Devarim 12 (ano 5 - Julho 2010)

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Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 5, n° 12, Julho de 2010 devarim devarim Elegendo a democracia Rabino Sérgio Margulies Cisjordânia, Israel e Diáspora Nathan Klabin e Yehuda Magid Constituição e democracia em Israel Marcelo Treistman Ética, religião e psicanálise Rabino Ruben Sternschein Ciência e religião: há contradição? Reportagem de Marina Lemle Yiddish Book Center: um resgate cultural Malena Chinski E mais: Cócegas no Raciocínio com Paulo Geiger, Cinema em Movimento com Nelson Hoineff e Pilpul discute a mezuzá Elegendo a democracia Rabino Sérgio Margulies Cisjordânia, Israel e Diáspora Nathan Klabin e Yehuda Magid Constituição e democracia em Israel Marcelo Treistman Ética, religião e psicanálise Rabino Ruben Sternschein Ciência e religião: há contradição? Reportagem de Marina Lemle Yiddish Book Center: um resgate cultural Malena Chinski E mais: Cócegas no Raciocínio com Paulo Geiger, Cinema em Movimento com Nelson Hoineff e Pilpul discute a mezuzá A comercialização da Cabala Edward Hoffman A Ortodoxia pluralista do Rabino Michael Melchior Entrevista a Gabriel Mordoch A comercialização da Cabala Edward Hoffman A Ortodoxia pluralista do Rabino Michael Melchior Entrevista a Gabriel Mordoch

Nós não morremos a mesma pessoa que nasce mos. Literalmente. Todas as células do nosso corpo são substituídas a cada dez anos apro ximadamente. Algumas são substituídas mais rapidamente, como as células dos intestinos, e outras de forma mais lenta, como as células nervosas e as ósseas.

Mas o fato é que somos quem somos não porque conser vamos o mesmo corpo, mas porque retemos na memória a consciência de unidade e de continuidade.

A renovação celular é parte do contínuo ciclo da vida. A célula jovem ocupa a função da que morre fazendo com que o corpo continue funcionando. Durante o processo de substituição, pequenas mudanças podem ocorrer nas novas células, permitindo que a espécie acumule, ao lon go dos tempos, as alterações que garantam sua adaptação às mudanças do meio que a cerca.

Quando ouvi esta exposição, feita por um querido ami go médico, me veio à mente o paralelo entre o processo de renovação biológico e o caminhar judaico.

Há pouquíssimas semelhanças entre o judaísmo prati cado na época do Rei David e a prática dos dias de hoje. O judaísmo evoluiu ao longo dos séculos, adaptando-se lenta e gradativamente às condições sociais na qual estava inserido. Da mesma forma como as células se renovam man tendo o corpo saudável, é a evolução que viabiliza a conti nuidade do corpo judaico.

Tal como os organismos vivos, os organismos culturais, dentre eles a religião, também participam do processo evo

lutivo. Adaptações do judaísmo fazem com que a religião continue servindo à humanidade, e não o contrário.

A memória permite criarmos a sensação de pertinência a um corpo. Podemos não viver como viviam os judeus nos tempos do Rei David, mas aspectos culturais do judaísmo, como história e religião, fazem com que sejamos intima mente relacionados com os judeus que viveram em épocas distantes, como numa centopeia infinita, na qual os pés traseiros vão caindo e novos dianteiros vão aparecendo.

O orgulho de ser pequena parte de uma centopeia in finita e de caminho tão belo é acompanhado da respon sabilidade que é sustentar seu peso e direcionar seu corpo nesse momento. O reflexo humano mais imediato nos leva a imitar o caminho que a centopeia já fez, pois é ter reno já trilhado e, portanto, conhecido. Mas isto é inútil quando a trilha do passado já não está mais lá, quando a floresta mudou muito.

Ancorados em sólidos conhecimentos e com a memó ria aguçada, devemos nos lembrar dos antepassados e per seguir seus (e nossos) princípios fundamentais, recriando o judaísmo todos os dias, de forma a mantê-lo saudável. Para que possamos ser mais um par de patas na mesma cento peia, temos que saber de onde viemos. Mas para que par ticipemos do processo evolutivo, devemos manter a cabe ça erguida e buscar sem preconceitos as soluções para as questões de hoje.

Evelyn Freier Milsztajn Presidente da ari
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editorial

Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 5, n° 12, Julho de 2010

P R es I dente d A ARI evelyn Freier Milsztajn

R A b I nos d A ARI sérgio R. Margulies dario e bialer

dIR eto R d A Rev I stA Raul Cesar Gottlieb

Conselho e d I to RIA l beatriz bach, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio R. Margulies e d I ção

Roney Cytrynowicz (editora narrativa Um) e d I ção de A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) Paola Nogueira • Tainá Nunes Costa

F oto GRAFIA s istockphoto.com Raul Cesar Gottlieb (capa)

Rev I são de t exto Mariangela Paganini

t RA d U ção Mariangela Paganini teresa Roth

Colaboraram neste número: edward hoffman, Gabriel Mordoch, Malena Chinski, Marcelo treistman, Marina lemle, nathan Klabin, nelson hoineff, Paulo Geiger, Rabino Ruben sternschein, Rabino sérgio R. Margulies e Yehuda Magid.

os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista devarim.

os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

A revista devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br devarim@arirj.com.br Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ biblioteca virtual devarim: www.docpro.com.br/devarim

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

sumário

Elegendo a democracia Rabino Sérgio R. Margulies 3

Ética, religião e psicanálise têm o mesmo sentido no judaísmo? Rabino Ruben Sternschein 8

A comercialização da Cabala: qual será o remédio? Edward Hoffman 14

Os caminhos de Israel e o papel da Diáspora Nathan Klabin e Yehuda Magid 20

Ciência e religião. Há contradição? Marina Lemle 26

A Ortodoxia pluralista e o pluralismo ortodoxo do Rabino Michael Melchior Gabriel Mordoch 34

Estado judeu democrático e a revolução constitucional: uma análise jurídica Marcelo Treistman................................................................................ 42

Yiddish Book Center: resgate e transmissão de uma herança esquecida Malena Chinski 48

Pilpul: Como valorizar o Pergaminho da Mezuzá? ...................... 54

Yellnikoff, Gopnik e a identidade on-line Nelson Hoineff 58

Cócegas no raciocínio Paulo Geiger 60

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elegendo a democracia

rabino sérgio r. margulies

Osse shalom bimromav hu iasse shalom aleinu vê-al kol Israel vê-al kol ioshvei tevel. Aquele que estabelece a paz nas alturas celestiais que derrame a paz sobre nós, todo o povo de Israel e todo habitante da Terra.

Milenarmente o judaísmo expressa em suas orações a vontade de moldar a realidade deste mundo com os ideais simbólicos das al turas celestiais. A missão é diminuir a distância entre os ideais e a realidade a fim de que a paz simbolicamente sob a guarda divina também encontre no ser humano um guardião.

Caminha o povo judeu entre o ideal e a realidade, entre o anseio milenar e o entendimento do momento, entre a preservação da sacralidade e a compreen são do profano. Caminha com as pernas no chão reconhecendo as vicissitu des da realidade, mas com as mãos para o céu no intento de abraçar os ideais. Caminha em peregrinação não porque se desloca de um lugar para outro, mas sim porque no lugar em que está almeja provocar o encontro entre o ideal e a realidade. Para quem? Para cada um de nós, para todo o povo de Israel e tam bém para o mundo inteiro.

A reza originalmente não menciona ‘‘todos os habitantes da Terra’’, mas a tradição judaica é aberta, criativa e vibrante. Fosse estratificada teria desapare cido. A tradição judaica é a marca do povo: está em movimento. Olha para o amanhã ao mesmo tempo em que resgata o ontem. Do ontem aprendemos o relato bíblico da criação de um único ser humano do qual somos todos igual mente descendentes. Preconiza o amanhã: a paz é para todos.

O fato de ser absoluto não isenta Deus de crítica, como fez já o primeiro hebreu, Abrahão. Todo e qualquer poder – independentemente de sua magnitude – está sujeito a crítica. Isto não enfraquece o poder, o fortalece desde que seja capaz de ouvir.

A partir da história do filósofo Baruch Spinoza, pode-se dizer que heresia é estigmatizar a continuada renovação da vida religiosa.

Foto: Raul Cesar Gottlieb
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A separação entre o poder secular e o poder religioso, que evita a teocracia, permitiu que o profeta Natan repreendesse o Rei David por usurpar do poder.

Eu sou o Eterno teu Deus que te tirei da terra do Egito (Torá – Shemot/Êxodo 20:2)

Com a lembrança da liberdade e do li bertador começam os dez mandamentos, corolário dos princípios éticos. A liberda de pressupõe tornar-se livre para realizar um propósito. Deste modo, a menção de Deus na liberdade nos direciona para san tificar a vida de cada ser humano, pois to dos são a imagem de Deus. No intento de alcançar este propósito ocorreu uma das primeiras eleições. Foi eleito – pelo elei tor divino – o povo judeu.

O paradigma se aplica às eleições rea lizadas sob princípios democráticos. Elas visam resgatar um ideal para implemen tá-lo neste mundo. Ser eleito não é ad quirir prerrogativas, não é ser imbuído de um status especial. A honra deve recair na mensagem e não no mensageiro.1 Ao mensageiro cabe a satisfação de servir e buscar valorizar a mensagem. Isto vale tanto para os que ocupam as tribunas quanto para os que ocu pam os púlpitos.

O pensamento rabínico preserva todas as opiniões, sejam majoritárias ou minoritárias. Tal como não há espaço para partido único no sistema político que prega a democracia, não há espaço para um único e exclusivo entendimento da prática religiosa numa comunidade que preza por sua vitalidade.

O texto bíblico relata que Rehavam/Roboão, filho do rei Shelomo/Salomão, ao assumir o poder, não considerou o alerta de tratar o povo com dignidade (Melachim alef/I Reis: 1-17). A consequência foi a cisão do reino. O ensi namento é contundente: não há margem para o poder ab soluto e indiscriminado. Por isto Deus também é chama do de melech, rei, pois é o único soberano atemporal e ab soluto. Ainda assim, o fato de ser absoluto não O isenta de crítica, como fez já o primeiro hebreu, Abrahão. Todo e qualquer poder – independentemente de sua magnitude – está sujeito a crítica. Isto não enfraquece o poder, o for talece desde que seja capaz de ouvir.

Desviam o caminho dos humildes (Tanach, Neviim/Pro fetas – Amós 2:7)

O profeta bíblico critica a outra forma de poder: a dos sacerdotes, líderes espirituais do povo judeu até a destrui ção do Templo em Jerusalém no início da era comum. Uma vez que sua função era transmitida hereditariamente,

o sacerdote estaria imune ao escrutínio da escolha e não necessariamente represen taria o povo. O término do sacerdócio –ainda que associado à destruição do tem plo e, portanto, marco triste de nossa his tória – foi uma oportunidade de renova ção e de democratização na vida religiosa. Nas palavras do rabino contemporâneo Jonathan Sacks: “Um triunfo de renova ção em meio à tragédia... [em que] cada judeu se torna um sacerdote”.2 Assim sur ge a liderança do rabino que é eleito por sua congregação. Diferentes congregações elegem diferentes rabinos. Não há a cen tralização do Templo [em Jerusalém]. A escolha de cada grupamento comunitário não anula a escolha de outro. São escolhas distintas fruto de anseios parcialmente di ferentes, mas todas legítimas. O pensamento rabínico preserva todas as opiniões, sejam majoritárias ou minoritárias. Tal como não há espaço para partido único no sistema político que prega a democracia, não há espaço para um único e exclu sivo entendimento da prática religiosa numa comunidade que preza por sua vitalidade. Por isso o judaísmo é plura lista. Todas as expressões do judaísmo em suas várias linhas e correntes são pluralistas. Ou ao menos deveriam ser. Se deixarem de ser pluralistas, deixarão de ser judaicas por que rechaçariam o outro.

Tanto uma opinião quanto a outra são palavras do Deus da vida (Talmud, tratado Eruvin 13b)

Não permitir que as diferenças – por mais gritantes que sejam – motivem a exclusão do outro tem sido um condutor do elemento pluralista judaico em que a unida de não é preservada pela uniformidade e sim pela diversi dade. A uniformidade enquadra o pensar, engessa o ques tionar e provoca o murchar da criatividade. A diversidade possibilita o expandir das ideias, incentiva o refletir e irriga a inventividade.

Em alguns momentos esta postura de respeito à di versidade foi posta em xeque. Os escritos de Maimônides (1135-1204) foram condenados por setores da comunida de que, de modo inacreditável, pediram para que fossem

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queimados pelas fogueiras inquisitórias. O movimento chassídico ao surgir no sé culo 18 na Europa Oriental foi execrado a ponto de ter sido falsamente acusado e delatado ao governo do czar russo hostil aos judeus. No entanto, as obras de Mai mônides tornaram-se referências para o estudo da Torá, filosofia e prática religio sa; e o movimento chassídico tem atua ção vibrante em comunidades nos quatro cantos do mundo.3

Heréticos, assim, não são Maimônides, nem os chassídicos ou mesmo Ba ruch Spinoza excomungado na Holan da no século 17. Heresia é estigmatizar a contínua renovação da vida religiosa, es quecendo que a prática de hoje já foi nova no ontem. Heresia é o fundamentalismo ao querer impor o conformismo. Heresia é o fundamenta lismo que anula ideias, concepções e expressões. O confor mismo serve ao poder absoluto. Ao domínio e à manipu lação das mentes tal como ambicionado pelas seitas e par tidos com pretensão totalitária.

Segundo o profeta, Deus dirigirá sua palavra ao ser humano na condição de pôr-se de pé, isto é, levantar-se, assumirse e valorizar-se. Isto implica em assumir responsabilidade pela sua vida, pela construção de seu próprio destino. Ao submisso que se agacha e se encolhe esta palavra não vem.

nalista Erich Fromm (1900-1980) afirma: “O autoritarismo na religião e ciên cia, e não menos na política, está sendo cada vez mais aceito não porque tantos acreditam nele, mas porque se sentem in dividualmente sem poder e ansiosos”.6 A sustentação do autoritarismo exige reti rar do indivíduo sua capacidade de pôrse em pé a fim de impedir que exerça es colhas e seja sujeito da vida.

Um líder não deve ser escolhido sem que a comunidade seja consultada (Talmud, tratado Berachot 55a)

O objetivo de uma seita é, eliminando o potencial de reflexão, incutir valores que induzem à aceitação automá tica e exaltada da liderança imposta.4 Ao contrário do líder eleito, a seita tem o guru. Ao invés do líder a ser esco lhido por suas virtudes o guru é seguido. O líder escolhi do tem discípulos, o guru tem seguidores.

Filho do homem, põe-te de pé e Eu te falarei (Tanach, Ne viim/Profetas-Ezequiel 2:1)

Segundo o profeta, Deus dirigirá sua palavra ao ser humano na condição de pôr-se de pé, isto é, levantar-se, assumir-se e valorizar-se. Ao submisso que se agacha e se encolhe esta palavra não vem. Não se trata tanto da palavra efetiva de Deus ou não, quanto do que se espera do ser humano: pôr-se sobre seus pés, caminhar e não se guir automaticamente, escolher e não se deixar levar. Isto implica em assumir responsabilidade pela sua vida, pela construção de seu próprio destino. Isto significa, sugere o filósofo Lévinas (1906-1995), ser sujeito de sua vida e não refém dela.5 Refém do autoritarismo que sequestra a chance de elegermos o destino de nossas vidas. O psica

Por que Moshé/Moisés, o líder que conduziu o povo hebreu da escravidão à liberdade, não entrou na Terra de Israel? Uma possível interpretação: para evitar o acúmulo de po deres. Assim, se num sistema democrático elegemos dife rentes ocupantes para os poderes executivo e legislativo, também na estrutura religiosa foi estabelecida uma sepa ração: a Ioshua/Josué da tribo de Efraim o poder político e a Aarão da tribo de Levi a liderança religiosa. Na contem porânea estrutura comunitária o modelo é seguido: a ins tância executiva política recai sobre leigos e a diretriz religiosa sobre rabinos. Ambos – leigos e rabinos – escolhidos através da consulta à comunidade.

No passado – conforme relato bíblico – esta separação permitiu que o rei fosse advertido ao usar indevida mente seu poder como a repreensão do profeta Natan à conduta do Rei David. A fim de satisfazer seu desejo de “possuir” uma mulher, o rei mandou eliminar a vida do marido dela.

(Shemuel beit/2 Samuel 12: 1-13). No presente, esta divisão evita a teocracia. A teocracia é uma forma de au toritarismo que apregoa ser inquestionável, pois aplicado em nome de Deus. No fundo, a teocracia quebra o precei to religioso de ‘‘não utilizar o nome de Deus em vão’’ ao usá-Lo para fins de domínio e controle. A teocracia rompe o pacto universal de Deus com a humanidade e somente valida os pactos particulares. A teocracia é contrária à pró pria mensagem divina ao ser transformada em forma de governo: enquanto o partido político representa parte, a mensagem divina em seu pacto universal, que abrange os

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particulares, não pode ser fragmentada para que um grupo governe outros.

Voltemos ao início: ‘‘Osse shalom – Aquele que esta belece a paz nas alturas celestiais que derrame a paz sobre nós...” A atuação religiosa almeja trazer para a realidade os valores que, na pureza de seu ideal, simbolicamente habi tam nas alturas celestiais. A teocracia atua de modo opos to: molda os ideais ao sabor da realidade. Perde, assim, o afã transformador que emana da religião. Faz com que a religião ao invés de buscar a transformação seja instrumen to de conformação.

A aflição e a religião prepararam os judeus para a demo cracia (Louis Brandeis, 1856-1941)

A aflição, entre outras, do faraó, do império babilôni co e romano, da inquisição, dos pogroms, dos nazistas, do império soviético e dos homens-bomba. Quando uma so ciedade solapa a dignidade da vida humana e ergue-se sob o ódio, a aflição recai sobre o povo judeu, seja por ser per

seguido, seja por temer ser perseguido. Ou por ver o outro perseguido.

Quando a vivência religiosa semeia o questionar, irri ga a responsabilidade da escolha e faz brotar a criatividade acaba colhendo uma vida comunitária plena. Então somos mobilizados a trazer um pequeno pedaço de céu para cada ser humano deste mundo em sua busca pela paz. Que para atingir este propósito seja eleita a própria democracia.

Notas

1. Konvitz, M., Judaism and Human Rights. Nova Iorque, B’nai B’rith, 1972.

2. Sacks, J., Uma letra da Torá. São Paulo, Editora Sefer, 2002.

3. Konvitz, M., op. cit

4. Fillaire, B., As seitas. São Paulo, Ed. Ática, 1997.

5. Derrida, J., Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004.

6. Angel, M., Losing the rat race winning at life. Jerusalém, Urim Publications, 2005.

Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union Colle ge (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

Uma interpretação pode sugerir que Moisés, o líder que conduziu o povo hebreu da escravidão à liberdade, não entrou na Terra de Israel para evi tar o acúmulo de poderes; na foto, o local que se acredita ser o Monte Sinai da Bíblia. Marcello Cedrola / iStockphoto.com
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Ética, religião e psicanálise têm o mesmo sentido no judaísmo?

