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Ricardo Gorodovits

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Jaime Barzellai

Jaime Barzellai

os seGredos do nome de deus

ricardo Gorodovits

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No dia 7 de junho de 1993, o cantor e compositor Prince anunciou em entrevista a mudança de seu nome. Ele decidira que a partir daquela data não atenderia mais pelo nome Prince (aliás, seu nome verdadeiro) e adotaria um nome impronunciável, associado a um símbolo, composto por uma mistura dos símbolos dos gêneros masculino e feminino, associado a um símbolo de alquimia. Se por um lado seus fãs e biógrafos associaram a mudança a um jogo de forças entre o músico e sua gravadora (o que se justifica pelo fato de que ao final do contrato com a mesma, em 2000, ele voltou a adotar seu nome original, mantendo o símbolo apenas como um logo), há outro aspecto nesta mudança que nos interessa em especial para este texto.

Não podendo chamá-lo pelo nome, a mídia passou a denominá-lo “o artista que anteriormente chamava-se Prince”, o que acabou reduzido apenas para “o artista”. Prince (e talvez sua equipe de marketing) certamente percebeu a força que a “impronunciabilidade” do seu novo nome trazia, carregando de mistério toda menção a ele, associando-o com a arte da forma mais ampla, como se ele passasse a ser não apenas um artista único, mas o único artista. Na ausência do nome, ampliavam-se as possibilidades de entendimento de quem ou o que ele era, sua representação visual por meio de um símbolo místico, dissociava sua arte dos limites da normalidade, das regras, lançava-o no universo do imaginário, do intangível.

Deslocando-nos do mundo da música para o da literatura, em 30 de junho de 1997, a Inglaterra foi invadida por uma febre que se espalharia pelos quatro cantos do mundo nos anos subsequentes. Naquela data foi lançado o primeiro dos sete livros que compõem a saga mágica de Harry PotNomear é, de certa forma, obter domínio, definir fronteiras, eliminar dúvidas. Se na atribuição de um nome paira a indefinição sobre a que se refere, o nome perde o sentido. Talvez por isso, em sua essência, Deus será sempre inominável.

Ao lado e páginas seguintes: a sinagoga e o cemitério judaico de Praga.

ter, de J. K. Rowling. Ao compor a história, a autora criou um personagem, que assume o papel de principal antagonista do jovem, cujo nome gera tanto medo e apreensão que simplesmente não deve ser pronunciado. Os leitores têm estimulada a imaginação, que busca criar a figura ao qual se associa “aquele cujo nome não se deve pronunciar”. Seu poder é tremendo, e sua busca por mais poder, insaciável. E como no início da história Lord Voldemort (oops) é dissociado de um corpo (ele precisa de outros corpos para efetivamente existir), toda a liberdade nos é dada para construir uma imagem para... “você sabe quem”.

Ao longo da novela, aprendemos que a simples menção ao seu nome pode ser identificada por seus seguidores, dando, portanto mais substância ao receio de nomeá-lo. Harry Potter, um dos poucos que não tem medo de falar Voldemort acaba, por isso mesmo, sendo encontrado e raptado pelos discípulos do grande e perverso líder. Está claro que, mesmo para o nosso herói, o nome a ser evitado é um gigantesco desafio, cuja presença pode permear todos os lugares, cuja força é quase ilimitada. Não poderiam existir dois personagens inomináveis: o “sem nome” é apenas um.

Não por acaso buscamos estes dois exemplos em que a importância do nome, ou melhor, de sua ausência, é alçada a um nível muito além do que atribuímos no cotidiano, já que neste, nomear coisas e pessoas é o caminho mais curto para entendê-las e para nos fazermos entender. Nomear é, de certa forma, obter domínio, definir fronteiras, eliminar dúvidas. Se na atribuição de um nome paira a indefinição sobre a que se refere, o nome perde o sentido. Talvez por isso, em sua essência, Deus será sempre inominável.

