do que causador (no sen
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cócegas no raciocínio
tido de que o conflito lhe foi imposto, há quase cem anos, pela intransigên cia árabe em não reconhecer o direi to do povo judeu a um pequeno Esta do-nação entre todos os Estados-na ção que os povos árabes estabelece riam na região) tornaram-se por sua vez a causa de radicalizações e complica ções de percurso que interferem na vi são consciente de um modelo de Esta do que reflita os ideais do sionismo mo derno: um Estado judaico integrado na região e no mundo. As consequências do conflito induzem às vezes a postu ras reativas às ameaças e riscos reais, quando é preciso construir um projeto proativo de futuro para o Estado judai co e democrático e não apenas garan tir sua sobrevivência ante essas amea ças reais. A solução do conflito é parte necessária e condição de Israel como Estado judaico e democrático.
4) O apaziguamento das tensões internas da sociedade israelense.
A separação entre Estado e religião e o fim do conflito com os palestinos de verão concorrer para o fortalecimento de uma sociedade que já é democrá tica, quando as liberdades individuais já existentes deixarão de ser pressio nadas por conflitos nacionais, sociais, econômicos ou religiosos. Isso signifi ca não somente que os cidadãos ára bes não serão mais o alvo da descon fiança quanto a suas lealdades e terão o lugar pleno que merecem ter como cidadãos do Estado, não somente que todas as religiões, inclusive as várias correntes do mosaísmo serão, em suas crenças, culturas e rituais, uma ques tão de escolha individual e não de po lítica de Estado, mas também que as prioridades do Estado judaico e demo crático se inspirem na visão de justi
ça social e equanimidade que é o apa nágio do povo judeu, de sua história e da visão de seus profetas, corrobora da pelo ideal original do sionismo mo derno, que visava não só a um lar na cional para o povo judeu, mas também sua integração total na região, no mun do e na humanidade.
5. Finalmente, que o Estado judaico e democrático continue a ser o Estado nacional do povo judeu onde quer que judeus se encontrem,
sem prejuízo dos direitos de todos os seus cidadãos não judeus, e sem pre juízo dos direitos de cidadania de que os judeus usufruem e da lealdade dos judeus como cidadãos dos países em que vivem. Que é, sem tirar nem pôr, a visão estratégica do sionismo, que le vou à criação do Estado de Israel. O Estado judaico e democrático de Israel não é uma utopia. Nunca foi como con ceito. Não será na prática se o ideal sio nista for retomado não só em sua es sência como também em seus fazeres.
Chris Gorgio
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