O judaísmo não tenta ganhar adeptos. Não existiram missionários judeus nem poderiam existir. Há teorias de que em alguma época aconteceram atos proselitistas judaicos, mas trataria-se de uma exceção e de um desvio essencial, uma vez que o judaísmo não acredita que tudo o que é alheio seja errado por não ser judaico, e que os demais sejam pecadores.

As Cruzadas medievais são um exemplo do sofrimento, da guerra, dos abusos e despotis mos trazidos pelas religiões.

Uma das acusações mais tristes e ao mesmo tempo, talvez, mais certas contra as religiões diz que trouxeram os piores abusos, despotismos, sofrimentos e guerras. Se observarmos as guerras e matanças das Cruzadas e da Inquisição cristãs, as lutas entre hinduísmo e budismo no extremo oriente e nos caminhos entre China e Índia, as guerras sangrentas en tre religiões e tribos africanas, entre sunitas e xiitas no Islã do Oriente Médio, as perseguições religiosas no Irã e no Talibã do Afeganistão, o mero conceito de jihad ou guerra santa no Islã em geral, não podemos negar a base empírica e histórica de tal acusação.

No entanto, não é possível atribuir nenhum desses horrores ao judaísmo. Isso deve-se a vários princípios básicos do judaísmo, que justamente impedem qualquer tipo de prática dessa índole. Mais ainda: os princípios básicos do ju daísmo são essencialmente contrários a elas. Nomearemos quatro que achamos mais centrais e desenvolveremos principalmente um deles.

Particularismo

O judaísmo não é universalista, ou seja, não acredita que sua prática deva ser uma prática universal. O judaísmo é particularista e, portanto, acredita que sua tradição é o compromisso particular dos judeus com a vida, com Deus, com a história, com os valores. Podem existir outros compromissos de outros povos e outras formas de expressar os mesmos valores. Quem quiser unir-se ao

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caminho judeu pode fazê-lo, mas quem não o fizer não é um pecador por defini ção. Não está fazendo nada mal. Não pre cisa ser salvo ou purificado através do ju daísmo. Assim é que Maimônides acre ditava que Aristóteles contribuía ao bem do mundo tanto quanto ele próprio, sem precisar das mitzvot. Isto não quer dizer que o judaísmo se opõe ao princípio uni versal de Kant.1 Os judeus não se opõem a que outros adotem o judaísmo, mas não pregam que seja obrigatório como único caminho universal.

Antiproselitismo

O conceito de santidade, que nos faz similares a Deus, expressa-se na Torá através da prática da ética mesma. Parecer-se com Deus, segundo esse texto básico da ética judaica, é ser mais humano com os humanos. A prática da melhor humanidade é a que nos aproxima da divindade.

O judaísmo não tenta ganhar adep tos. Não existiram missionários judeus nem poderiam existir. Há teorias de que em alguma época aconteceram atos proselitistas judaicos2, mas, além de não ter provas contundentes, trataria-se de uma exceção e de um desvio essencial, uma vez que o judaísmo não acredita que tudo o que é alheio seja errado por não ser judaico3, e que os demais sejam pecadores. O judaísmo não tem nenhuma demanda dos não judeus4 e, portanto, não tentará mu dá-los por nenhum meio.

Pluralismo

O judaísmo, por tudo isso, é essencialmente pluralis ta. No mínimo, respeita os demais povos e as demais tra dições culturais e religiosas. Existem, sim, casos de intole rância interna entre judeus, geralmente por parte da orto doxia, que pretende, como seu nome o indica, estabelecer que apenas seu caminho é certo. Existem tendências, nos últimos séculos, que supõem que maior intolerância é sinal de maior verdade e autenticidade. Aquele que faz questão de declarar que não come na casa daquele outro e que não entra naquela sinagoga é erradamente considerado por al guns poucos como mais leal a princípios ou a alguma tradição. Sabemos que a intransigência é irrelevante do ponto de vista lógico e, respeitado o grau de verdade de seu con teúdo, é errada do ponto de vista do judaísmo mais tradi cional e obviamente do ponto de vista do judaísmo mais liberal. A Mishná, no século terceiro, marcou a importân

cia teológica e haláchica da controvérsia e da diversidade com o princípio de Elu veelu divrei elohim chaim, ou seja, umas e outras são as palavras do Deus vivente. Os sábios estavam discutindo a apli cação de uma lei da Torá. Haviam princi palmente duas opiniões, a do Hilel e a do Shamai. Segundo o relato, uma voz (fe minina, por sinal) saiu do céu (identifica da com o próprio Deus), que sentenciou aquela frase. Ou seja: a palavra divina é ampla, diversa, complexa e contém ver dades múltiplas. Para serem reveladas pre cisam da diversidade de enfoques. Mes mo acreditando numa divindade só, o ju daísmo insiste na pluralidade de seu con teúdo, que exige pluralidade de leituras e aplicações. A revelação não acabou. Continua constantemente nas próprias leituras e interpretações e aplicações diversas. O pluralismo é a ferramenta imprescindível, es tabelecida pelo próprio Deus para continuar sua revelação através dos homens. Mais ainda: o próprio Deus se auto define nessa expressão como vivente. Vivente apenas atra vés dessa diversidade. Para que a divindade tenha vitalida de precisa da diversidade humana. Só assim se revela a di vindade na sua essência diversa.

Mistura essencial de ética e religiosidade

Nas mitzvot

No judaísmo, a ética e a religiosidade misturam-se es sencialmente numa profundidade extrema. O judaísmo não acredita que é possível servir a Deus apenas na sina goga e através dos rituais. É bem sabido que existem pre ceitos que vinculam o homem com o homem e não ape nas preceitos que vinculam o homem com Deus. O que não é tão sabido é que talvez a maior virtude dessa classificação é sua imprecisão. É muito difícil achar apenas uma mitzvá que consiga ficar só numa das duas categorias e não na outra. Por exemplo, a mitzvá mais religiosa, que parece mais puramente limitada ao terreno homem – Deus, a reza, é feita em plural, num espaço público, junto a vá rias pessoas, com um texto destinado a unir a todas. Pre sentes e ausentes, vivos, mortos e aqueles que ainda não nasceram. Ou seja, a reza é também um marco humano,

3 Recordação turística muito comum da cidade de Toledo, Espanha, com motivos judaicos e muçulmanos, representando a convivência histórica entre Cristianismo, Islamismo e Judaísmo.

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precisa de referenciais humanos. Por outro lado, a tzedaká, que poderia ser um exemplo de preceito ético exclusivamen te, que poderia vincular apenas o homem com o homem e não com Deus, é orde nada e fiscalizada pelo próprio Deus. Os preceitos que unem o homem com Deus unem também o homem com o homem. E vice-versa. A ética mistura-se com a teo logia. A teologia com a ética.

Na Torá

A parashá kedoshim, que apresenta o conceito religioso de santidade, estabele ce que o homem deve procurar sua própria santidade porque Deus é santo, só que para fazê-lo precisa principalmente ter uma conduta ética que inclui: pagar salários dignos e em dia, não odiar, não guardar rancor nem se vingar, não apro veitar as fraquezas do próximo, não ficar passivo perante o sofrimento do próximo e amá-lo como a nós mesmos. Ou seja, o conceito de san tidade, que nos faz similares a Deus, expressa-se na Torá através da prática da ética mesma. Parecer-se com Deus, segundo esse texto básico da ética judaica, é ser mais hu mano com os humanos. A prática da melhor humanidade é a que nos aproxima da divindade. O texto que pretende falar da religiosidade através da santidade estabelece a ética como caminho principal!

É precisamente o judaísmo liberal que retomou a ênfase ética do judaísmo ao focar o conceito de tikun olam. Por meio dele a pessoa reconhece seu comprometimento em melhorar o mundo através de uma responsabilidade social, que começa com um comprometimento total com o bem, que começa com um trabalho profundo e sincero com a personalidade.

da com a Torá mesma! Parece que foram sinônimos ou, no mínimo, que fosse o as pecto principal da Torá, aquele que o pai transmite ao filho.5 Parece o resumo ou o sinônimo da palavra educação ou trans missão. Aliás, a raiz da palavra mussar é a mesma que a raiz do verbo transmitir e dos substantivos tradição e transmissão.

Nos profetas

Mais tarde, os profetas disseram que nenhuma ativida de ritual tem sentido religioso enquanto o indivíduo e a sociedade na qual vive forem insensíveis ao sofrimento e à injustiça. Amós, Isaias, Oséas, Miquéas e Malaquias di zem que Deus afirma detestar os rituais que ficam apenas no templo, ao invés de representar a atitude reta e bondo sa na vida real, fora do templo.

Na linguagem e nos ketuvim

A palavra “ética”, de origem grega, é usada também no hebraico moderno, mas existe uma outra palavra de origem bíblica, também usada para o bem e a moral: mussar. Ela aparece principalmente no livro dos provérbios, equipara

Na filosofia judaica medieval Assim foi que a partir da Idade Média desenvolveu-se o conceito de mussar, de modo que reuniu não apenas a ética práti ca com a religiosidade, mas também com a autopsicanálise. A ética passou a ser uma disciplina que não apenas se manifesta na prática do bem, mas que representa uma ferramenta de autoconhecimento. É por meio do mussar que a pessoa se conhece em seu interior, se autoavalia, dialoga com ela própria e pratica uma psicanálise de si mesmo. O último capítulo do primeiro livro de filosofia Emunot veDeot, de Saadia Gaon, foi de dicado ao trabalho individual com as forças e as fraquezas da personalidade, a fim de purificá-la em prol de uma ética saudável. Só assim é que segundo o autor a pessoa atingi ria o maior bem. Depois veio o Livro dos Deveres do Cora ção, no qual Bachyei Ibn Pakuda no século 11 marcou no vas mitzvot. Segundo ele, além de todas as mitzvot conhecidas, às quais chamou os deveres dos órgãos físicos, exis tem outras, muito mais profundas e importantes, destina das exclusivamente a purificar eticamente a personalidade para que assim se atinja a maior espiritualidade. Esses são os deveres do coração. A sucá, a chalá, o kidush e a reza mesma, uma vez que são praticadas com os órgãos físicos, são preceitos primários, básicos. Os que vêm depois são os que mexem com a pessoa mesma, com sua personalidade, e acabam transformando-a profundamente. Esses precei tos não contêm nenhum ritual físico externo. Chamam-se deveres do coração e trabalham exclusivamente o espírito da pessoa através do bem. Uns cem anos depois, Maimô nides também dedicou o último capítulo de seu livro de filosofia, More Nevuchim, ao resumo e à conclusão do caminho que leva, segundo ele, a imitar Deus: polir a perso nalidade ética, para atingir maior religiosidade.

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Na modernidade

Nos começos da modernidade, na ultraortodoxia de senvolveu-se o movimento mussar na figura do Rabino Is rael Salant, que levou ao universo das yeshivot o dever de trabalhar a personalidade íntima como único caminho es piritual para praticar o bem e se aproximar de Deus. No entanto, nos nossos dias testemunhamos um judaísmo or todoxo focado nos rituais físicos externos, nas formas mais superficiais. Como se a meta final do judaísmo fosse a forma da sucá, o tipo de ramo que a cobre, as gramas de mat zá que devemos comer no Seder e a ordem na qual deve mos acender as velas de Chanucá.

A ênfase no acolhimento do estrangeiro é diferente em Sucot e do contato direto com a natureza, a ênfase da li berdade de preconceitos no pensamento e na emoção a ser trabalhada em Pessach e a ênfase na luz da autodetermina ção a ser desenvolvida em Chanucá, foram recolhidas pelo judaísmo liberal.

É precisamente o judaísmo liberal que retomou a ên fase ética do judaísmo ao focar o conceito de tikun olam. Por meio dele a pessoa reconhece seu comprometimen to em melhorar o mundo através de uma responsabili dade social, que começa com um comprometimento total com o bem, que começa com um trabalho profundo e sincero com a personalidade. Foi Netzer olami, o movi mento juvenil judeu liberal, que escolheu divulgar o ob jetivo de tikun olam através de tikun há chevrá (reparo da sociedade), tikun hakehilá (reparo da comunidade), tikun

hamishpachá (reparo da família) e tikun atzmi (reparo da individualidade).

Religião que prega ética interpessoal, que precisa de au topsicanálise para atingir a maior espiritualidade. Isso é as pirar a imitar Deus.

A verdadeira e mais profunda religiosidade judaica, se gundo todo esse desenvolvimento que começou na pa rashá kedoshim, continuou nos deveres do coração e hoje no tikun olam talvez explique científica e antropologica mente porque temos uma religião que nunca trouxe aque les horrores. Mais ainda, uma religião que sempre se opo rá a eles, lutará contra eles e promoverá o contrário: a vida, o bem e a necessidade da diversidade.

Ruben Sternschein é rabino ordenado pelo Hebrew Union Colle ge e serve à Congregação Israelita Paulista (CIP).

Notas

1. Segundo o filósofo da ética Immanuel Kant, o bem de uma norma ou de um prin cípio depende da medida em que pode ser aplicado por todo mundo. Podemos afirmar que nosso princípio é bom uma vez que estamos dispostos a que seja ado tado por todo mundo, que todos vivam como nós e atuem como nós, que se com portem conosco segundo nossos parâmetros de conduta.

2. A teoria se baseia numa interpretação totalmente marginal do salmo 118 segundo a qual uma possível vingança é insinuada contra quem persegue o judeu.

3. Na ultraortodoxia dos últimos dois séculos existem referências negativas ao alheio ao judaísmo criticadas duramente pela ampla maioria das linhas majoritárias. Al gumas delas baseiam-se em frases talmúdicas e medievais sobre a função dos de mais povos na história educativa e de purificação dos judeus.

4. Existem apenas sete mitzvot dos filhos de Noé que incluem principalmente não matar, evitar o sofrimento dos animais e a idolatria, ou seja, a maioria absoluta das pessoas de nossa era cumprem com eles mesmo sem sabê-lo.

5. Ver, por exemplo, Provérbios 1:8.

Diferentemente de outras religiões, o judaísmo não é universalista, ou seja, não acredita que sua prática deva ser uma prática universal. George Clerk / iStockphoto.com
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a c omercialização da c abala: qual será o rem É dio?

No mundo moderno, até muito recentemente, a Cabala não passava de um elemento obscuro e esquecido dentro do judaísmo, conheci do quase que exclusivamente por estudiosos eruditos e por isolados grupos chassídicos. Para a maioria dos judeus europeus, norte e sulamericanos a Cabala praticamente não era reconhecida como parte da tradição judaica, e certamente não era tida como algo a ser honrado ou admirado. Des de aproximadamente 1870, e em quase todo o mundo, os judeus cosmopolitas associaram a Cabala a especulações fora de moda e até a crenças tolas. Esta foi a visão dominante por 120 anos.

Mas tudo isto mudou muito rápido. Espantosamente, no espaço de uma única geração, a Cabala tornou-se uma palavra familiar nos Estados Unidos, na Europa Ocidental e na América do Sul, incluindo o Brasil, é claro. Hoje em dia, quase todos os não judeus instruídos, assim como os judeus, sabem que a Caba la é uma tradição mística muito antiga do judaísmo, e que floresceu em todos os continentes habitados. Hoje, como nunca antes na era industrial, milhões de pessoas têm consciência deste sistema esotérico tão caro ao judaísmo.

Será que os judeus comprometidos devem celebrar esta mudança? Na qua lidade de judeu norte-americano, psicólogo e professor que há quase 30 anos vem escrevendo livros sobre Cabala e espiritualidade, minha resposta é: ainda não. Porque, como dizemos em inglês: “Ter apenas um pequeno conhecimen to pode ser muito perigoso”. Ou seja, a vasta maioria daqueles milhões de pes soas conhece quase nada à respeito do verdadeiro misticismo judaico. Muitos têm uma perspectiva super simplificada e até mesmo enganosa, por exemplo,

Muitos têm uma perspectiva super simplificada e até mesmo enganosa, por exemplo, associando quase que completamente a Cabala com magia e numerologia; sua poderosa sabedoria espiritual e ética é desconhecida pela maior parte destas pessoas.

7 A Cabala é uma tradição mística muito antiga do judaísmo e que floresceu em todos os continentes habitados; hoje, como nunca antes na era industrial, milhões de pessoas têm consciência deste sistema esotérico tão caro ao judaísmo.

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associando quase que completamente a Cabala com magia e numerologia; sua poderosa sabedoria espiritual e ética é desconhecida pela maior parte destas pessoas.

Por vários motivos esta situação se deve ao que eu cha mo de mercantilização global da Cabala nos últimos anos. Em outras palavras, de uma maneira totalmente inconsis tente com os ensinamentos e o estudo da Torá, indivíduos e organizações em muitos países vêm tentando colocar a Ca bala no “mercado” como um produto de consumo atraen te – repleto do formato mercadológico contemporâneo, tal como endossado por celebridades de Hollywood, belas em balagens de itens simples e multifacetadas fontes de lucro. O objetivo deste marketing? Enriquecer. E, para conster nação de muitos judeus comprometidos, esta estratégia de negócios tem se mostrado muito bem sucedida.

Como isto aconteceu? E o que podemos fazer para re mediar esta situação? Para responder completamente à pri meira pergunta seria preciso mais espaço do que os limi tes deste artigo permitem, porque teríamos que explorar os altos e baixos da história judaica durante os últimos 500 anos. Além disso, a resposta nos levaria a dimensões com plexas da sociologia da religião ocidental de modo geral. Embora sem dúvida mais urgente, a segunda pergunta é mais fácil de abordar. Examinemos uma de cada vez.

Por que de repente a Cabala ganhou esta imensa fas cinação em nossa época de alta tecnologia? Surgem clara mente três razões principais. Primeiro, creio eu, os horro res da Segunda Guerra Mundial, incluindo os campos de extermínio nazistas e o uso da bomba atômica convence-

ram muitas pessoas inteligentes que não era possível con fiar na ciência para guiar moral e eticamente a humanida de. Por exemplo, o fato de que médicos e cientistas ale mães entusiasticamente uniram-se ao esforço nazista para aniquilar os judeus e outros grupos “inimigos” demonstra com toda clareza que ter instrução universitária não ga rante moralidade ou senso humanitário. Mais amplamente, a posição filosófica conhecida como “cientismo” (isto é, transformar a ciência em uma quase religião) ficou clara mente insustentável depois da Segunda Guerra Mundial.

Depois de Auschwitz, só um tolo seria capaz de conti nuar argumentando que médicos e cientistas são dotados de sabedoria e moralidade superiores por causa de sua ins trução universitária. Como resultado, sistemas espirituais milenares, como o judaísmo, deixaram de parecer tão irre levantes aos pensamentos modernos. De fato, pensadores humanísticos brilhantes da era pós Segunda Guerra Mun dial, como Martin Buber, Erich Fromm, Abraham Mas low, Rollo May e Viktor Grankl, insistiram em que du rante milênios a religião levantou questões vitais que po dem ser legitimamente recolocadas de forma contemporânea, tais como: “Qual é a essência da natureza humana?”, “Como os seres humanos podem realizar o seu potencial total?”, “Qual é a melhor sociedade?” e “Qual é o signifi cado da vida humana?”