O autor Jared Diamond, em seu livro Armas, Germes e Aço, menciona um momento da história da humanidade em que o desenvolvimento humano dá um salto à frente, um momento em que o homem se afasta definitivamente da evolução associada exclusivamente ao processo da seleção natural, necessariamente lenta e gradual, e avança de forma célere para se transformar num ser que evolui pelo

Para alguns estudiosos, aprendizado, pela capacidade de transmio nome de Deus não deve ser retirado tir e acumular conhecimento, que conceitua e comunica o abstrato. No caminho desta evolução, o homo sapiens moderno dos céus para uso ganha consciência de si mesmo e sua finiterreno. Mas essa tude, torna-se capaz de perceber em seu busca por extrair o objeto de caça seres vivos como ele e idenuso no cotidiano pode tifica seu controle sobre vida e morte do outro. Neste momento, e provavelmente gerar uma percepção não antes disso, o homem descobre (ou em contradição com para alguns, cria) Deus. um valor fundamental No judaísmo, Deus é a força motriz judaico, de que Deus do mundo, criador e senhor do univerpermeia o mundo so, onipresente, onisciente e onipotente, cujas características estão todas além da inteiro. A presença nossa compreensão, definindo-se melhor da essência divina se pelo que não é do que pelo que é, já que dá não apenas nos o homem tem uma percepção que se limomentos da prática ou do estudo religioso, mas mita ao que lhe é conhecido, e portanto nomeável. Por isso, no judaísmo, Deus não deveria ter um nome e qualquer refaz parte da vida de ferência a Ele deveria persistir na lacuforma mais ampla. na da nomeação. Ao relacionar em nossas orações “Deus de Avraham, Deus de Itzchak, Deus de Yaacov”, o judaísmo reconhece as diferentes percepções de Deus, que como inspiração para o sagrado mantem-se distante de uma única e definitiva definição. Em Deus, portanto, convive o paradoxo de serem muitos, sendo um só. Sendo muitos, a criação menciona “Elohim”, tipicamente plural (em hebraico a terminação “im” representa, como norma, o plural para o gênero masculino). Mas dizemos no singular em nosso shacharit (reza matinal) de shabat “El adonai kol há maassim”, Deus que é senhor sobre todas as coisas. Diversas são as formas de se referir a Deus na Torá, no Tanach, em nossas fontes de forma geral. Estudos de nossos sábios vinculam o uso de cada denominação a um atributo divino, e muitos são os nomes usados em referência a Deus. De todos, porém, apenas um é considerado como nome, no sentido que usamos para nossos nomes próprios. É o nome formado pelo tetragrama yud, hei, vav, hei (יהוה). Curiosamente, no texto bíblico, Deus se autodenomina de forma distinta, na resposta dada a Moshé quando este pergunta, diante da sarça ardente, que nome Lhe de-

veria ser atribuído para comunicar aos filhos de Israel a missão da qual acabara de ser encarregado. Deus se apresenta como: Eheie Asher Eheie, ou, em seguida, simplesmente Eheie. A tradução direta, “Serei o que Serei” ou apenas “Serei”, nos indica claramente a preocupação em preservar o mistério e a intangibilidade de Deus, fundamento básico do judaísmo. Mas é da natureza humana buscar significados e a provocação do indefinido faz irresistível a tentativa de compreensão.

O caminho mais simples nos leva a perceber Deus como potência, que pode ser o que quiser, da forma mais ampla e completa, e assim sempre será. Também nos leva à onipresença, já que o mesmo verbo é usado para “ser” ou para “estar”. Também nos conduz para uma visão dinâmica de algo em eterna transformação, inalcançável, portanto, à mente humana.

Há também um significado implícito que me parece igualmente instigante. “Serei” como Me fizerem ser. “Serei” como quiserem que Eu seja. “Serei”

Evitar-se o nome de como Me permitirem ser. A potência se Deus no dia a dia é uma forma sutil de confináconcretiza num processo em que “Serei” a partir da imagem e semelhança, da parcela divina que há em cada ser humano. -Lo nas orações ou nos Deus intangível e inatingível se entrega textos, o que pode nos ao homem, à espera do que faremos Dele. induzir a ações que Mas voltando ao tetragrama, sua raiz fogem às regras de está associada ao verbo ser (que é também o verbo estar em hebraico), num conduta que o judaísmo tempo verbal hoje inexistente. Então tedefine como o caminho mos uma definição que deixa propositalcorreto. Se o nome de mente duas lacunas: um nome (ou uma Deus entrar em nosso definição) inexistente, de algo dissociadia a dia, buscaremos do do tempo e lugar. Deus é infinito, Ein Sof (sem fim). Ora, a existência no temdiuturnamente o po e a percepção do espaço são elemencomportamento ético tos profundamente humanos e ao dissoque justifique o milagre ciar Deus do tempo e espaço, distanciada centelha divina em cada um de nós. mo-nos de qualquer chance de antropomorfização, uma preocupação central no judaísmo. Deus está fora do escopo, da abrangência da capacidade de compreensão humana e, portanto, não pode ser nominado. Em síntese, Deus, no entendimento individual ou coletivo, será

Mariusz Switulski / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 33

sempre indefinível nas dimensões conhecidas, externo ao universo do que é nomeável, externo ao tempo. Se falamos de um Deus intangível, não poderia haver síntese melhor.