O filósofo judeu alemão Martin Buber, buscando ins piração no antigo Chassidismo, ajudou a disseminar a centelha do interesse no pensamento chassídico. Suas ver sões poéticas de histórias chassídicas clássicas (Contos dos

Pensadores humanísticos brilhantes da era pós Segunda Guerra Mundial insistiram em que durante milênios a religião levantou questões vitais como: “Qual é a essência da natureza humana?” e “Qual é o significado da vida humana?”

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Chassidim, Histórias do Rabbi Nachman) e suas interpretações inspiradoras da fi losofia chassídica (O Chassidismo e o Ho mem Moderno; Eu e Tu) levaram muitas pessoas instruídas, inclusive não judeus, a explorar a Cabala, que era a base teoló gica do antigo Chassidismo. Para Buber, homens e mulheres do mundo ocidental moderno têm muito a ganhar a partir da ênfase chassídica na alegria e na profun da troca interpessoal como essência da vida humana.

Em segundo lugar, o final da década de 1960 e a década de 1970 testemunha ram um imenso crescimento do interesse nas formas orientais de religião e espiri tualidade, sobretudo em aspectos viven ciais tais como a meditação e os estados mais elevados de consciência. Dentro dos Estados Unidos e na Europa Ocidental este interesse foi largamente liga do ao que veio a ser conhecido como contracultura, que também abarca outros valores não convencionais, a saber o anticonsumismo, a vida comunitária, a ecologia e o plan tio orgânico. Inicialmente foram as tradições mais antigas, como a ioga, o zen-budismo e o taoísmo que dividiram o centro das atenções, depois o sufismo e as formas de espi ritualidade dos nativos norte-americanos (os índios).

Havia um vácuo para a espiritualidade autêntica, e é muito compreensível que a Cabala ficasse disponível para preenchê-lo. Não nos surpreende que suas deslumbrantes imagens poéticas, bem como seu inspirador retrato da existência humana, se tornassem rapidamente cativantes.

no misticismo a partir de um ponto de vista científico respeitável, e este interesse deve ser visto como pano de fundo para o subsequente crescimento do interesse mundial pela Cabala. Certamente estes fascinantes trabalhos contribuíram para espicaçar as minhas tentativas de expli car as perspectivas psicológicas da Cabala – objetivo este que resultou no meu res peitado livro The Way of Splendor: Jewish Mysticism and Modern Psychology, publi cado em 1981. Até onde sei, esta foi a pri meira obra escrita por um psicólogo for mado a apresentar os ensinamentos bá sicos da Cabala no contexto dos escritos modernos sobre a personalidade huma na e seu potencial, conforme formulado por Sigmund Freud, William James, Carl Jung, Abraham Maslow e outros. The Way of Splendor ra pidamente conquistou grande popularidade internacional, chamando a atenção de psicólogos, psiquiatras e terapeu tas para a Cabala. Muitas destas pessoas não tinham qual quer identidade religiosa, mas reconheciam a capacidade excitante da Cabala para o trabalho terapêutico.

Durante a década de 70 um grande número de livros escritos por psicólogos e filósofos ajudaram a aumentar o interesse pelo caminho oriental. Eles argumentavam que as tradições espirituais antigas continham enorme conhe cimento da personalidade humana, do crescimento inter no, do bem-estar e por isso mereciam ser seriamente estu dadas. Por exemplo, o best-seller norte-americano The Re laxation Response1 , escrito por um respeitado psiquiatra de Harvard, insistia em que a meditação traz eficazes benefí cios para a saúde de todos. O livro dele aumentou muito a atenção que as comunidades médicas e psicológicas davam às disciplinas do Extremo Oriente. De maneira semelhante outro atraente best-seller norte-americano, The Tao of Phy sics2, sustentava que o taoísmo, assim como outros sistemas de pensamento do Extremo Oriente, ofereciam grandes vi sões sobre a natureza do cosmos – e, de certa maneira, até previam as mais novas descobertas da física quântica.

Livros como estes aceleraram o interesse da população

Finalmente, creio que a Cabala ressurgiu de maneira tão significativa precisamente devido ao vazio espiritual que muitos judeus e não judeus sentiam dentro de suas si nagogas e igrejas. Em países ricos como os Estados Uni dos, estas instituições construíram edifícios externamente vastos e grandiosos, mas internamente tediosos e sem vida. Ofereciam muito pouco que tivesse a ver com experiên cias religiosas ou estudos sagrados, e sim prédicas enfado nhas e grupos de oração sem nenhuma paixão e intensida de. Não é nenhuma coincidência que milhões de pessoas passassem a procurar inspiração em outro lugar, porque, como o Sefer HaZohar (Livro do Esplendor) espertamen te declarou há mais de 700 anos, “a alma humana precisa tanto de alimento quanto o corpo”.

Em outras palavras, havia um vácuo para a espirituali dade autêntica, e é muito compreensível que a Cabala fi casse disponível para preenchê-lo. Não nos surpreende que suas deslumbrantes imagens poéticas, bem como seu ins pirador retrato da existência humana se tornassem rapidamente cativantes. O nosso desafio, enquanto judeus com prometidos, não é tentar fazer com que mais uma vez a

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De uma maneira totalmente inconsistente com os ensinamentos e o estudo da Torá, indivíduos e organizações em muitos países vêm tentando colocar a Cabala no “mercado” como um produto de consumo atraente, repleto do formato mercadológico contemporâneo.

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Cabala desapareça da civilização moderna – objetivo este ao qual eu certamente me oporia – e sim minimizar o mercan tilismo e a distorção que a cercam. Será possível? Com toda certeza. Como será possível? Seguem-se algumas recomenda ções específicas:

1. É preciso ensinar a Cabala como parte integrante da história e teologia judaicas. Devido à influência nociva do historiador judeu alemão Heinrich Gra etz, no século 19, a maior parte dos rabi nos e eruditos reformistas e conservado res passaram a acreditar que a Cabala não é parte autêntica do judaísmo. No entan to, como os estudos de Gershom Scho lem demonstraram mais tarde, já na nos sa época, o ponto de vista anterior estava completamen te errado. Agora está cristalinamente claro que muitos dos maiores pensadores rabínicos do judaísmo escreveram ex tensamente sobre trabalhos esotéricos como, por exem plo, o Sefer HaZohar (O Livro do Esplendor) do século 13. No entanto, muitos rabinos não ortodoxos e educadores judaicos ainda não confiam no conceito de estudar e en sinar a Cabala dado o resíduo da influência de Graetz. O mesmo acontece na comunidade ortodoxa, onde rabinos e professores também evitam disseminar a Cabala, mas por razões diferentes.

O nosso desafio, enquanto judeus comprometidos, não é tentar fazer com que mais uma vez a Cabala desapareça da civilização moderna –objetivo este ao qual eu certamente me oporia – e sim minimizar o mercantilismo e a distorção que a cercam. Será possível? Com toda certeza.

culo 18, basearam-se fortemente na Ca bala para demonstrar como nossos atos, pensamentos e nossas palavras individuais impactam o mundo espiritual à nossa vol ta. Recentemente lancei uma nova anto logia, The Kabbalah Reader, com o obje tivo de ajudar a demonstrar que a Cabala e os ditames éticos estão intimamente li gados no judaísmo há séculos. A ética ju daica está entre os aspectos mais belos e profundos da nossa tradição, e o seu elo com a Cabala precisa ser enfatizado nos dias de hoje.

3. Finalmente, precisamos demons trar que, na verdade, a Cabala proporcio na um sistema comprovado pelo tempo para o crescimento interior ao invés de ferramentas mágicas para o enriquecimento, o status so cial ou as posses materiais. Quanto mais claramente pu dermos apresentar os ideais lúcidos da Cabala e suas práticas para o autodesenvolvimento – tais como melhorar a disciplina emocional, aprimorar a força de vontade e a in tencionalidade (kavaná) e viver cada dia com mais alegria e senso de propósito (tikun) – tanto mais o público em ge ral vai perceber como são vulgares e grosseiros os “marque teiros da Cabala”.

Esta situação precisa mudar. Precisamos publicar mais livros que demonstrem que as práticas e os conceitos místi cos sempre floresceram no judaísmo, até mesmo em obras aparentemente não místicas como o Talmud e os escritos de Maimônides. Quanto mais pudermos fazer isto tanto menos será possível para indivíduos e grupos interesseiros vender a Cabala como seu “produto” exclusivo.

2. Ao ensinarmos a Cabala precisamos enfatizar a sua dimensão ética. Chega a ser irônico que hoje este compo nente ético seja tão amplamente ignorado, pois historica mente sempre foi vital para a energia e o charme do ju daísmo místico. Por exemplo, obras cabalísticas veneradas como Tomer Devorah (A Palmeira de Débora), de Rabbi Moses Cordovero no século 16, e Derech Hashem (O Ca minho de Deus), de Rabbi Moses Chaim Luzzatto no sé

Enquanto judeus comprometidos não podemos nos manter passivos diante da comercialização generalizada desta grande faceta de nossa religião. Mas por sorte a pas sividade nunca foi uma característica da personalidade ju daica. Se tomarmos a iniciativa energicamente, e enfatizar mos tudo o que a Cabala tem de profundo, inspirador e duradouro, teremos encontrado a melhor maneira de ven cer aqueles que distorcem a sua verdadeira essência.

Notas do tradutor

1. Não traduzido para o português

2. Traduzido para o português e editado em 2000 pela editora Cultrix sob o título O Tao da Física

Edward Hoffman é doutor e professor associado adjunto de psi cologia na Yeshiva University de Nova Iorque. Escreveu muitos li vros sobre psicologia e judaísmo e recentemente veio ao Brasil e proferiu palestras. Seu livro A Sabedoria de Carl Jung está tradu zido para o português.

Traduzido por Teresa Roth

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o s camin H os de i srael e o papel da d iáspora

Convencionalmente, a disputa entre Israel e os palestinos é vista como um “jogo de soma zero”. Em essência, esse “jogo” significa que um dos jogadores só pode ganhar às custas das perdas do outro. Ao se avaliar os benefícios para a sociedade israelense de algumas das suas empreitadas mais polêmicas, vemos que ambos os jogadores só têm perdido.

7 Cada vez mais a população de Israel tem se perguntado: Será que estou disposto a pagar pelos custos exorbitantes dos assentamentos? Será que estou disposto a pagar para que nossas tropas protejam três famílias em Nablus, cujos filhos provavelmente nem mesmo servirão no exército?

Um grupo de sete jovens foi destinado a proteger três pequenas fa mílias judias que compunham a totalidade da população de um as sentamento israelense em Nablus. Durante uma dessas noites duras do inverno israelense, em uma das rondas, o sargento deixa escapar sua insatisfação com o nobre dever a ele dado. Ele comenta com um de seus comandados que havia mais soldados defendendo o assentamento do que pes soas vivendo nele.

A história não é exatamente engraçada, mas é verdadeira. Ela nos faz pensar no custo para a sociedade israelense em defender assentamentos como aquele. Poderíamos dizer, também, no custo pessoal para aqueles soldados, mas em Is rael os custos pessoais para a manutenção da sociedade já não são mais tão va lorizados. Talvez seja por causa da dúvida generalizada sobre as prioridades para as quais são direcionados os benefícios gerados pelos custos pessoais.

Na recente crise que abateu Israel, ao decidir incluir lugares da Cisjordânia na lista de lugares do Patrimônio Cultural Nacional, o foco das lentes interna cionais novamente mirou na política de assentamento israelense. Mais uma vez, Israel foi alvo de críticas, a maioria delas injustas e com bases antissemitas.

No entanto, alguns grupos dentro de Israel e na Diáspora têm sido capazes de ajudar Israel a emergir cada vez mais forte dessas crises. Como isso tem acontecido?

Convencionalmente, a disputa entre Israel e os palestinos é vista como um “jogo de soma zero”. Em essência, esse “jogo” significa que um dos jogadores só pode ganhar às custas das perdas do outro. Porém, se reavaliarmos a situação,

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veremos que o “jogo” já não é mais esse. Ao se avaliar os benefícios para a sociedade israelense de algumas das suas empreitadas mais polêmicas, vemos que ambos os jogado res só têm perdido.

Primeiro, os que já estavam perdendo com a lógica an tiga e que continuam perdendo. Para os palestinos é in quietante a presença de tropas israelenses. Ela alimenta nos seus imaginários a possibilidade de serem expulsos de suas casas e de terem sua mobilidade limitada.

E agora, os israelenses, que a princípio ganhavam com o “jogo” antigo, mas que, uma avaliação inteligente indica que, na verdade, também estão perdendo. Os custos eco nômicos para a manutenção constante de proteção e as vi das perdidas desnecessariamente são apenas as perdas ini ciais. Mas esses são apenas os custos que nós impomos a nós mesmos. Devemos pensar também nos custos que as lentes internacionais causam e, com elas, as chances dadas para que a imagem de Israel seja distorcida por ideias an tissemitas e que constituem uma ameaça tanto para os ju deus em Israel como para os que estão na Diáspora.

Os antissemitas sempre encontrarão uma forma de ex pressar seu ódio infundado. Basta ver, por exemplo, a en xurrada antissemita que surgiu para criticar o fantástico hospital que Israel construiu no Haiti após o trágico terremoto que destruiu esse país. Não devemos deixar de fa zer nada por causa de medo dos antissemitas, uma vez que eles nunca abandonarão seu ódio irracional. Porém, se ria um benefício para nós mesmos se não déssemos a eles o substrato necessário para expressarem esse ódio de mais uma forma.

Os custos econômicos para os palestinos da Cisjordâ nia já se tornaram uma realidade aceita na sociedade isra elense. O que é mais difícil, no entanto, é reconhecer os custos econômicos que certos assentamentos causam para Israel. Enquanto os gastos do Ministério da Educação so freram um corte de 4.8 bilhões de shekels entre 2001 e 2009 e a taxa de desemprego se encontra ao redor de 8% da população economicamente ativa, o primeiro-ministro Netanyahu decidiu redesenhar o “Mapa de Priorida des Nacionais” para incluir assentamentos na Cisjordânia.

Os custos econômicos para os palestinos da Cisjordânia já se tornaram uma realidade aceita na sociedade israelense. O que é mais difícil, no en tanto, é reconhecer os custos econômicos que certos assentamentos causam para Israel. Joel Carillet / iStockphoto.com
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Essa decisão demandou que 4,5 bilhões de shekels adicionais fossem destinados para a estruturação desses assentamentos. Ou seja, os custos destinados para assen tamentos seriam muito bem-vindos em melhoramentos na educação. Cumpre avaliar o que é mais importante para o nosso futuro: morar em Hebron ou o de senvolvimento da nossa juventude?

Nós todos, tanto na Diáspora quanto em Israel, já nos acostumamos a lidar com a variedade enorme de problemas neces sários para preservar nossa herança cultu ral e existência. Problemas que vão desde a segurança até o meio ambiente, passando por educação, assimilação, desempre go e direitos humanos.

Entretanto, estar acostumados não sig nifica não fazer nada para resolvê-los! Faz parte da essência judaica trabalhar para melhorar a realidade. Não apenas abran dar os problemas do mundo, mas princi palmente tentar resolvê-los com soluções autossustentáveis a longo prazo. Não po demos jamais nos render à ideia de que “não há nada que eu possa fazer”. Entre tanto, infelizmente a maioria de nós ain da não quer considerar seriamente as soluções, apesar de já sabermos quais elas são.

Israel dedica aproximadamente 9% do seu gasto público para a população dos assentamentos, que, por sua vez, constitui menos de 4% da população total. Além disso, dos 15% do orçamento nacional destinado para segurança, 15% são destinados para proteção de assentamentos na Cisjordânia. Cada vez mais a população de Israel tem se perguntado: será que estou disposto a pagar pelos custos desses assentamentos?

filhos para escolas públicas inadequadas enquanto o dinheiro necessário para me lhorá-las está sendo enviado para a cons trução de escolas nos assentamentos? Será que estou disposto a pagar os custos exor bitantes para que nossas tropas tenham que proteger três famílias em Nablus, cujos filhos provavelmente nem mesmo servirão no exército?” Por mais simples que essas perguntas sejam, elas têm sido ignoradas por muitos de nós.

Israel dedica aproximadamente 9% do seu gasto pú blico para a população dos assentamentos, que, por sua vez, constitui menos de 4% da população total. Além dis so, dos 15% do orçamento nacional destinado para segu rança, 15% são destinados para proteção de assentamentos na Cisjordânia. Isso sem contar com os gastos despropor cionais que os diversos ministérios precisam destinar para os assentamentos. Por causa desses gastos econômicos ex cessivos e por causa da exposição internacional que garan te aos antissemitas de plantão a oportunidade de atacar os judeus do mundo inteiro, devemos fazer uma reavaliação das nossas prioridades e de quais são as formas autossus tentáveis de apoiar Israel.

Cada vez mais a população de Israel tem se perguntado “será que estou disposto a pagar pelos custos desses assentamentos? Será que estou disposto a mandar meus

No entanto, o vínculo emocional que muitos sentem por um pedaço de terra cria uma imagem mais complicada do que uma análise econômica pode indi car. Para alguns, esse vínculo emocional tem base no nacionalismo, para outros tem base religiosa e para outros, algum lugar intermediário entre o nacionalismo e a religião. Porém, não importa por qual razão, o fato é que retirar assentamentos judaicos na Cisjordânia cria um conflito em muitos de nós. Mas, mesmo assim, para que Israel possa crescer economicamente e como uma democracia, devemos evoluir com algumas das nossas emoções para que elas deixem de ser impulsos que nos fragilizam e se tornem ideias sólidas e racionais que nos fortalecem. Nossas decisões precisam se basear em in teresses a longo prazo que garantam tanto nossa existência física como nossa herança cultural. Não podemos nos tor nar reféns de impulsos emocionais e muito menos de ati tudes religiosas particulares.

Muitos de nós argumentam que continuar a presença militar na Cisjordânia é essencial para a segurança de Israel. Para concordar com isso não é preciso muito. Basta conhecer minimamente Israel. A necessidade de capturar terroristas que se escondem em cidades e vilas palestinas é inquestionável. Porém, o que é questionável, e muito, é como assentamentos israelenses contribuem com esta ne cessidade. Enquanto o fim da presença militar na Cisjor dânia não corresponde a uma possível solução autossus tentável, uma reavaliação dos assentamentos na Cisjordâ nia permitiria melhor distribuição de recursos dentro do Estado de Israel.

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A recente decisão de Netanyahu de incluir o Túmulo dos Patriarcas e de Ra chel, localizados em Hebron e Bethlem, na lista de Patrimônio Nacional de Isra el ilustra o esforço do governo israelen se em fortalecer sua presença na Cisjor dânia. A decisão tomada pelo primeiroministro é complexa e mais complexos ainda seus resultados. Porém, ela é facil mente justificada se alguém quiser obser var esse “jogo” como um de soma zero. Uma perspectiva prejudicial e reacioná ria. Precisamos entender que fazer a con cessão de pedaços de terra como Hebron não é o mesmo que permitir um novo Holocausto. Não bastaria garantir no fu turo acordo de paz o direito de visita de todos os judeus aos sítios históricos localizados dentro do Estado dos palestinos?

Precisamos entender que fazer a concessão de pedaços de terra como Hebron não é o mesmo que permitir um novo Holocausto. Não bastaria garantir no futuro acordo de paz o direito de visita de todos os judeus aos sítios históricos localizados dentro do Estado dos palestinos?

te, fazendo-o sair de um jogo onde todos estão perdendo para um jogo onde todos saem ganhando.

O papel da Diáspora não deve ser menor do que o dos judeus em Israel. Ao longo desses 62 anos de existência do Es tado de Israel, a Diáspora tem sido essencial para a renovação das forças israelen ses. Não se trata apenas de doações e in vestimentos materiais. Trata-se de algo muito maior. Trata-se do poder das ideias novas, que criam soluções não apenas para Israel, mas também para o mundo e, com isso, revelam sua essência de líder entre as nações.

Reavaliar a necessidade de assentamentos não é apenas mais uma opção da esquerda em Israel. É um ponto essen cial e que pode mudar a equação do conflito drasticamen

No Brasil, especificamente, o cami nho para contribuirmos para a mudança da equação desse jogo não é fácil. O principal problema no Brasil, quando colocado em comparação com outras comunidades judaicas, é a assimilação. Não gostamos de assumir isso, principalmente nossas instituições, pois isso significa assumir que não estamos sendo capazes de fazer

Para os palestinos é inquietante a presença de tropas israelenses. Ela alimenta nos seus imaginários a possibilidade de serem expulsos de suas casas e de terem sua mobilidade limitada. Na foto, vilarejo palestino próximo à cidade de Bethlehem, na Cisjordânia.

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nosso trabalho como deveríamos. No entanto, a solução está em duas medidas aparentemente simples: melhorar a educação judaica para criar líderes melhores e reformar nossas formas de organização para que as ideias dos novos líderes possam florescer. Com bases fortes, nossa comuni dade será mais eficiente, a assimilação diminuirá substan cialmente e seremos capazes de melhor representar os vín culos entre Israel e Brasil, ajudando a diminuir o antisse mitismo no mundo.

Como podemos ver, ainda há um longo caminho a ser percorrido, tanto na nossa comunidade no Brasil quanto em Israel. No Brasil, novas instituições estão batalhando para diminuir a assimilação e canalizar novas ideias que de outra forma seriam perdidas. Esse é o caso, por exemplo, do Hillel. Em Israel, a recente decisão de paralisar a construção de assentamentos por dez meses, apesar de insufi ciente, aponta para a direção correta. Entretanto, demos um passo para frente e dois para trás quando foram adi cionados os Túmulos dos Patriarcas e de Rachel para a lis ta de Patrimônios Nacionais de Israel.

Já chegou a hora de nós todos agirmos, não apenas para o benefício de Israel, mas também dos palestinos, e parar mos com a expansão de assentamentos na Cisjordânia de finitivamente. Não se trata de simplesmente abandonar todos os territórios conquistados depois de 1948. Jerusa lém, por exemplo, deve continuar sendo nossa capital, úni ca e eterna. Porém, devemos nos perguntar qual é o be nefício de termos todos os territórios de Jerusalém Orien tal. O benefício econômico que Israel terá é apenas a pon ta do iceberg. Os benefícios para todos, judeus e não ju deus, são incalculáveis e talvez só mensuráveis por unida des de “leite e mel”.

Nathan Klabin é graduado em Relações Internacionais pela PUCRio e atualmente cursa o Mestrado em Governança e Diplomacia na IDC, Herzlyia.

Yehuda Magid é formado em Ciências Políticas pela Universidade de Indiana, serviu no exército israelense no Batalhão de Forças Es peciais da Brigada Nahal e atualmente cursa o Mestrado em Gover nança e Diplomacia na IDC, Herzlyia.

Os custos destinados para assentamentos seriam muito bem-vindos em melhoramentos na educação. Cumpre avaliar o que é mais importante para o nosso futuro: morar em Hebron ou o desenvolvimento da nossa juventude? Howard Sandler / iStockphoto.com
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c iência e religião. Há contradição?

Cientistas discutem se as abordagens são excludentes ou simplesmente diferentes em seus princípios, meios e fins

marina lemle

Vaichulu. E foi concluída a criação dos céus e da terra e de tudo que contêm. Tendo concluído sua obra, no sétimo dia Deus descansou. Cantamos isso todo santo Shabat, em euforia. E no domingo, visi tamos a exposição de Darwin e nos gratificamos por saber que a vida evolui e que a natureza prossegue em obras. Contradição? Esquizofrenia? Ou há espaço para a ciência e a religião na mesma pessoa, na mesma sociedade?

Essa discussão permeia o último livro do físico Marcelo Gleiser, Criação Im perfeita – Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza, leitura imprescindível a quem tende a esse tipo de questionamento.

No capítulo “Fé”, Gleiser relata os resultados de uma pesquisa feita pela Fundação Pew com 35 mil pessoas nos Estados Unidos e publicada em 2008. Segundo o estudo, 92% dos entrevistados acreditam em Deus ou num espírito universal. “Vivemos num mundo onde o conceito de uma divindade sobrena tural é muito presente. Os incríveis avanços científicos dos últimos quatro sé culos não criaram grandes mudanças no número de fiéis”, resume.

Por outro lado, uma corrente de pensadores vem deflagrando uma “guerra” contra a religião, tachada como um delírio coletivo causador de caos no mundo desde os primórdios da civilização. Segundo Gleiser, que é professor da Universidade de Dartmouth, em Hanover, EUA, o grupo prega um ateísmo radical, usando uma retórica tão agressiva, inflamada e intolerante quanto a do funda mentalismo religioso que se propõe combater.

Para o físico, ridicularizar a necessidade humana da fé é demonstrar pro funda ignorância ou indiferença pelo que passa nos corações e mentes de bi

To see a world in a grain of sand, And a heaven in a wild flower, Hold infinity in the palm of your hand, And eternity in an hour.

Ver um mundo num grão de areia E um céu numa flor selvagem Segurar o infinito na palma da mão E a eternidade numa hora.

7 Grandes defensores do pensamento racional, ao refletirem sobre os mistérios da existência, já deixaram escapar um viés místico. “A matemática é o alfabeto no qual Deus escreveu o universo”, disse Galileu Galilei.

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lhões de pessoas. Ele reflete sobre a célebre frase de Karl Marx, “A religião é o ópio do povo”: “Se a intenção é ti rar o ópio do povo, é bom oferecer outro tipo de ópio. O que o ateísmo oferece – mesmo com todo o seu apelo à razão e à lógica da ciência – não vai funcionar, ao menos como costuma ser apresentado, sem qualquer vestígio de espiritualidade.”

Gleiser inclui-se como objeto da análise: “O que ins pira a minha espiritualidade é uma ligação profunda que sinto com a natureza, é uma celebração da vida”. Segun do ele, a fé brota da dificuldade de lidar com o imprevis to e o que está além do nosso controle ou compreensão. “A ciência tem limites, assim como a sua prática e quem a pratica”, diz.

Convergência

Muitos cientistas foram e são inspirados por mitolo gias, como os pitagóricos, que acreditavam que os núme ros eram a essência da natureza e que os homens, com preendendo e interpretando as relações entre os números, poderiam decifrar o código oculto da natureza.

Grandes defensores do pensamento racional, ao refle

tirem sobre os mistérios da existência, já deixaram escapar um viés místico. “A matemática é o alfabeto no qual Deus escreveu o universo”, disse Galileu Galilei, católico con denado pela Inquisição por defender que a Terra não era o centro do Universo. “O Senhor não joga dados”, disse Einstein, judeu que se autodenominou “um descrente pro fundamente religioso”.

Einstein usava a palavra Deus para referir-se à nature za. “Para mim, é suficiente contemplar o mistério da vida consciente perpetuando-se por toda a eternidade e refletir sobre a maravilhosa estrutura do Universo, que podemos apenas vislumbrar”.

Para Isaac Newton, o “espírito” poderia ser a causa de todo movimento na natureza, incluindo o poder de movi mentar o nosso corpo de acordo com o nosso pensamento e o mesmo poder em outras criaturas vivas, embora não saibamos como isso se dá e por quais leis. “Não podemos dizer que toda a natureza não seja viva”, afirmou Newton, cristão anglicano.

No início dos anos 70, o físico Fritjof Capra dedicou-se a buscar paralelos entre a física quântica e religiões orien tais, como o hinduísmo, o budismo e o taoísmo, resul tando nos best-sellers O Tao da Física e O Ponto de Muta

Para o célebre linguista Noam Chomsky, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), os “textos sagrados” não devem ser tomados como verdades históricas, e sim avaliados pela métrica de qual quer pronunciamento moral. Concen trado em desvendar os mistérios da linguagem, e com entrevistas marca das até setembro, Chomsky respon deu, sucintamente, as perguntas en viadas por e-mail.

Em sua opinião, existe contradição en tre ciência e religião? Por quê? Depende de se a religião afirma estar

dizendo verdades a respeito do mun do empírico. Se assim for, as afirma ções precisam obedecer aos padrões da ciência.

O fato de a ciência explicar ou invia bilizar determinadas passagens bíbli cas (ou de outros livros sagrados) tira o seu valor enquanto ensinamento mo ral ou espiritual?

Depende de como esses textos são compreendidos. Se forem tomados como verdades históricas (por exem plo, o Êxodo para o Egito) serão dados como falsos pela arqueologia (como nesse caso). Caso contrário, precisam

ser avaliados pela métrica de qualquer pronunciamento moral.

Como o senhor vê a manipulação da vida em laboratório?

Se você se refere à criação de vida em laboratório, então já estamos pratica mente fazendo isso atualmente. Traz riscos, que deveriam ser cuidadosa mente estudados e controlados.

Há algum fenômeno da natureza que lhe faça pensar em milagre?

Não “milagroso”, mas misterioso. Mas isto tem sido quase um truismo desde Newton.

“se tomados como verdades históricas, serão dados como falsos”
ent R ev I stA C o M no AM C ho M s KY
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ção. Para Capra, o conceito holístico do tao espelha a “dança cósmica” e outros pa drões da natureza revelados nos fractais e na teoria do caos, em que a complexida de e o dinamismo dos inúmeros fatores de interação levam à instabilidade, resultan do no aparente “acaso”.

Diferentes, não excludentes

Enquanto uns buscam afinidades en tre ciência e religião, outros enfatizam as diferenças. O físico nuclear e teólogo Ian Graeme Barbour observa, em seu livro Religião e Ciência, de 1997, que, enquanto a religião parece subjetiva, particular, emotiva, baseada em tradições e autori dades, a ciência é vista como objetiva, universal, racional e baseada em dados observacionais sólidos. Ele detecta qua tro posicionamentos principais acerca da relação entre as duas: conflito, independência, diálogo e integração.

De acordo com Roseli Fischmann, a ciência, objetiva, é voltada para a busca constante da verdade material, e sabe que não atingirá esta verdade de forma definitiva. A religião, ao contrário, advém da adesão a uma verdade inefável, a que a fé atribui caráter absoluto, e se dá no íntimo do indivíduo.

bas as formas de pensar sejam totalmen te independentes e autônomas, cada uma com seu próprio método e domínio, jus tificados em seus próprios termos. Nessa perspectiva, Barbour, que leciona no Carleton College, em Minesotta, EUA, defende que a Bíblia seja levada a sério, mas não literalmente, já que seus autores tinham limitações de interpretação e in fluências culturais como qualquer ser hu mano.

O historiador judeu Edgard Leite também não vê uma contradição propria mente dita entre ciência e religião, na me dida em que a ciência – a aproximação ra cional ao mundo – é uma forma de en tender as coisas, e a religião – aproxima ção subjetiva – é outra.

A tese do conflito seria a mais popular por ser a mais fácil de entender. Para evitá-los, Barbour sugere que am

“Em princípio, a ciência busca uma infinita aproxima ção à verdade, ao funcionamento do ser e das coisas, mes mo que esse processo nunca tenha fim. Isso significa que muito daquilo que a religião possa depreender, de forma subjetiva, pode, em algum momento, ser objeto de investi

Zsolt Biczó / iStockphoto.com

gação e explicação científica, mesmo que transitória”, explica Leite, que é professor da Uerj e da UniRio.

Por outro lado, ele acrescenta que exis tem coisas para as quais não há instru mentos ou métodos científicos disponí veis para investigação, e para as quais a re ligião tem alguma explicação:

“A única forma de acessar tais ques tões ou problemas é pela via religiosa. Um cientista pode optar ou não por se aproxi mar delas por este meio e, numa socieda de laica como a nossa, tais explicações re ligiosas são livres e pessoais. Elas podem, no entanto, através da poesia, da arte ou da mística, solucionar muitos dos impas ses que porventura os indivíduos tenham com relação a elas. E podem conviver har moniosamente com a dimensão científica e racional do mundo”.

Leite ressalta, entretanto, que, do pon to de vista histórico, o desenvolvimento da ciência e o seu amadurecimento teórico e metodoló gico só foi possível pela deposição dos religiosos das posi ções que antes ocupavam nas universidades e nos centros de pesquisa.

“Em princípio, a ciência busca uma infinita aproximação à verdade, ao funcionamento do ser e das coisas, mesmo que esse processo nunca tenha fim. Isso significa que muito daquilo que a religião possa depreender, de forma subjetiva, pode, em algum momento, ser objeto de investigação e explicação científica, mesmo que transitória” (Edgard Leite).

“Um cientista pode ter uma fé pro funda”, garante Roseli, que considera a si mesma “uma pessoa de fé”. “Criei meus filhos na fé judaica, com profunda vin culação religiosa, filosófica e ética. Mas o que sustento no nível espiritual não mani festo no campo público acadêmico, onde preciso oferecer argumentos objetivos e universais”, explica.

Em comum, a seu ver, a ciência e a fé têm a liberdade de consciência. “Um cientista tem liberdade na escolha de fa zer ou não uma pesquisa, ou dirigi-la para um lado ou para outro, de acordo com seus valores. É essa questão do foro ínti mo que une as duas”, diz.

“Na medida em que a religião foi deposta do papel que antes ocupava, e ela ocupava esse papel de forma discri cionária e violenta, e se tornou uma experiência pessoal, desvinculada do poder político de Estado, ela teve chan ce de se transformar numa experiência mais suave, sem maiores ambições. Mas isso não quer dizer que não conti nue a ser, muitas vezes, irracional e hostil ao conhecimen to”, pondera.

Para a educadora Roseli Fischmann, o conflito históri co milenar entre ciência e religião tem a ver com questões de poder: “Não há contradição, mas uma disputa de poder no plano do espaço público. É complexo. A ciência, de pendente do permanente debate, é própria do espaço pú blico, enquanto a religião é própria do espaço privado”.

De acordo com Roseli, a ciência, objetiva, é voltada para a busca constante da verdade material, e sabe que não atin girá esta verdade de forma definitiva. A religião, ao contrário, advém da adesão a uma verdade inefável, a que a fé atri bui caráter absoluto, e se dá no íntimo do indivíduo.

Doutora em Filosofia da Educação pela USP, onde leciona desde 1975, e coordenadora do Núcleo de Educação em Direitos Humanos da Universidade Me todista de São Paulo, Roseli defende que não haja ensino religioso obrigatório nas escolas públicas. Além do risco de se passar conteúdo reli gioso como se fosse ciência, os professores poderiam deixar de lado a transmissão de princípios éticos e de respon sabilidade. Ela também vê com desconfiança o conteú do ensinado “em nome do ecumenismo”. “Isso abre por tas para que os professores passem conceitos pessoais, que não têm eco nem na sociedade nem na legislação brasilei ra. É uma forma de plantar preconceitos e pode desenvol ver uma disposição psicológica para a discriminação. Mi nha luta pelo Estado laico é pela liberdade de crença ou de culto”, esclarece.

Deus na base e no topo Muitos cientistas se definem como “agnósticos”, o que é diferente de “ateu” – aquele que recusa a existência de um Deus. O agnóstico – “sem conhecimento” – admite sua ir remediável ignorância sobre o que está além da sua capaci dade de compreensão. É preciso levar em conta ainda que pode haver mais cientistas religiosos do que se imagina, que se mantêm discretos em sua fé para evitar preconcei to por parte de pares, que poderiam considerar suas cren ças incompatíveis com o pensar científico.

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E o que é pensar cientificamente? A pergunta foi feita a estudantes e cientistas de diversos níveis de carreira no Brasil e em países do primeiro mundo numa pes quisa liderada pelo bioquímico Leopoldo De Meis, da UFRJ, em 1989. Os cientis tas em início de carreira demonstraram uma preocupação acentuada com fatores lógicos, racionais e metodológicos. Pala vras como intuição, criatividade, natureza e universo foram raras em suas respostas.

“Vivemos num mundo onde o conceito de uma divindade sobrenatural é muito presente. Os avanços científicos dos últimos quatro séculos não criaram grandes mudanças no número de fiéis” (Marcelo Gleiser).

Já os pesquisadores de alto nível, no Brasil e fora, relacionaram a ciência à li berdade criadora, à intuição e a fatores cósmicos que aproximaram, mais ou menos explicitamente, de Deus. Os pesqui sadores ressaltam uma curiosidade: esses fatores também estão presentes em maior porcentagem nos estudantes de gradua ção do que nos de mestrado e doutora do, sugerindo que o ensino universitário e o treinamento pós-graduado podem es

Ometeorologista

Isimar de Aze vedo Santos vive milagres to dos os dias. Professor do Ins tituto de Geociências da Universidade Federal do Rio de Janeiro e evangéli co, ele enxerga a mão divina em cada fenômeno da natureza. Entrevistado pela Devarim, ele enfatiza a importân cia da ética na ciência e divide conos co a sua fé.

Em sua opinião, existe contradição en tre ciência e religião? Por quê? Sim, sempre existiu e sempre existirá quando a religião se propõe a interpre tar a ciência dentro de parâmetros re ligiosos. Na Idade Média, Galileu e ou tros cientistas foram tremendamente perseguidos porque afirmavam que a Terra era esférica e girava em torno do Sol. A Bíblia, livro básico do Cristianis mo, nunca falou isto, ao contrário, afir ma que Deus repousa seus pés sobre a “redondeza da Terra”. Se houver sepa ração nas metodologias da ciência e da religião, não haverá contradição.

Poderia dar uma explicação científi ca para algum fenômeno bíblico?

As vacas gordas e as vacas magras no

Egito foram uma previsão climática acer tada de José, filho de Jacó, o patriarca de Israel. Como José fora educado no Palácio do Faraó do Egito, teve acesso à literatura da época, onde deve ter lido que o clima alterna períodos de aproxi madamente sete anos favoráveis à agri cultura, seguidos de períodos de seca, o que hoje conhecemos como El Niño. Ao perceber que se aproximava um pe ríodo de boas chuvas, propôs que as safras fossem armazenadas para o pe ríodo seguinte de estiagem.