Possivelmente por isso a liturgia judaica optou, com o passar do tempo e em seu processo contínuo de mudança e evolução, por evitar pronunciar o tetragrama (ou o “nome de Deus”), o que se deu provavelmente de forma gradual. Sabe-se, por exemplo, que na celebração do Yom Kipur durante o período de existência do segundo templo em Jerusalém, o Cohen Gadol (Sumo Sacerdote) lia de forma completa e audível o “nome de Deus”, que, ao ser ouvido pelo povo do lado de fora, fazia com que todos se prostrassem com o rosto no chão. Este ritual é lembrado hoje num trecho de nossa liturgia (Avodá), durante o Mussaf de Yom Kipur.

É difícil localizar no tempo o momento exato em que toda menção oralizada ao tetragrama foi substituída pelo termo “Adonai” (Senhor), isso mesmo na leitura da Torá e em nossas orações, ou seja, mesmo nos contextos mais estritos de imersão na prática religiosa. Curiosamente, a menção escrita não foi alterada, ou seja, não se lê o que está escrito, mas “traduz-se” a sua leitura, criando-se um paradoxo, ou seja, a preservação do tetragrama escrito, mas não a sua oralidade, apesar de ambas serem capacidades humanas e darem margem à exposição pública do “nome”.

As demais referências a Deus persistiram sendo escritas e lidas normalmente, dando ainda maior peso ao tetragrama, atribuindo a essa nomenclatura um peso, uma sacralidade diferenciada. Com o passar do tempo, o judaísmo alijou o uso de todos estes nomes fora dos serviços religiosos, substituindo, por exemplo, “Elohim” por “Elokim” nas conversas mundanas. Como o tetragrama já não era pronunciado, mesmo em nossas orações, seu substituto “Adonai” foi substituído no uso corrente por “Há Shem”, “o nome”. Se esta substituição fez lembrar o leitor da referência a Prince por “o artista”, talvez não tenha sido mera coincidência.

Apesar do texto acima deixar clara a opinião de que a ampliação das restrições à nomeação de Deus tem origem

Com sua proibição, o na busca contínua do aprimoramento de nome de Deus torna-se mistério e passa conceitos essenciais do judaísmo, como a melhor internalização da intangibilidade de Deus e a fuga contínua à tentação de a ser foco de magia, antropomorfização divina, seja por seus para a atribuição de atributos ou ações, muitos outros moti-

“poderes mágicos” a vos se somaram a esta iniciativa, carreganquem tivesse o domínio do-a paradoxalmente de muitos elementos contrários àquela essência que se bussobre o Seu nome. Com cava preservar. Por isso, o movimento reisso, o homem submete formista questionou estas restrições, revero divino, obrigando-o a tendo a maioria delas, preservando apenas seguir seus desígnios. A o tetragrama como impronunciável. magia aniquila, portanto, A sacralização do “nome” é possivel mente o menos perceptível destes ele o belíssimo conceito mentos. Nosso decálogo expressa clarajudaico do homem a mente a proibição do uso do nome de serviço de Deus. Deus em vão (terceiro mandamento). A interpretação deste veto, porém, assumiu leituras variadas, uma delas, expressa por Maimônides, concluindo que o nome de Deus (ou simplesmente qualquer referência a Ele) não pode ser usado no dia a dia, deve ser sempre evitado no aspecto mundano de nossas vidas, ou, como traduzem alguns estudiosos, o nome de Deus não deve ser retirado dos céus para uso terreno. Essa busca por extrair o uso do nome de Deus do cotidiano, me parece, pode gerar uma percepção quanto a Deus em contradição com um valor fundamental judaico, de que Deus permeia o mundo inteiro. A presença da essência divina se dá não apenas nos momentos da prática ou do estudo religioso, mas faz parte da vida de forma mais ampla. Evitar-se o nome de Deus no dia a dia é uma forma sutil de confiná-Lo nas orações ou nos textos, o que pode nos induzir a ações que fogem totalmente às regras de conduta que o judaísmo define como o caminho correto. Isso, a meu ver, é exatamente o que se pretendia evitar ao proibir-se a utilização do Seu nome em vão: se o nome de Deus entrar em nosso dia a dia (e não apenas em nossos ritos), buscaremos diuturnamente o comportamento ético que justifique o milagre da centelha divina em cada um de nós. Talvez, porém, o aspecto mais grave gerado por este distanciamento do nome de Deus seja derivado da máxima: “Todo proibido é mistério, todo mistério seduz”. Com sua proibição, o nome de Deus torna-se mistério e passa a