Como o senhor vê a manipulação da vida em laboratório?

Eu particularmente não me oponho a nenhum tipo de experiência que condu za ao bem-estar do homem. A inteligên cia que recebemos da natureza é para usarmos para o nosso bem. Acho mui to válida a agricultura com transgêni cos, as experiências com células-tron co e qualquer outra pesquisa que tenha objetivos benéficos para o ser humano.

A energia atômica para fins pacíficos é tão benéfica, por exemplo, na cura do câncer. Mas a mesma energia atômica pode ser usada em bombas destruido ras. A ética deve sempre se antecipar

à pesquisa científica.

Há algum fenômeno da natureza que lhe faça pensar em milagre? Quando acordei hoje pela manhã, ha viam ocorrido inúmeros milagres duran te o meu sono: a alimentação do dia an terior havia sido digerida por um com plexo sistema digestivo que eu não pre ciso controlar – ele faz tudo sozinho –e joga no meu sangue tudo que pre ciso de vitaminas, proteínas, sais mi nerais, além dos energéticos dos car boidratos. Enquanto isso, eu sonha va também sem precisar controlar os meus sonhos e eliminava do meu cére bro todos os meus medos e frustrações do dia anterior. Ao acordar percebi que havia oxigênio no ar que os meus pul mões respiravam em quantidades exa tamente adequadas ao meu bem estar. Ao abrir a janela, me deparei com ou tro milagre: a Terra deu um giro crono metrado em torno de seu eixo e isto fez surgir um novo dia. Uma frente fria havia passado sobre a minha cidade, trazen do ar puro da Antártica e substituindo o ar poluído que eu e meus concidadãos havíamos jogado no ar nos dias anterio res. Eu tenho visto muitos milagres.

“eu tenho visto muitos milagres” ent R ev I stA C o M I s IMAR de A zevedo s A ntos
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tar desempenhando papel negativo nesse sentido.

Em artigo no periódico Em Aberto, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (1992), De Meis e Lucia Fonseca afirmam que, no panorama cultural contemporâneo, para a maioria dos cientistas em início de car reira, a ciência perdeu sua conotação re volucionária, de descobridora do papel do homem no universo. Para os autores, os estereótipos observados podem estar conduzindo os jovens de maior talento e espírito criativo para carreiras artísticas em detrimento de carreiras científicas.

“A própria Bíblia afirma que ‘mil anos para Deus são como um dia’. Portanto a contagem do tempo bíblico não é exata, mas poética” (Isimar de Azevedo Santos).

ele responde categórico: “A própria Bíblia afirma que ‘mil anos para Deus são como um dia’. Portanto a contagem do tempo bíblico não é exata, mas poética”.

Mil anos, um dia

O meteorologista Isimar de Azevedo Santos não tem conflito algum em ser cientista e evangélico. Questionado sobre a afirmação de que Deus criou o mundo em seis dias,

Professor da UFRJ, ele conta que, em seus estudos da evolução da atmosfera da Terra, percebeu que em determinada épo ca, quando ainda não havia animais fora d’água – aqueles que respiram oxigênio no ar –, a Terra esteve bastante quente e a vegetação exuberante cobriu praticamen te todos os continentes: “Neste ‘dia’ da criação, os vege tais trocaram o excedente dióxido de carbono da atmosfe ra pelo oxigênio necessário à respiração dos animais terres tres. Quando os teores de oxigênio alcançaram níveis adequados, no ‘dia seguinte’, surgiu a vida animal”. Vaichulu. E o Eterno abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele repousou toda Sua Obra, que criou para ser produtiva.

Marina Lemle é jornalista.

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ortodoxia pluralista e pluralismo ortodoxo

entrevista do Rabino Michael Melchior a Gabriel Mordoch

Aconvergência entre ortodoxia e pluralismo, por vezes improvável ao senso comum, é não somente natural, mas sobretudo fundamental para Michael Melchior. Rabino, líder do partido político Meimad, ativista social e ambiental, o sui generis Melchior é um cidadão do mundo, de origem dinamarquesa, radicado em Israel há mais de duas décadas. Na entrevista a seguir, concedida com exclusividade a Devarim e realizada em Jerusalém, estão traçados um pouco do perfil e da opinião de uma das perso nalidades mais destacadas da sociedade israelense contemporânea.

Devarim: Conte-nos sobre seu caminho, desde a Noruega até Israel.

Melchior: Desde a infância, sempre tive vontade de imigrar para Israel e viver e promover dentro da sociedade israelense os valores nos quais acredito. Fiz meus estudos rabínicos em yeshivot em Israel e fui para a Noruega como ra bino, embora já sabendo que não permaneceria lá definitivamente. Permaneci seis anos na Noruega e então me mudei para Jerusalém, sem, no entanto, deixar de manter contato com a comunidade judaica norueguesa. Tornei-me o rabino da Noruega aos 26 anos, em 1980, e desde então, até minha entrada no Parla mento israelense em 1999, dividi meu tempo entre Jerusalém e Oslo. Isso me permitiu não somente colaborar com a comunidade judaica norueguesa – uma comunidade tão pequena quanto ativa – mas também trabalhar com outros te mas, seja em Israel ou ao redor do mundo. Colaborei para o desenvolvimento do partido político israelense Meimad, fui o diretor internacional da Fundação Elie Wiesel, trabalhei muito com temas ligados a conflitos mundiais, direitos humanos, sionismo, judaísmo mundial. Trabalhei com as comunidades judai

7 “O Meimad é partido integrador, no qual o fundamento judaico é sumamente central, e inclui judeus ortodoxos, seculares e reformistas também. Os valores judaicos sionistas são um componente central da nossa visão de mundo.”

Rabino Michael Melchior, líder do Meimad.
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cas da União Soviética e Etiópia e apoiei a tentativa de resolução de conflitos na Caxemira, Guatemala e Irlanda do Norte. O assassinato de Itzhak Rabin gerou em mim uma profunda transformação. Quando a casa está em chamas não podemos estar circulando pelo mundo. Decidi então me dedicar mais intensamente ao Meimad, pois conclui que era preciso desenvolver uma opção judaica alternativa àquela então (e ainda) apresentada pelo judaísmo ortodo xo. A partir daí também passei a ser rabino de uma comu nidade aqui em Jerusalém, onde centrei meus esforços a fim de desenvolver o conceito exposto pelo Meimad: uma alternativa judaica religiosa diferente da conhecida então pelo público israelense.

Devarim: Você é um rabino que passou para a política. O que o levou a dar esse passo?

Melchior: Não entrei para a política na condição de rabino. Sou rabino, assim como há pessoas que são profes sores, ou advogados, etc. “Entrei para a política enquanto rabino a fim de tirar os rabinos da política”, comentei uma vez. Eu não fui eleito enquanto rabino, mas como pessoa pública, com minhas ideias e crenças. Não estou na políti

ca para decretar halachot. Tenho uma visão de mundo cris talizada, a qual promovi através da política, mas isso não necessariamente está ligado ao fato de eu ser rabino.

Devarim: O que diferencia o Meimad dos outros partidos políticos religiosos israelenses?

Melchior: No princípio nos definimos enquanto par tido religioso, e nos diferenciamos sobretudo em três as pectos. Primeiro, não acreditamos que, em nível político, a paz e a Torá se contradigam. Segundo, colocamos os te mas sociais no centro de nossa percepção judaico-religio sa. Terceiro, nos opusemos à constituição de uma legisla ção religiosa em Israel, o que a nosso ver tem maior poten cial de afastar do que de aproximar as pessoas do judaís mo. Achamos que a imposição de legislação religiosa em Israel é inadmissível e equivocada tanto moralmente quan to sob a perspectiva da própria Torá. Com o passar do tem po viemos a modificar a concepção do partido. O Meimad já não mais se vê como um partido religioso ortodoxo, mas como um partido integrador, no qual o fundamento judai co é sumamente central, e inclui judeus ortodoxos, secula res e reformistas também. Os valores judaicos sionistas são

Eu acredito que a Torá é grande, é ampla, e destinada a todos os judeus; se a Torá não é para todos então ela não é para ninguém. Din Alt / iStockphoto.com

um componente central da nossa visão de mundo. Nós trabalhamos na intersecção entre os diversos segmentos da sociedade israelense, integrando-os.

Devarim: O seu background escandina vo influencia a sua maneira de entender o judaísmo?

Melchior: Não há dúvida que todos os aspectos da vida influenciam a pessoa. Minha infância transcorreu na Escan dinávia da década de 1960, caracteriza da então por sua sociedade muito liberal, altamente social-democrática e detento ra dos menores índices mundiais de desigualdade entre ricos e pobres, vindo a constituir posteriormente um Estado de bem-estar social moderno e possuidor de uma consciência ideológica muito for te. Cresci imerso nestas ideologias e, ao mesmo tempo, imerso num ambiente ju daico religioso. Fui líder do movimento Bnei-Akiva e, naqueles anos, cantávamos o hino do movimento com a melodia da Internacional Socialista. Venho de uma família que já está há 350 anos na Dinamarca, e que este ve muito conectada à história judaica escandinava, o que também incluiu contatos entre judeus e não judeus. Tudo isso influenciou a casa onde cresci, meu pai foi rabino oficial da comunidade judaica dinamarquesa, um rabino or todoxo relativamente liberal e muito atento a temas sociais e direitos humanos. Ou seja, um equilíbrio muito interes sante entre o particularismo judaico e o universalismo.

Se quisermos manter contato com o judaísmo mundial, se há responsabilidade mútua, devemos enfatizar e desenvolver estes temas, criando assim um tipo de novo judaísmo, que respeite as diferenças em termos ritualísticos, religiosos, de halachá, ou seja, um judaísmo significativo e capaz de integrar pessoas de todas as correntes, de modo que os judeus que vivem fora de Israel também possam se sentir identificados.

após a fundação do partido, um entrevistador, guiado pelas ideias estereotipa das associadas à figura de um rabino ido so de longas barbas brancas, perguntou a Amital se sua vontade, caso obtivesse sucesso nas eleições, seria ocupar o cargo de ministro das Religiões. “Não”, ele res pondeu. “Eu gostaria de ser ministro da Saúde, cargo muito mais significativo do ponto de vista judaico.” Acho que esta é a característica dos eleitores do Meimad, quer dizer, são pessoas que enxergam o ju daísmo como importante para compreen der a saúde, a economia, o ambiente, a re lação com o próximo, etc. Os eleitores do Meimad pertencem aos setores religiosonacionalista, não ortodoxo e secular.

Devarim: Quais são os principais desafios que o povo judeu enfrenta atualmente?

Devarim: Quem é o público eleitor do Meimad?

Melchior: Somos um partido exclusivo, nosso públi co eleitor é muito especial, e portanto pequeno. Nossos eleitores são aqueles que almejam construir uma socieda de na qual seu componente judaico, em sentido amplo, é um fator importante. Importante não na finalidade de im por um modo de vida à população em geral, mas enquan to origem, inspiração, conexão e identidade para o desen volvimento de toda a comunidade israelense. O Meimad foi fundado pelo rabino Yehuda Amital, então diretor da maior yeshivat ha-esder1 de Israel, no Gush Etzion. Logo

Melchior: Quanto ao Estado judeu, estivemos ocupados com a existência físi ca, ou seja, com questões de segurança e sobrevivência, guerra e paz, e por isto nos descuidamos um pouco dos conteúdos. Talvez isso se justifique do ponto de vista histórico, pois há 120 anos o povo judeu esteve sob ameaça de aniquilação, e aí teve de canalizar os esforços para o estabelecimento do Estado. Mas agora o país já tem 60 anos, e não podemos mais nos ocupar tão somente da segurança física. Manda mos nossos filhos para o front de batalha e, contudo, que sociedade eles estão defendendo? Descuidamos um pouco do conteúdo e estamos pagando um preço muito alto. As consequências são, por exemplo, o péssimo relacionamen to entre os diferentes segmentos da população, a decadên cia em termos de educação, ambiente e sociedade e os mais altos índices de desigualdade do mundo ocidental. Temos, portanto, muito trabalho pela frente. Esse é o grande de safio, tanto do judaísmo israelense quanto do mundial. O judaísmo mundial não poderá conectar-se a um país ou a uma sociedade cujos valores não representam e expressam algo relevante para a juventude judaica do mundo. Se qui sermos manter contato com o judaísmo mundial, se há responsabilidade mútua, devemos enfatizar e desenvolver estes temas, criando assim um tipo de novo judaísmo, que res

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peite as diferenças em termos ritualísticos, religiosos, de halachá, ou seja, um judaís mo significativo e capaz de integrar pesso as de todas as correntes, de modo que os judeus que vivem fora de Israel também possam se sentir identificados.

Devarim: Você criticou severamente a di visão entre ensino secular e religioso em Israel, dizendo que em consequência dis to os seculares se sentem mais israelenses que judeus e que, por outro lado, deter minadas correntes religiosas encolheram a Torá até a reduzirem a um culto. Alguma coisa mudou nos últimos anos?

Melchior: A situação só vem pioran do. Criou-se em Israel um bicho de duas cabeças. Por um lado, o sistema de ensi no secular faz com que os alunos se alie nem de sua conexão com a cultura judaica, com a abor dagem e a continuidade histórica judaicas, com o ideal e o destino judaicos. O ensino secular deve se ligar mais às fontes judaicas e à revitalização destas fontes. Por outro lado, os ultraortodoxos, que monopolizam a educação ju daica em Israel, excluem de sua percepção temas univer sais como democracia, alteridade, racismo – temas natu ralmente ligados à abordagem da Torá. Ao mesmo tem po, eles também obtiveram sucesso tanto em termos de mográficos quanto na obtenção de subsídio econômico. Na minha opinião, eles reduziram a Torá, a diminuíram. Eu acredito que a Torá é grande, é ampla, e destinada a todos os judeus. Se a Torá não é para todos então ela não é para ninguém. Acredito que, propositalmente, cada in divíduo presente no Monte Sinai escutou algo um pou co diferente, não exatamente igual ao que os outros escu taram. É tão somente dentro desta sinfonia que podemos encontrar o verdadeiro e autêntico judaísmo. Costuma-se pensar que quanto mais se é ultraortodoxo mais se é au têntico. Isso é um equívoco, pois trata-se de algo sectário, algo pequeno que não representa o conjunto. Essa nunca foi a intenção da Torá, e muitos dos princípios das corren tes sectárias contradizem o que o judaísmo historicamen te representa. Acredito, portanto, que judeus que cumprem mitzvot estritamente e judeus totalmente seculares devem estudar juntos – respeitando-se mutuamente e não

Costuma-se pensar que quanto mais se é ultraortodoxo mais se é autêntico. Isso é um equívoco, pois trata-se de algo sectário, algo pequeno que não representa o conjunto. Essa nunca foi a intenção da Torá, e muitos dos princípios das correntes sectárias contradizem o que o judaísmo historicamente representa.

estereotipando um ao outro – de modo a construir juntos um judaísmo relevante a toda a população judaica, tanto israelen se quanto mundial.

Devarim: Quais podem ser as consequên cias dessa divisão a longo prazo?

Melchior: Sem uma meta em co mum pode ser que deixemos de existir. Hoje em dia não há nada em comum en tre uma escola em Immanuel2 e uma es cola em Tel Aviv, nenhuma determinação ou valores em comum. Para onde esta mos indo? Qual será nosso destino? Por tanto, o sucesso da tarefa integratória está ligado ao futuro de Israel e também do povo judeu.

Devarim: Como foi atuar na função de ministro das Relações com a Diáspora?

Melchior: Fui um dos criadores desse cargo, por que a meu ver é fundamental que haja no governo de Is rael alguém encarregado do relacionamento com o juda ísmo diaspórico e da elaboração de projetos mútuos com o mundo judaico e a promoção do seu contato com os diferentes segmentos da sociedade israelense. Criamos o programa Taglit, do qual fui o primeiro diretor. Criamos, entre outros projetos, o fórum internacional de comba te ao antissemitismo, criamos programas com universidades e programas dentro da própria sociedade israelen se, por exemplo o Beyachad, além de projetos sobre as festas judaicas.

Devarim: Como você define a relação entre os judeus is raelenses e os judeus da Diáspora hoje em dia. Há proxi midade? Há respeito mútuo?

Melchior: Há duas gerações não havia tanta diferen ça entre um judeu israelense e um judeu diaspórico. Há 120 anos a maioria dos judeus do mundo vivia na região da Polônia. Parte imigrou a outros países da Europa, aos Estados Unidos, à América Latina e uma pequena par te veio para Israel. Posteriormente houve o Holocausto, evento trágico extremamente significativo para o povo ju deu que influenciou e seguirá influenciando toda a comu nidade judaica. Em seguida o Estado foi fundado e lutou

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Os eleitores do Meimad são pessoas que enxergam o judaísmo como importante para compreender a saúde, a economia, o ambiente e a relação com o próximo pertencem aos setores religioso-nacionalista, não ortodoxo e secular.

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O judaísmo mundial não poderá conectar-se a um país ou a uma sociedade cujos valores não representam e expressam algo relevante para a ju ventude judaica do mundo.

por sua sobrevivência. Hoje em dia quase todos os judeus do mundo vivem em regimes democráticos. O antissemi tismo não é um problema particularmente judaico, mas universal. Duas gerações após o Holocausto e a fundação do Estado de Israel, penso que devemos redefinir a relação entre Israel e a Diáspora. O relacionamento deve ser mú tuo, e não que tão somente Israel busque o judaísmo mun dial a fim de obter apoio e auxílio, mas que também reflita sobre o que pode fazer pelo judaísmo mundial. Deve mos criar em Israel uma forma de judaísmo que diga res peito a judeus brasileiros, escandinavos e de todas as par tes do mundo, do contrário não haverá conexão, os jovens não irão defender Israel em manifestações e tampouco se

guirão sendo judeus. Fui o primeiro entre os ministros de Israel cuja função conferiu centralidade política ao mundo judaico diaspórico. Acho que israelenses e judeus diaspóri cos são dois lados de uma mesma moeda, é assim que de vemos conduzir esta relação. A pergunta não deve ser se há respeito mútuo, mas se há uma narrativa em comum, uma determinação e um destino em comum. É claro que há di ferença, porque em Israel há a possibilidade de construir uma sociedade judaica de maioria, enquanto no exterior as populações judaicas são uma minoria dentro da socie dade maior. Não podemos esperar que o Brasil, por exem plo, seja um país judaico, influenciado judaicamente. Você pode vivenciar os valores da sociedade minoritária, mas ao

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mesmo tempo você é parte da sociedade brasileira em geral. Nesse caso não se é so mente judeu, mas também cidadão brasi leiro, com seus valores, tradição e identi dade particulares, você ao mesmo tempo comporta uma identidade coletiva brasi leira. É verdade que, como membro de um grupo étnico minoritário, também é possível contribuir para a sociedade majo ritária, mas Israel, por sua vez, proporcio na uma diferença estrutural básica. Há, no entanto, aqueles que acreditam que o judaísmo melhor floresce quando é mi noria dentro da sociedade maior, prin cipalmente num contexto de tolerância. Quando se é maioria por outro lado, há a vantagem (e o desafio) da autodetermina ção e da autorresponsabilidade.

Devarim: Como você vê a relação en tre as diferentes correntes do judaísmo? A tendência é a aproximação ou o afas tamento?

Acho que israelenses e judeus diaspóricos são dois lados de uma mesma moeda, é assim que devemos conduzir esta relação. A pergunta não deve ser se há respeito mútuo, mas se há uma narrativa em comum, uma determinação e um destino em comum. É

claro que há diferença, porque em Israel há a possibilidade de construir uma sociedade judaica de maioria, enquanto no exterior as populações judaicas são uma minoria dentro da sociedade maior.

Melchior: A tendência é de afasta mento. Trabalho com todas as correntes judaicas, apesar de eu ser totalmente orto doxo e acreditar no cumprimento estrito da halachá, de uma halachá que se desenvolve. Acho que há muito mais em comum do que de diferente entre as diversas correntes. Entretanto, sou uma exceção. A tendên cia geral é de radicalização, separação, ódio, etc. Não sou muito otimista neste sentido.

Devarim: Qual é, na sua opinião, o motivo da falta de co laboração e da atitude negativa da corrente ultraortodoxa ante a corrente reformista?

Melchior: Isso não ocorre somente no que diz respei to à corrente reformista. Do ponto de vista ultraortodoxo só há uma maneira de interpretar a Torá e todo aquele que é diferente é deslegitimizado, inclusive a ortodoxia sionista ou outras correntes ortodoxas são deslegitimizadas pela ul traortodoxia. Isso transforma o judaísmo em seita, e isso é um equívoco, já que os judeus são um povo e não uma seita. Contudo, sob o prisma do pluralismo, também é preci so criar um espaço para os ultraortodoxos desenvolverem

sua visão de mundo, mesmo discordan do-se de muitos de seus princípios.

Devarim: Você conhece o Brasil e sua co munidade judaica?

Melchior: Não conheço o Brasil, mas conheço judeus brasileiros e escutei bastante sobre a comunidade judaica bra sileira. Eu gostaria muito de conhecer a comunidade judaica brasileira, uma co munidade dedicada, interessante e mui to conectada a Israel. Simplesmente ain da não houve uma oportunidade.

Devarim: De que maneira atividade am biental e judaísmo se conectam?

Melchior: Deus nos deu o planeta, conforme a Torá, para trabalhá-lo e con servá-lo. Do ponto de vista judaico, há um limite para o quanto podemos explo rar o planeta, a cerca da halachá também abarca o meio ambiente. O Midrash do Cântico dos Cantos conta que Deus dá o planeta a Adão para que ele o mantenha, o desenvolva e não o destrua. Infelizmen te nosso planeta, cujos recursos são esgo táveis, está sendo destruído. Há um mo tivo pelo qual Deus destinou Eretz Israel – região pobre em recursos naturais – ao povo judeu, e não nos deu lu gares muito mais ricos, como a região dos rios Tigre e Eu frates ou do Egito, símbolos de abundância e fertilidade. Nós estamos à beira do deserto e precisamos saber conservar nosso país. Isso não significa expandir ao máximo suas fronteiras, mas saber cuidar das águas, dos rios, do ar, das áreas verdes, da relação entre os habitantes dessa terra. O reencontro do povo de Israel com sua terra ancestral nos dá uma perspectiva especial que conecta a identidade ju daica geográfica à responsabilidade ecológica.

Notas

1. Instituição de ensino israelense que combina estudos talmúdicos com serviço mi litar.

2. Pequena cidade ultraortodoxa localizada no Norte da Cisjordânia.

Gabriel Mordoch é mestrando em Línguas e Literaturas Judaicas na Universidade Hebraica de Jerusalém.

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e stado judeu democrático e a revolução constitucional: uma análise jurídica

Émuito comum ouvir nos meios acadêmicos e nas discussões comunitárias, inclusive nas sinagogas e tnuot (movimentos juvenis), referências negativas sobre a ausência de uma Constituição em Israel. A falta de um documento formal e consolidado que repre sente a carta de direitos e garantias fundamentais do Esta do colocaria sob suspeição, segundo a opinião de alguns, a democracia israelense.

Essa discussão começa antes mesmo da criação do país e tem origem na Declaração 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas, mais conhecida como o Plano de Partilha da Palestina. Esta resolução determinava expressamente a necessidade da criação de uma constituição democrática nos dois países que deveriam nascer em breve (o Estado judeu e o Estado árabe).

Como sabemos, o Estado árabe ainda está para ser fun dado. Mas no Estado de Israel, desde 1948, intensos deba tes acerca da feitura de uma constituição pela Knesset (Parlamento) enfrentaram a oposição de uma liderança dividi da. David Ben Gurion, o grande líder do ishuv (a comuni

dade judaica pré-Estado), considerava que a carta constitu cional simbolizava uma ideia proveniente de lutas econô micas e sociais de séculos passados, as quais não mais exis tiam. Não foram poucas as vezes que, sempre em discursos inflamados, lembrou que no Reino Unido, apesar da ausência de uma constituição escrita, o Estado de Direito e a democracia estavam solidamente ancorados.

Para os partidos religiosos ortodoxos, a carta constitu cional representava uma instância legal acima da Torá – o que era (e ainda é) inconcebível para eles, da mesma forma como o é em todos os Estados teocráticos espalhados pelo mundo, dos quais o Irã é o exemplo mais vivo.

Havia ainda o receio de um embate político-cultural fe roz entre religiosos e laicos no recém-criado Estado de Is rael, o que, de forma sensata, as lideranças políticas tenta ram evitar. Importante lembrar que, ato contínuo à cria ção do Estado judeu, o país viu-se imerso em sua primeira grande guerra existencial, o que dificultou sobremaneira a convocação de uma assembleia constituinte.

Em 1950, dado o entrave político, o chaver knesset (par lamentar) Izhar Harari propôs uma grande ideia. O Par lamento israelense criaria as chamadas “Leis Básicas”, que futuramente seriam reunidas em um único documento –

marcelo treistman 7 A Suprema Corte de Israel busca no Direito Natural e na essência de um regime de governo democrático os limites para a atuação do governo.
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Constituição. Essas “Leis Básicas” têm como característica especial a dificuldade de modificação, necessitando para tal de um quórum privilegiado.

Assim declarou Harari: “A Constituição será feita por meio de capítulos, cada um desses constituirá uma ‘Lei Bási ca’ em separado. Os capítulos serão levados ao Knesset quan do o Comitê completar seu trabalho, e todos os capítulos con juntamente constituirão a Constituição do Estado”.

Aceita a proposta conciliatória de Harari, desde 1950 até hoje onze “Leis Básicas” foram criadas. Entre outras funções, elas organizam os poderes do Estado, estabele cem competências, defendem a propriedade privada e pro tegem o indivíduo, elevando a dignidade do ser humano a um pilar máximo no país. Como todo país que não pos sui uma constituição formal, Israel possui um Poder Judiciário extremamente ativo. Era este Poder que, até a déca da passada, exercia solitariamente o controle das leis, ten do em vista que não se podia arguir que uma lei aprovada pelo poder legislativo era “inconstitucional”.

Qualquer indivíduo que se sentisse prejudicado pela promulgação de uma lei deveria ajuizar uma ação e, desta forma, provocar o Poder Judiciário. Caso a Suprema Corte julgasse procedente a ação, havia a interferência no Poder Legislativo, com a declaração de que a lei não preenchia os valores do Estado. Na falta de uma limitação ao proces so legislativo, o fardo do controle de validade das leis re caía sobre os juízes.

Fica claro que, na falta de uma Constituição formal que imponha obstáculos ao exercício do poder discricio nário do Poder Legislativo, a Suprema Corte busca no Di reito Natural e na essência de um regime de governo democrático os limites para a atuação do governo.

Os tribunais são obrigados a encontrar os valores sobre os quais o Estado está apoiado para justificar suas decisões. Então, quais seriam esses valores? A resposta encontrada desde o primeiro dia de existência do Estado de Israel: ju daísmo e democracia.

Não há dúvidas de que a ligação entre a vida real e as regras jurídicas representam uma via de mão dupla. A rea lidade influencia as regras jurídicas: a legislação e a juris prudência – juntas – deram expressão ao fato de que o Es tado de Israel é um Estado judeu e também é um Estado democrático. Em paralelo, as regras jurídicas influenciam a realidade: a legislação e a jurisprudência fortaleceram, persistentemente, a característica judaica e a característica democrática do país.

Com relação à característica judaica do país, podemos facilmente observar inúmeras sentenças que contêm fontes judaicas em sua redação, como a Torá, a Guemará e a Mishná. Além disso, a exegese israelense proclama que, na ausência da norma, os juízes deverão buscar a solução dos conflitos nos princípios de liberdade, justiça, integridade e paz contida na “herança do povo de Israel”.

Com relação à característica democrática, desde sem

David Ben Gurion considerava que uma Constituição simbolizava uma ideia proveniente de lutas econômicas e sociais de séculos passados.

pre existiu a percepção de que a lei destinava-se a cumprir os valores da democra cia, como liberdade de expressão, direitos fundamentais, alternância de poder, etc. Então, interpreta-se a lei para que o dano a estes valores sejam limitados e somente nas circunstâncias que o justifique. Nes ta direção, os tribunais utilizam a demo cracia como base para as suas decisões e, consequentemente, as decisões são usadas como base para o estabelecimento de um real Estado democrático.

Há exatamente quinze anos Israel passou pela chamada revolução constitucional.

Em 1992 e 1994, respectivamente, a Knesset promulgou duas novas Leis Básicas: Dignidade da Pessoa Humana e Liberdade de Ocupação, finalizando o conjunto de onze Leis Básicas existentes no país.

Apesar do aparente vácuo gerado pela ausência de uma constituição, o espírito libertário contido na Declaração da Independência foi a força motriz que im pulsionou o ativismo judicial da Suprema Corte, assumindo o papel de guardiã dos valores judaicos e democráticos do Esta do, com ênfase na proteção dos direitos humanos.

Mas há exatamente quinze anos esta situação come çou a se modificar. Israel passou pela chamada “revolu ção constitucional”. Em 1992 e 1994, respectivamente, a Knesset promulgou duas novas “Leis Básicas” – “Digni dade da Pessoa Humana – sua Liberdade” e “Liberdade de Ocupação”, finalizando o conjunto de onze “Leis Básicas” existentes no país.

Estas duas leis mudariam para sempre o regime jurídi co-legal do país transformando a relação entre os três poderes e modificando a compreensão do significado de Is rael existir como um Estado judeu democrático. E este fato é normalmente ignorado nas discussões comunitárias às quais me referi na abertura do texto.

A Lei Básica “Dignidade da Pessoa Humana e sua Li berdade” (1992), aprovada pela décima segunda Knesset, é destinada a ser a carta de direitos humanos de Israel. Devi do à grande oposição dos partidos religiosos ortodoxos, foi aprovada em parte. Declara, no entanto, que em Israel os direitos humanos básicos são baseados no reconhecimento do valor da pessoa humana e na santidade de sua vida.

Dentre os direitos considerados básicos retirados do texto original se destacam: direito à igualdade, liberdade de expressão, liberdade de religião e liberdade de protesto. Entretanto, em mais um capítulo do ativismo judicial is raelense, Aharon Barak – presidente da Suprema Corte –

interpretou estes direitos como sendo di retamente derivados da expressão “direi to à dignidade” contida na lei.

Por exemplo, com relação à liberdade de expressão, os tribunais já haviam sen tenciado que este direito “pertence ao mes mo grupo de direitos que não estão escritos nos livros, mas são provenientes diretamen te do caráter democrático do país que ad voga em prol da liberdade” (Suprema Cor te 243-1962 – Salas de Cinema Israelense Ltda. vs. Gary). Por isso, a “censura” não tem permissão para exercer a sua compe tência concedida por lei sem antes pesar a possibilidade de atingir a liberdade de ex pressão. “Deverá haver um equilíbrio ne cessário, cada caso analisado de modo par ticular, entre o dano à segurança do país ou à paz pública e entre o dano à liberdade de expressão”. (Suprema Corte 73-1953 – Kol Haham vs. Mi nistro do Interior).

A Lei Básica “Liberdade de Ocupação” (1994), apro vada pela décima terceira Knesset, garante o direito a todo cidadão ou habitante de desempenhar ocupação, profissão ou comércio, desde que não contrariado por lei e pelos va lores do Estado de Israel. Desta forma, completava-se as sim o rol de liberdades pessoais elevados ao pilar mais alto na hierarquia de leis.

Alem disso, de agora em diante, toda lei promulgada pela Knesset deverá atravessar a “barreira” legislativa ex pressa pelo artigo 8 da Lei Básica “Dignidade da Pessoa Humana e sua Liberdade”: “Não deverá haver violação de direitos regulados por essa Lei Básica exceto por lei que se com patibilize aos valores do Estado de Israel, designada a objeti vo próprio e evidente, e na proporção necessária, ou em virtude de regulamentação expressa em lei”.

A inovação

Certamente, a maior inovação nestas “Leis Básicas’ foi a declaração, no corpo do texto, de que o Estado de Israel é um “Estado judeu democrático”. Fotografando uma situa ção real e adicionando uma importante dimensão na con sequência destas palavras.

Foi a primeira vez que uma lei israelense, e, neste caso,

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uma “Lei Básica”, declarou expressamente que o Estado de Israel é um Estado judeu e é também um Estado demo crático, mudando o status jurídico destes valores sobre os quais o país encontra-se apoiado.

Como demonstrado, o judaísmo e a democracia eram valores utilizados até então apenas como “valores modera dores”, fornecendo aos tribunais inspiração e direção. Fun cionavam como uma ferramenta de interpretação das leis e cristalização de sentenças.

Estas novas “Leis Básicas” forneceram o ingrediente ne cessário para que a Suprema Corte israelense, de uma só tacada, iniciasse a “revolução constitucional”, declarando a existência de leis superiores no país, e terminando um trabalho não realizado pelo Poder Legislativo – “promul gava” a constituição sem nunca ter existido uma Assembleia Constituinte.

Em 1995, no julgamento que selou a “revolução”, a Su

prema Corte assim declarou acerca do artigo 8 da “Lei Bá sica” promulgada apenas um ano antes:

“Qualquer lei nova que venha causar um dano nos direi tos estabelecidos por estas Leis Básicas, ou que contradiga os valores do Estado Judeu Democrático, serão passíveis de se rem declarados pelo tribunal como lei, ou norma inconsti tucional, e portanto, inválida”. (Corte de Apelação Civil 6.821-1993 – Banco Mizrahi Hameuhad Ltda. vs. Mig dal Cafer Shitufi).

Chegamos em um estágio em que podemos denomi nar os direitos e conceitos defendidos por estas “Leis Bá sicas” de princípios constitucionais: norma jurídica acima da norma da lei.

Desta forma, Israel torna-se uma democracia consti tucional. Nos juntamos ao grupo de nações iluminadas pela democracia, em que direitos humanos ganharam for ça constitucional acima das leis simples. Similar a Estados

A manifestação de cem mil intolerantes

Seeu fosse um daqueles indi víduos que acredita em des tino, teria ficado maravilhado com a “improvável” coincidência. Pou cos minutos após colocar o ponto fi nal no texto para a Devarim fui surpre endido ao assistir no noticiário notur no imagens que se relacionavam dire tamente com o texto que havia acaba do de escrever.

Cem mil (cem mil!) judeus ultraor todoxos participavam de uma manifes tação em Jerusalém contra a decisão da Suprema Corte israelense que de terminou o fim da exclusão de meninas de famílias ultraortodoxas sefaradiot de uma escola ultraortodoxa ashkenazi. A escola havia recusado as estudantes unicamente por uma razão étnica.

Quinze anos atrás, antes da promul gação das duas “Leis Básicas” que analisei no texto, os juízes teriam dificul dades em obrigar a escola a abandonar práticas discriminatórias. Isto porque a

lei israelense concede independência à comunidade ultraortodoxa para estipu lar as regras de funcionamento de suas instituições de ensino, com autonomia na aceitação de matrículas à definição dos currículos.

Hoje, porém, a Suprema Corte pos sui os instrumentos que possibilitam o combate ao racismo, à xenofobia e à exclusão. A “Lei Básica” “Dignidade da Pessoa Humana e sua Liberdade” é uma norma superior, constitucional. Ainda que a ultraortodoxia construa e mantenha um sistema educacional pró prio, embasando tal conduta numa lei simples, jamais poderá praticar algo ne gado por uma lei superior.

A revolta dos ultraortodoxos é pela constatação que suas formas discri cionárias de interpretar e distorcer a halachá estão com os dias conta dos. Um manifestante segura uma pla ca onde se lê: “Escolhemos seguir a Torá”. Eu me pergunto em que parte

da Torá ele leu que meninas não po dem conviver no mesmo banco esco lar porque seus avós provêm de lo cais diferentes. A Torá que eu esco lhi seguir diz vehahavta et earecha ca mocha (amarás ao próximo como a ti mesmo) e que a mesma lei que se apli ca aos filhos de Israel se aplica aos não judeus que vivem junto com o nos so povo.

A Suprema Corte mais uma vez nos contempla com uma sábia decisão ao determinar a tênue linha do significa do de vivermos em um real Estado ju deu democrático. Demonstra a todos os habitantes do país que aqueles que defendem um judaísmo ausente de va lores democráticos não possuem lugar em Israel.

As duas novas “Leis Básicas” cria das há pouco e a atuação dos nossos juízes colocarão de uma vez por todas um fim na era de escuridão à qual cem mil intolerantes desejam nos levar.

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Unidos, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão e outros países ocidentais, Israel possui uma defesa constitucional dos direitos humanos. Além disso, cria uma defesa cons titucional para existir como um Estado judeu e democrá tico. Obviamente, há inúmeras críticas dentro do país no que tange ao ativismo judicial da Suprema Corte israelen se. Diversos estudiosos, juristas e professores não concor dam com a ideia de que vivemos em um país que possui uma constituição, apegando-se a conceitos juridicamente ortodoxos.

A verdade é que isso não importa nem um pouco. De agora em diante, toda lei nova sofrerá uma limitação den tro do próprio processo legislativo. Isto porque existe uma norma superior que limita a ação dos parlamentares: ne nhuma lei poderá negar os direitos humanos estipulados nas “Leis Básicas” descritas acima e/ou negar o caráter do país como um Estado judeu democrático.

Certamente, a situação atual contribui para “apimen tar” a pergunta em Israel sobre o que significa existir como um Estado judeu e existir como um Estado democrático. Em especial, qual a ligação entre estes dois valores.

Cada valor corresponde a um mundo de correntes e mecanismos. Existem centenas de livros atuais que tentam explicar o que significa viver em um país fundado nestes dois valores. Nossa tradição ensina em relação ao judaís mo: “Procure, procure que tudo está aqui”. Podemos dizer que, de modo semelhante, assim é a democracia.

Existem correntes consideradas extremistas, que inter

pretam o judaísmo como um valor incompatível com a democracia. Acreditam que o judaísmo não sobreviveria aos ideais iluministas que criaram a Idade Moderna.