ser foco de magia, para a atribuição de “poderes mágicos” a quem tivesse o domínio sobre o Seu nome. Desde os primórdios da humanidade o homem enfrenta sua impotência e limitações e, enquanto o judaísmo trata de orientá-lo quanto a como conviver com as mesmas em seu tempo e espaço, a magia promete ao homem deixar de exercer o livre arbítrio, passa a ser oferecida a chance de nunca optar, porque tudo pode, sempre pode. Com isso, o homem submete o divino, obrigando-o a seguir seus desígnios. A magia aniquila, portanto, o belíssimo conceito judaico do homem a serviço de Deus. Deus passa a ser seu escravo.

O exemplo mais conhecido que retrata este desvio reside no folclore judaico, e foi escrito com objetiva clareza (sem abrir mão da poesia) por I. L. Peretz em seu conto “O Golem”. Nele, narra a fábula que atribui ao Maharal de Praga (Rav Judah Loew bem Bezalel, que viveu no século XVI) ter criado, a partir de um ser moldado do barro, um monstro que defendeu o gueto contra a turba que buscava invadi-lo, dando-lhe vida após soprar em seu ouvido o nome de Deus. Em outras histórias de teor semelhante, o nome é escrito em sua testa ou colocado em sua boca. Em todas as versões, porém, é dado ao homem, por meio da magia trazida pelo domínio do nome divino, o poder de criar e controlar a vida.

O esforço de proteger o nome de Deus de uso indevido, portanto, acabou por gerar mais e mais distorções. O trecho do livro de Devarim (Deuteronômio), na parashá (leitura semanal da Torá) Reê, em que Deus ordena ao povo que destrua todo e qualquer vestígio associado aos deuses e ídolos locais, eliminando seus nomes dali, e a ordem que vem em seguida, de não fazer o mesmo com Deus, ao contrário, devendo-se preservar seu nome no lugar que Ele apontará, foi interpretado por alguns de forma absolutamente literal, gerando, portanto, a proibição de apagar-se o nome de Deus, ou, por extensão, qualquer de seus nomes ou designações. Mesmo em português, muitos chegam ao extremo de usar a palavra Deus grafada como D´us, para não correr o risco de, apagando-a, infringir a proibição (cada idioma adotou uma forma, por exemplo, em inglês costumam escrever G’d. Digno de nota é o esforço de alguns ultraortodoxos que, em sua corrida para serem ainda mais santos que os demais, escrevem D’s). Esse hábito faz parte do conjunto de “jeitinhos” que permeiam alguns hábitos judaicos, especialmente na ortodoxia, frutos de interpretações literais e/ou equivocadas ou até mesmo gerados a partir de mandamentos que na realidade não constam de quaisquer fontes judaicas.

O segredo do nome de Deus não está em sua grafia, pronúncia (aliás, a princípio desconhecida, já que o hebraico se escreve sem vogais e o termo não se preservou, já que era proibido pronunciá-lo), num poder que lhe seja inerente ou em qualquer mistério que lhe seja falsamente atribuído.

O segredo do nome de Deus se revela no quanto, ao deixar de repeti-lo, nos lembramos de Deus como fonte de inspiração para a vida, admirando e respeitando os infindáveis milagres da criação, nos propondo humildemente como reparadores do Universo, na obra persistente de Tikun Olam (literalmente, reparo do mundo, modo pelo qual o judaísmo vê a missão do homem, sua obrigação como parceiro de Deus na criação).

Ricardo Gorodovits é engenheiro, ex-boguer da Chazit Hanoar e ativista comunitário, especialmente na ARI.

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