Existe, obviamente, a corrente extremista dos democra tas, que não está nem um pouco satisfeita com certos even tos específicos expressos pelo caráter judeu de nosso país.

Eu entendo que é bem possível, ainda que cheio de contradições, cristalizar o entendimento entre estes dois valores. Isto porque entendo que eles possuem um amplo denominador comum. Se nós renunciarmos às propostas dos dois extremos, estes valores podem conviver em paz, um ao lado do outro.

É isto que vem afirmar estas duas “Leis Básicas”, recen temente aprovadas pelo governo israelense, e interpretadas de forma brilhante pelos sábios juízes da Suprema Corte israelense: Israel é um Estado judeu e também um Estado democrático, concedendo a todos os cidadãos direitos e garantias fundamentais através de uma lei superior.

Desta forma estamos protegendo aquilo que mais nos orgulhamos – a existência de um Estado judeu essencial mente livre e democrático – unindo eternamente o judaís mo à democracia, e esperando o dia em que estes dois pi lares possam se tornar apenas um.

Não hipótese, nem antítese, e sim a síntese de um novo país.

Marcelo Treistman é advogado, mora em Israel desde 2007 e é Chazit de coração.

Um dia os pilares da democracia e do judaísmo em Israel vão se tornar apenas um único pilar; na foto, a Suprema Corte de Israel Foto: Raul Cesar Gottlieb
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Yiddis H b oo K c enter: resgate e transmissão de uma H erança esquecida

A capacidade de visão de longo prazo de Aaron Lansky lhe permitiu antecipar-se ao processo que sobreviria gradualmente, de que hoje somos testemunhas e protagonistas: o ressurgimento do interesse pelo iídiche e a reapropriação do legado dessa cultura milenar pelas novas gerações, que se viram privadas desta herança cultural por causa de uma particular conjuntura histórica.

Faz pouco menos de dois anos, quando recém-iniciava meus estudos de iídiche, encontrei, por acaso, um artigo jornalístico que informava so bre a existência de um arquivo on-line de literatura iídiche, do qual era possível baixar gratuitamente qualquer título. Não transcorreu muito tempo para que me convertesse em usuária frequente desse arquivo, que se tratava do Steven Spielberg Digital Yiddish Library, pertencente ao Yiddish Book Center.

O Yiddish Book Center é uma organização sem fins lucrativos que se origi nou como um projeto de resgate de certos objetos em perigo: os livros em lín gua iídiche. No meio dos anos 70, Aaron Lansky, natural de Massachusetts, embarcou, com 20 anos de idade, na original aventura de coletar o que os ou tros se desfaziam. No entanto, seria injusto afirmar que o Yiddish Book Cen ter é um mero resultado do desprezo pela língua iídiche; ao contrário, Lansky dedicou anos de sua vida a visitar homens e mulheres da geração de meus avós e bisavós, que lhes entregaram o mais precioso que possuíam, seus livros, não porque já não os queriam, mas sim porque confiaram em sua promessa de pre servar esta herança que seus familiares diretos não quiseram ou não puderam receber em algum momento.

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Nos anos em que Lansky pôs em marcha o projeto, a conjunção fatal de uma soma de fatores derivou em um momentâneo “esquecimento” da cultura judaica enraiza da na língua iídiche, trazida do velho mundo pelos imi grantes da Europa Oriental. Os conflitos entre gerações dos imigrantes com os filhos nascidos nos novos países de residência, as políticas de integração dos países recep tores, o trágico destino de milhões de falantes de iídiche na Shoah, o renascimento do hebraico em Israel, para ci tar só alguns desses fatores, contribuíram para a constru ção de uma crença segundo a qual o iídiche era uma lín gua “em extinção”, se é que já não havia desaparecido da face da Terra. Nesse contexto, não parecia haver motivos razoáveis entre os mais jovens para conservar livros neste idioma “arcaico”.

A capacidade de visão de longo prazo de Lansky lhe permitiu antecipar-se ao processo inverso que sobreviria gradualmente, de que hoje somos testemunhas e protago nistas: o ressurgimento do interesse pelo iídiche e a reapro priação do legado dessa cultura milenar pelas novas gera

ções, que se viram privadas desta herança cultural por causa de uma particular conjuntura histórica.

A “pré-história” do Yiddish Book Center, no entan to, tem um caráter mais prosaico. Quando Lansky era estudante no Hampshire College decidiu ter aulas de iídiche como complemento de seus estudos acadêmicos. Mas, ao começar a aprender o idioma, Lansky se depa rou com uma situação que desconhecia: a maioria dos li vros em iídiche havia sido deixado de ser publicados e es tavam esgotados, e as bibliotecas das universidades con tavam com muito poucos exemplares ou nenhum. Por isso, junto com um grupo de colegas, Lansky começou a colar pequenos cartazes aqui e ali, com a esperança de prover-se de materiais de estudo. No início suas tentati vas pareceram infrutíferas, mas gradualmente foi se configurando um panorama alarmante: havia livros, mas es tavam dispersos e muitas vezes em perigo de destruição. Esse foi o ponto de partida de uma aposta de um futu ro não isento de riscos, baseada na certeza de que dedi car um esforço em reunir livros em iídiche valia a pena,

Grupo de estudantes trabalha na biblioteca sob a supervisão de Malena Chinski e da bibliógrafa Catherine Madsen. Fotos: Yiddish Book Center
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ainda que contrário às opiniões circundantes e sem con tar com nenhum fundo inicial.

Foram necessários 30 anos de trabalho sustentado para que o Yiddish Book Center chegasse a ser uma instituição de importância internacional, com mais de 20 mil mem bros, mantida com o apoio de pessoas progressistas e en tusiastas, às quais, com suas doações, fazem possível a con tinuidade da instituição.

Os primeiros anos de coleta foram cheios de diverti das aventuras. Lansky e seus amigos percorreram as rotas dos Estados Unidos de caminhão, encontrando pelo caminho pessoas carinhosas que alimentaram esses jovens com muita história e muita comida, nesta cerimônia úni ca que consiste na entrega dos livros de toda uma vida. Em seu livro autobiográfico, Outwitting History, Lansky rende homenagens a dezenas de homens e mulheres que

possibilitaram, com suas contribuições, a existência do Yiddish Book Center. Personagens inesquecíveis, como Sam e Leah Ostroff e seus convidados ilustres de Sea Gate, o assessor de imprensa Knight, a viúva de Woody Gu thrie, e tantos outros, são imortalizados nas páginas des te livro. Apesar da tristeza que despertam tantas histórias cujos protagonistas são livros abandonados, Lansky afir ma a necessidade de transcender a nostalgia para desen volver um programa prático e transmitir a consciência histórica às gerações futuras.

Havendo atravessado não poucas frustrações, Lansky conseguiu salvar mais de um milhão de livros em iídiche e prover de material de leitura mais de 600 bibliotecas do mundo inteiro. Nesse processo, teve de enfrentar uma di ficuldade imprevista: os livros em iídiche, publicados em sua maioria a partir de meados do século 19, foram im

Exposição de livros em iídiche; à esq. livro com ilustração de Diego Rivera.
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pressos em papel com alto nível de acidez, o que os torna extremamente frágeis e propensos à desintegração. Este proble ma foi o motor que impulsionou o pro jeto de digitalização de mais de 11 mil li vros. Concretizado em seu início graças a um generoso subsídio de Steven Spiel berg, o projeto constitui a primeira ten tativa histórica de digitalizar toda uma li teratura. Qualquer um desses livros pode ser reimpresso hoje em novo papel. O quase milagroso resultado disso é que a literatura iídiche é atualmente uma das mais acessíveis do mundo.

Quando conheci a história do Yiddish Book Center compreendi que eu também, em alguma medida, formava parte dessa histó ria, não só em relação ao meu interesse pelo iídiche – ain da que inexplicável para muitos na Argentina –, se não porque reuni meus livros em condições similares às que relata Aaron em seu livro. Assim, quando soube da cria ção de um novo programa de bolsas de estudo no Yiddish Book Center, decidi apresentar-me, e no dia 2 de dezem bro de 2009 embarquei para Massachusetts para passar ali todo o inverno.

Em meu primeiro dia de trabalho como Graduate Fellow, o Yiddish Book Center me impressionou antes de tudo pela imensidão. Situado no meio das lindas pai sagens de New England, a poucas milhas do centro de Amherst, uma pequena cidade de construções com o só brio estilo protestante, o Yiddish Book Center se desta ca por sua arquitetura peculiar. O edifício, imponente, inaugurado em 1997, foi desenhado, por um arquiteto não judeu, segundo o estilo de um complexo de casas se melhantes a um shtetl, uma típica aldeia judaica do Leste europeu e cenário favorito da literatura iídiche.

A serenidade da paisagem que rodeia o Yiddish Book Center contrasta com a agitação que acontece em seu in terior. Um pequeno grupo de funcionários se ocupa, com insólita energia, em materializar uma inumerável quanti dade de projetos, em consonância com a incansável capa cidade empreendedora de Lansky.

O Yiddish Book Center abriga uma coleção de valor incalculável de literatura secular publicada em diversos paí ses, como Estados Unidos, Israel, Brasil, México, Argenti

na, Polônia, Russia e França, entre outros; também se contam entre os volumes nu merosos sforim – textos sagrados do juda ísmo – traduzidos para o iídiche e textos acadêmicos de História, Filologia ou Crí tica Literária. O “edifício novo”, inaugu rado em 2008, conta com uma abóbada climatizada conforme a temperatura e o nível de umidade adequados para a pre servação dos livros.

Particularmente interessante é a histó ria da coleção de partituras musicais do Yiddish Book Center. No meio dos anos 1980, o rabino Gottlieb, de Nova Jersey, fez contato com Lansky: ouvira rumores da existência de uma garagem cheia de partituras em iídiche e hebraico em Boro Park, Brooklyn. Efetivamente, logo se descobriu que a companhia Metro Music de música judaica havia vendido a investidores a to talidade de seu estoque restante, composto de 85 mil fo lhas, nos anos 1970, e esses não tinham conseguido revender. Após o encerramento da companhia, um judeu reli gioso guardou o material em sua garagem, já que entre as partituras havia khazones (peças litúrgicas), e considerou uma mitzvah salvá-las.

O Yiddish Book Center possui também com uma im

Os primeiros anos de coleta foram cheios de divertidas aventuras.
Lansky e seus amigos percorreram as rotas dos Estados Unidos de caminhão, encontrando pelo caminho pessoas carinhosas que alimentaram esses jovens com muita história e muita comida.
Aaron Lansky, o idealizador do Yiddish Book Center.
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portante coleção de livros raros, provenientes sobretudo da Polônia, do Império Czarista, da União Soviética e da Amé rica Latina, dos quais se preservam con tados exemplares no mundo. Em seu li vro, Lansky menciona o achado de um livro editado na União Soviética cuja ti ragem havia sido destruída em sua totali dade pela polícia com exceção desse úni co exemplar, salvo graças a um judeu resi dente nos Estados Unidos, primo do edi tor, que havia adquirido uma cópia em sua viagem à URSS em 1929 e o trouxe ra para a América. Em outra ocasião, o Yiddish Book Center recebeu um carregamento de livros enviados por navio do Zimbabwe, chegados ali pelas mãos de judeus refugiados durante os anos da Segunda Guerra Mundial.

O foco do Yiddish Book Center está voltado atualmente aos programas educativos.

A cada janeiro se desenvolve um programa intensivo de língua e cultura iídiche, em coordenação com as cinco universidades da região, que outorga créditos aos estudantes.

Tour of Yiddish Books”. Este grande proje to se propõe a “abrir os livros” aos visitan tes e reconstruir, a partir deles, a história da civilização que lhes deu origem. A exposição, que será inaugurada em novem bro de 2010, baseia-se em uma propos ta de circulação livre pelos espaços do Yi ddish Book Center, que dará lugar ao en contro fortuito com pequenos aparadores que enfocarão algum aspecto particular da cultura iídiche mediante textos, livros especiais, fragmentos literários, poemas e fotografias. O “Kinder vinkl” (Cantinho das Crianças) será um espaço lúdico onde os visitantes poderão familiarizar-se com as letras e os sons do iídiche, e mergulhar nas aventuras e desventuras desta língua e seus falantes.

Uma de minhas primeiras tarefas como bolsista consis tiu no processamento de caixas cheias de livros raros. Esta tarefa requeria bastante paciência, já que muitas vezes a or tografia antiga do iídiche tornava difícil a leitura, ou o li vro não tinha nem capa nem título e tinha que investigar sobre o que se tratava, ou bem a data de publicação cor respondente ao ano hebraico estava “em código” dentro de um versículo bíblico que era preciso desvendar. A cada dia essas caixas de livros foram para mim uma fonte renovada de surpresa e descobrimento.

No mês de minha chegada tive também a sorte de par ticipar como assistente do desenho de conteúdos da futura exibição permanente do Yiddish Book Center, “A Walking

Outro grande projeto que atualmente mantém inquieta a instituição é o Wexler Oral History Project. Em seu afã de compilar histórias, o Yiddish Book Center se propõe agora a incorporar às suas coleções histórias vivas relacio nadas ao judaísmo contemporâneo. Todo visitante, judeu ou não, é considerado neste projeto como um potencial narrador que enriquecerá o novo arquivo audiovisual com sua singular perspectiva sobre o judaísmo. A velocidade com que esse projeto se apresentou e se concretizou, des de a arrumação do estúdio com todo o equipamento ne cessário até a redação de perguntas e formulários, e o trei namento dos entrevistadores, demonstra, num exemplo ilustrativo, a incrível capacidade empreendedora que ca racteriza o Yiddish Book Center.

Funcionários e consulentes no Yiddish Book Center.
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Mas nem tudo acontece em grande escala; também tive a oportunidade de participar de um pequeno leyenkrayz (círculo de leitura) coordenado por Aaron Lansky, um evento que ocorre semanalmente com o objetivo de abor dar o texto original de Y. Y. Zinger, Di brider ashkenazi (Os irmãos ashkenazi), um portal de entrada à Lodz judaica do final do século 19. O entusiasmo de Lansky pelas língua e literatura iídiche se mantém intacto até hoje.

O foco do Yiddish Book Center está voltado atualmen te aos programas educativos. A cada janeiro se desenvol ve um programa intensivo de língua e cultura iídiche, em coordenação com os cinco colleges da região, que outor ga créditos acadêmicos aos estudantes. Por outro lado, o Steiner Summer Yiddish Internship é um programa de sete semanas de duração destinado a estudantes universitários, os quais recebem uma bolsa de estudos completa no mo mento da admissão ao programa. Os bolsistas têm 3 horas diárias de aulas do idioma e de cultura, a cargo de profes sores universitários, e trabalham como assistentes com os funcionários do Yiddish Book Center.

A incorporação mais recente na área da educação é o programa de Graduate Fellowships, em expansão, que con siste na imersão e participação de jovens graduados, em di versas áreas de atuação, tais como bibliografia, história oral e exibições, às quais se somarão aulas de iídiche e supervi são a cargo de professores acadêmicos.

Este é um momento muito particular na história do Yi ddish Book Center, que reflete uma nova orientação em seus objetivos. As transformações por que passa a institui ção e a vitalidade com que mergulha em novos projetos são a consequência lógica de uma feliz constatação: os li vros já se encontram a salvo.

Fontes

Lansky, A., Outwitting History. The Amazing Adventures of a Man who Rescued a Million Yiddish Books, Chapel Hill, Algonquin Books of Chapel Hill, 2005. www.yiddishbookcenter.org Pakn Treger, revista institucional periódica do Yiddish Book Center. A Bridge of Books. The Story of the National Yiddish Book Center (docu mental institucional, acessível no endereço web).

Malena Chinski é bolsista do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Consejo Nacional de Investigaciones Cientí ficas y Técnicas-Conicet) da Argentina. Faz doutorado em Ciências Sociais no Instituto de Desenvolvimento em Ciências Sociais (Ides) na Universidad Nacional General Sarmiento. É professora de língua e cultura iídiche na Fundação IWO de Buenos Aires. Foi Gradua te Fellow no Yiddish Book Center entre dezembro de 2009 e mar ço de 2010. Participa atualmente do Steiner Yiddish Summer In ternship como professora assistente. Tradução de Mariangela Paganini aldeia

O prédio novo do Yiddish Book Center, cuja arquitetura lembra um shtetl, a
judaica na Europa Oriental.

como valorizar o pergamin H o da mezuzá?

Aquestão que será debatida neste Pilpul é sobre a obrigatoriedade de aderência ao formato tradicional do pergaminho da mezuzá, denominado claf em hebraico. Será que o trabalho do escriba ritual (sofer em hebraico) pode ser substituído por folhas de papel sulfite e uma impressora jato de tinta?

Pilpul é o nome dado ao tradicional processo judaico de debate religioso e na Devarim isto funciona assim: primei ramente dois expositores colocam seus pontos de vista a res peito do tema. Em seguida convidamos os leitores a enviar suas observações particulares sobre o assunto para o e-mail devarim@arirj.com.br e desta forma colaborar na ampliação da abrangência da reflexão sobre o assunto.

A questão proposta se justifica pelo fato de que numa con siderável parcela dos objetos rituais a diversidade dos for matos é a regra geral. Incluem-se nesta categoria as chanukiot, as kipot, os talitim, os livros de reza e muitos outros.

O fator determinante para a qualificação destes objetos como sendo objetos rituais é a sua usabilidade. É impensá vel, por exemplo, que uma chanukiá (o candelabro utilizado na festa de Chanuká) não contenha exatamente nove velas, pois se isto acontecer ela não servirá para o propósito ao qual se destina. Assim como um livro de rezas que não contenha o texto das rezas, deixa de sê-lo.

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seção pilpul

Parece então que basta que o objeto cumpra a sua função para que seja considerado um objeto ritual. O gosto, a criati vidade e o orçamento de cada usuário seriam os fatores decisi vos para a definição dos formatos. Mas não é bem assim! Exis tem objetos nos quais nenhuma mudança é admitida.

Percebam que não existe caso de sinagoga que tenha subs tituído o pergaminho do rolo da Torá por um livro. Mesmo considerando as suas muitas vantagens práticas – possibilita acesso direto à informação, sem necessidade de ficar enrolan do e desenrolando o pergaminho; são muito mais baratos, o que aliviaria o orçamento das sinagogas; poderia ser impres

so com os pontinhos e numa letra maior e mais clara do que a tradicional, evitando erros de leitura –, os livros não se pres tam para a leitura ritual do texto sagrado.

Aquilo que vale para o livro de rezas, que é impresso em dezenas de milhares de formatos diferentes, não vale para o li vro da Torá. Não obstante o fato de que ambos nasceram como rolos de pergaminho, num se admite aplicar a mais moderna tecnologia, enquanto que no outro, qualquer inovação é mo tivo para sua descaracterização.

Faz sentido aplicar esta diferenciação? É o que vamos de bater a seguir.

Primeiro expositor

Nossa discussão se inicia num aspecto que pode ser sintetizado pela seguinte pergunta: Qual o valor de fato de nossos objetos rituais? Para que efetivamente serve cada um dos elementos materiais que utilizamos nos ritos judaicos?

Estes objetos correspondem sempre a um apoio, um caminho para nos ajudar a alcançar o que o judaísmo nos propõe, seja como um lembrete, um ponto de concentra ção, um elemento de orientação ou um estímulo. Nenhum objeto religioso judaico tem valor místico ou poder próprio, porque isso configuraria uma forma de idolatria ou magia, o que é totalmente repudiado em nossa religião. Assim sendo, não se pode justificar a persistência num de terminado formato ou método de confecção dos objetos rituais a partir da premissa de que, sendo confeccionados de forma distinta, não “funcionariam”. Portanto, o crité rio da usabilidade, referido na abertura do Pilpul, parece ser o único critério válido para determinar a adequação de um objeto ritual.

No entanto, nossa visão é de que há alguns objetos reli giosos que devem ter sua preparação tradicional mantida.

A nosso ver, temos três aspectos a serem ressaltados quanto aos objetos que fazem parte de nossos ritos, sem querer aqui esgotar todas as nuances do tema: seu uso comum, sua perenidade e a melhor alternativa para que cum pra sua função.

O uso comum permite que a comunidade se solidifi que e mantenha-se coesa. A maioria dos judeus, mesmo os que não se identificam com a religião, utilizam a mezu

Segundo expositor

Aabertura deste Pilpul estabeleceu o fato de que alguns objetos rituais podem ser modificados e outros não e que o claf da mezuzá encontra-se atualmente na segunda categoria. A questão em estudo é avaliar se é conveniente modificar esta situação.

Na minha opinião, estamos errando ao não tolerar de forma ampla e irrestrita mudanças na forma de elabora ção do claf. Acredito que uma atualização tecnológica se ria muito bem-vinda se fosse realizada com o objetivo de aumentar a relevância da mezuzá dentro do ambiente em que é usada. Explico-me a seguir:

É importante entender antes de tudo que o ritual nunca deve se transformar num objetivo em si. Nossos profetas dedicaram suas vidas a este ensinamento e nos deixaram um legado, onde empregaram rios de tinta, com poderosas mensagens tais como a proferida por Micá:

Acaso se comprazerá o Eterno com milhares de carnei ros e com rios de azeite? ... A ti foi dito, ó homem, o que é bom e o que o Eterno exige de ti: somente que saibas agir com justiça, amar a benevolência e caminhar humildemen te com teu Deus! (Micá 6:7-8).

Micá ensina que Deus não quer o ritual vazio e sim que o ritual seja o sustentáculo da busca pela justiça, pela be nevolência e pelo caminhar humilde. Eu infiro a partir daí que Deus não deseja o pergaminho da mezuzá e sim que saibamos cumprir com o que está lá escrito.

Não entrarei aqui na descrição do texto do Shemá, que vai dentro do pergaminho da mezuzá, pois a questão a ser analisada é qual a relevância de seu formato e não o

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zá em sua porta, identificam-se como judeus para o mundo exterior a partir da mesma. Ainda que não saibam o que está escrito no claf, a presença da mezuzá atingirá seu objetivo ao lembrar aos moradores da casa: sou judeu, te nho um compromisso ético e valores a serem mantidos, seja na minha casa ou fora dela. E, quem sabe, a presen ça da mezuzá não será um estímulo para uma aproxima ção com uma vivência judaica mais ampla. Sempre é bom lembrar que a síntese judaica feita por Hilel, “não fazer ao outro o que não se deseja para si” é seguida da recomen dação: “agora vai e estuda”.

A perenidade caracteriza o vínculo histórico que per mite a construção da identidade religiosa sobre uma base preexistente, assegurando também a motivação para a con tinuidade. Essa ligação atávica, que nos leva de Avraham a Moshé, dos profetas aos grandes comentaristas talmúdi cos, das transformações no universo judaico provocadas pela Haskalá (iluminismo judaico) ao Holocausto, da fun dação do Estado de Israel aos nossos dias, tem nos objetos rituais um auxílio. Eles materializam este vínculo atraves sando séculos, ganhando importância à medida que esti mulam nossa memória e nossa responsabilidade, ajudan do-nos a perceber que as mudanças ocorridas não dimi nuem nossa identidade, para cuja construção todos estes momentos contribuem.

Sob as duas óticas acima, a presença da mezuzá como parte de nosso equipamento religioso se justifica plena mente, mas ainda não se materializa a necessidade (ou o desejo) de preservar seu método tradicional de confecção. Para isso, temos que incluir o terceiro aspecto que relacio namos, ou seja, a de ser esta forma o melhor caminho para que a mezuzá cumpra sua função de alerta.

A mezuzá contém apenas um pequeno trecho da Torá, mas representa sua mensagem integral, e isso é fortalecido pela manutenção de processo similar em sua elaboração, sendo escrita por um especialista, sobre pergaminho ade quado, tal como a Torá. O valor associado a este método tradicional, longe de se relacionar a qualquer poder ou ma gia, faz parte de um contexto mais amplo, em que a cons ciência das particularidades para sua preparação deve nos alertar para as particularidades que se impõe no cumpri mento das normas de conduta que pautam a vida judaica.

Aproveitando o conceito do marketing moderno, de que “forma é conteúdo”, podemos também entender uma mensagem subliminar contida no fato de que, apesar das

seu conteúdo. Pela inferência feita acima decorre que a ri gor nem mesmo a mezuzá seria necessária. Bastaria que a mensagem fosse entendida e rigorosamente seguida. A mezuzá é um mero agente para a memória. Ela é neces sária para nos lembrar dos ensinamentos e, assim sendo, para quem se lembra ela é inútil e para quem se lembrará a partir dela qualquer formato seria válido.

No entanto sou de opinião que o descaso na transmis são desvaloriza completamente a mensagem. Em outras palavras: mensagens sublimes devem ser transmitidas de forma sublime. Assim que sou favorável a que haja a me zuzá e a que ela receba o tratamento dispensado aos ob jetos relevantes que possuímos.

Parece-me que esta foi a intenção dos formuladores das normas judaicas ao preconizar um método de escri ta do claf dentro da técnica mais apurada existente em sua época. Eles entendiam que um ensinamento funda mental deve ser transmitido com o apoio dos melhores métodos disponíveis, conforme a mais apurada tecnolo gia existente.

Esta percepção foi reforçada por uma visita ao Museu de Israel em Jerusalém onde vi que na época do Segun do Templo os judeus pregavam plaquinhas de prata com o texto do Shemá nos umbrais de suas portas. A meu ver estas plaquinhas devem ser as antepassadas das mezuzot em seu formato atual, pois elas satisfazem com perfeição o que está escrito na Torá: “E as escreverás [as palavras] nos umbrais de tua casa e em tuas portas” (Devarim/Deu teronômio 6:9) e o processo de gravação em prata é sem dúvida um processo sofisticado.

No entanto, parece-me que em algum momento da nos sa caminhada perdemos de vista a diferença entre proces so e finalidade e congelamos os métodos do passado. Ao fazer isto valorizamos o processo, às vezes em detrimen to do conteúdo.

Assim, hoje todos exigem um pergaminho escrito por um escriba treinado conforme a tradição milenar, porém poucos se dão ao trabalho de ler o que vai escrito em suas portas. E destes, apenas alguns dedicam tempo e esfor ço para analisar com suas próprias mentes e percepções o que está lá escrito, confrontando o ensinamento judaico e assimilando-o em suas vidas.

Desta forma, sou favorável a que o pergaminho da me zuzá seja substituído por um método mais moderno de im pressão, mas apenas se esta substituição trouxer mais

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inúmeras apresentações possíveis para a parte externa das mezuzot, seu interior permaneceu inalterado através dos anos: no judaísmo, mudaram hábitos e ritos, mas a essên cia de sua mensagem persiste através dos séculos.

A natureza quase artística da preparação do claf con tribui para conduzir o uso da mezuzá ao seu sentido ori ginal, porque transmite toda a força imaterial e a inspira ção da arte. Seu caráter único recorda que também cada um é único, sendo única a forma de relacionar-se com o mundo que nos cerca. Devemos buscar fazer de nossas vi das algo especial, retribuindo o milagre da existência com ações que a justifiquem.

A origem da palavra mezuzá é “o que movimenta” (o verbo lehaziz, em hebraico, significa mover) e se vincula ao movimento das portas, onde deve ser colocada. Por isso, fi nalizamos fazendo uso das palavras do Shemá: que a mezuzá às nossas portas possa servir de impulso para o bem ao sairmos de nossa casa ou quando a ela retornarmos, que nos mova na direção do melhor que podemos ser e nos ins pire sempre, nos portais de nossas vidas. (R. G.)

compreensão ao texto e aderência da família aos ensina mentos do nosso riquíssimo legado cultural.

E sou não apenas favorável como acredito que esta atualização, quando feita com consciência quanto ao seu objetivo, resgataria o papel que a mezuzá representou para nossos antepassados e nos colocaria mais próximos aos ensinamentos do Tanach.

Em outras palavras: se você se dispuser a escrever com esmero e compreensão o texto a ser afixado em sua porta, estudando-o e trazendo aquelas palavras para den tro do coração de sua família, é melhor que use o texto pre parado por você do que o terceirizado a um escriba. E nes te caso o texto pode ser impresso sim.

Mas, caso a substituição seja motivada apenas por in teresse econômico, com falta de compreensão de todo o processo que reveste a mezuzá, você estará errando me nos ao adotar um pergaminho tradicional.

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Yellni K off, g opni K e a identidade on-line

Identidade é detalhe; é nicho; está espalhada por toda parte. Quando o personagem de um filme é judeu e age como tal, cria-se entre ele e os judeus da plateia o laço do judaísmo. Um a cada três espectadores se perguntará o que os não judeus estão percebendo disso. Essa identidade que está na tela, num livro, numa receita, num odor ou numa mera citação, está hoje em cada can to. Sim, a identidade é prima-irmã dos mecanismos de busca digitais.

A construção de imagens nos diz muito sobre povos, raças e eventos. E, no entanto, desde que as plataformas digitais revolucionaram as comunicações, a natureza des sa construção e, principalmente, os mecanismos de distri buição, nos dizem muito mais.

Por natureza da construção podemos inferir, por exem plo, a credibilidade das imagens construídas. São imagens não apenas documentais, ou de propaganda – mas ima gens que podem ser processadas, descontextualizadas, ree ditadas sem que isso constitua, pelos padrões vigentes, um delito ético consensual.

As imagens produzidas pelo recente incidente com a flotilha que procurava provocar o bloqueio em Gaza, por exemplo, nos ensinam muito sobre isso. Parte do inciden te foi produzida exatamente para que algumas imagens pudessem acontecer. Mas há uma distância muito gran de daí para, digamos, a natureza das imagens produzidas por Leni Riefenstahl para o rally do Partido Nazista de

1934 em Nuremberg. Num documentário de Ray Muller produzido 60 anos depois, “The wonderful, horrible life of Leni Riefenstahl”, a cineasta do III Reich defende “O Triunfo da Vontade” baseada no fato de que o filme “não contém uma única cena reconstruída”. Cenas reconstruí das num ambiente documental. Apenas 16 anos depois, este não é mais um valor aplicável para se comentar a ética por trás da propaganda nazista feita através da mídia mais popular da época.

É emblemático o fato que, hoje, a expressão “attack to Israel” contabiliza 57 mil ocorrências no Google. Já a expressão “attack by Israel” aparece sete vezes mais, cerca de 378 mil vezes. Isso quer dizer alguma coisa. O que impor ta não é a produção da informação e muito menos a verdade que esteja contida nela; o que vale mesmo é a estra tégia de distribuição dessa informação – que passou a ser sutil, minimalista, viral.

No mundo imagético-digital, toda manipulação pode ser aceitável – e o impacto das imagens junto à socieda de se dá unicamente através das estratégias traçadas para disponibilizá-las aos nichos pretendidos. É fácil perceber isso como uma atitude criminosa nas imagens do inciden te de Gaza – mas é bem mais complexo entender a relati vização do conceito de “verdade” em filmes que podemos considerar extraordinários, como os de Michael Moore –“Bowling for Columbine” ou “Fahrenheit 9/11” são bons exemplos de como a verdade pode ser torturada e disso

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cinema em movimento

resultem bons “documentários” – ou de Sacha Baron Cohen – em particular uma obra-prima como “Bruno”, que leva essa possibilidade ao paroxismo.

Faço essa introdução para relativizar a noção de filmes com temática judaica, que passam a ser discutidos neste espa ço. No início deste ano, pelo menos dois filmes grandiosos, radicalmente judaicos, foram lançados comercialmente no Bra sil – e já estarão esquecidos nas locado ras quando essas linhas forem publicadas. É obvio que me refiro a Woody Allen e aos Irmãos Coen, que estão entre os mais importantes cineastas contempo râneos de todos os tempos.

É emblemático o fato que, hoje, a expressão “attack to Israel” contabiliza 57 mil ocorrências no Google. Já a expressão “attack by Israel” aparece sete vezes mais, cerca de 378 mil vezes.

deles está fora de controle. A mulher de Gopnik está deixando-o pelo seu melhor amigo; seu filho só pensa em ouvir rock na escola hebraica e sua filha rouba-lhe dinheiro para fazer uma cirurgia plástica. Um filme e outro discursam sobre a razão e a fé, ambos mergulham sobre os mitos e as ambiguidades dos valores judaicos.

“Só depois de ganhar o Oscar pode-se fa zer um filme como Um Homem Sério”, resumiu o ex-crítico do Variety, Todd McCarthy. É preciso conquistar a massa para poder voltar-se para o grupo.

Em “Tudo Pode dar Certo”, o protagonista Boris Yell nikoff está atormentado por uma notável parábola judai ca: a vida é tão fascinante que ele não pode levá-la adian te. Ele não fala com os amigos, mas os instrui. Fala dire tamente para a plateia, reconhecendo sua existência e des qualificando o mais elementar princípio narrativo do ci nema – o pacto da inexistência do aparato cinematográfico, celebrado entre o filme e o espectador, sem o qual, evi dentemente, o próprio filme não poderia existir.

Yellnikoff tem uma grande similaridade com Larry Gopnik, o protagonista de “Um Homem Sério”, Joel e Etan Coen. Ambos são físicos e, nos dois casos, a vida

Quando o cinema passou a falar, em 1927, quem falou foi Cantor Rabinowitz, cujo filho Jake parecia mais inte ressado em jazz e ragtime do que nas músicas de sinagoga. A voz do cinema soou alto porque ali estava uma oportuni dade de fazer dinheiro proclamando, pela música, a iden tidade judaica através das oportunidades massivas ofereci das pelo meio. As pessoas saíam na neve para ver Al Jolson entre o templo e o cabaré – e celebrar o encontro com sua própria identidade. Agora, vá ao YouTube e procure um prosaico Kol Nidrei: são mais de 650 performances. Quem já sentou em casa para ver todas?

Nelson Hoineff é jornalista, crítico de cinema, produtor e diretor de cinema e televisão e sócio da ARI.

Iuliya Sunagatova
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o que não, sim. e o que sim?

Semcriar suspense, vamos logo desvendando o título. Diz respei to à falência das ideologias proativas, que concebiam um sistema, uma estru tura de relações, uma forma de vida de acordo com certos princípios e se pu nham em ação para realizá-las. As ideo logias, a partir de uma maneira de ver, visavam a criar algo, a servir a algo, a lutar por algo. Num mundo em que as ideologias ‘transformadoras’ cederam à vida como ela é, em que os princí pios não resistiram às paixões, em que as utopias foram desmistificadas pela realidade, suas lutas deixaram de ser pela afirmação de algo, e passaram a ser pela negação do oposto.

As ideias em favor de algo têm tido sua expressão principal na negação do outro, aquele que é contra esse algo. A construção de regimes e a luta pela prevalência de ideias se faz pela des truição de seus opositores, pela repres são aos contestadores, pela demoni zação dos adversários, muito mais do que pela autorrevolução de conceitos, adaptação a novas condições, abando no de slogans ultrapassados, adoção de caminhos de convivência em lugar de hegemonias totalitárias. Com a per da das bandeiras ideológicas, com a derrocada de antigos ideais humanis tas, ser a favor de algo começa, TEM de começar, em ser contra algo. Todos já sabemos o que NÃO: não à burgue sia, não ao neoliberalismo, não à im prensa difamadora, não ao capitalis mo, ao imperialismo, aos EUA, não ao sionismo e a Israel, não aos judeus, não ao não islamismo. Em muitos lugares, não à democracia, não importando qual seja a alternativa a esse NÃO. As ideo

logias contemporâneas começam por negar, as escolhas são plebiscitárias, como na informática tudo se constrói num sistema de apenas duas variáveis: sim ou não.

O que não, sim, já sabemos, sabe mos antes de qualquer outra coisa.

E o que sim?

Penso muito nisso quando penso em nós, como judeus brasileiros, como judeus sionistas (ou não sionistas), e tento pensar como judeu israelense que também sou. Li recentemente na edição internacional do Jerusalem Post que, aos 150 anos do nascimento de Theodor Herzl, foi realizada uma excur são que percorria seu roteiro espacial e temporal em Budapeste, Viena, Paris, Jerusalém. Herzl partiu da busca de um não ao não, de uma resposta à nega ção do judeu – o antissemitismo – para reconstruir em forma de ideologia con temporânea, nacional, política e social um grande sim histórico. Essa excur são nos caminhos de Herzl foi em bus ca de um ‘sim’ que se possa construir hoje, apesar de todos os ‘nãos’.

Porque mais de um século depois, o povo judeu, o sionismo e Israel preci sam de novo dizer não ao não, e gran

de parte da construção de sua ideolo gia também se faz em ser contra, lutar contra, defender-se contra. O que não se pode, não se deve, não se admite constitui o fundamento das decisões, dos programas, das políticas. Como se defender da assimilação, das novas ameaças de extermínio, do antissemi tismo ressurgente, de flotilhas ‘pacífi cas’, dos perigos de concessões de Is rael a inimigos que não escondem sua intenção de destruí-lo, dos ‘inimigos’ internos que estão dispostos a essas concessões, de um mundo cada vez mais hostil e demonizante, do insidioso processo de deslegitimação, que quer voltar as páginas da história para antes de novembro de 1947, de uma bom ba atômica iraniana, da estigmatização do Estado dos judeus, do povo dos ju deus, dos judeus? Sem dúvida, é pre ciso encontrar a resposta, o não a isso tudo. O que não se pode, sim, isso sa bemos muito bem.

E o que sim?

Ante a realidade atual e sem descon siderá-la, se não tivesse havido 1947, e antes disso 1897, sem a ONU e sem Herzl, pensemos, à luz do que aprende mos nesse mais de um século, no que seria hoje nosso SIM, que futuro pen saríamos para o povo judeu, com base em sua história, suas crenças, sua vo cação de ser um povo só e o mesmo povo de Maamad Sinai. Existe um sio nismo para os dias de hoje? Qual a vi são estratégica para uma nação judai ca a partir da realidade? Enquanto se luta contra o que é inaceitável, pelo que sim lutar?

Para pensarmos juntos até o próxi mo Devarim, e depois dele.

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cócegas no raciocínio

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