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Rabino Dario Ezequiel Bialer

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Luiz Dolhinkoff

Luiz Dolhinkoff

a copa e o Fanatismo

rabino dario ezequiel Bialer

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“A conformidade e a uniformidade são formas moderadas, porém estendidas de fanatismo. Tenho que acrescentar que, com frequência, o culto à personalidade, a idealização dos líderes políticos e religiosos, a adoração a indivíduos sedutores, também se constituem em formas estendidas de fanatismo. O século 20 parece ter dado mostras excelentes neste sentido. Por um lado, os regimes totalitários, as ideologias mortíferas, o chauvinismo agressivo, as formas violentas de fundamentalismo religioso. Por outro lado, a idolatria universal de Madonna a Maradona. Talvez o pior aspecto da globalização seja a infantilização do gênero humano.”

Amos Oz

Os conceitos vertidos pelo escritor israelense fazem parte de sua obra Contra o fanatismo, que merece ser leitura obrigatória para todos. Com sabedoria e sensibilidade, ele enfrenta esta grande problemática da humanidade, indagando sobre cada pequena partícula de fanatismo que pode ser achada dando uma volta no quarteirão ou (por que não) dentro da própria casa.

O fanatismo agride o mais crucial da condição humana, que é a necessidade que todos temos de nos relacionar.

O homo ludens é uma definição do pensador holandês Johan Huizinga, que descreve as pessoas não apenas como seres pensantes (homo sapiens), mas como entidades que interagem através de jogos que resultam fundamentais para o deO que define a pátria? Uma linha totalmente artificial que diz: você desse lado faz parte, e desse lado é um estranho? Parece que a pátria é coisa de vida ou morte, porque é algo natural, que nos pertence ou à qual pertencemos. Que faz parte de nós como o DNA, mas que na verdade é 100% aleatório.

senvolvimento da cultura humana. O homem, como ser lúdico, aprende o imprescindível para sua subsistência participando de jogos que lhe permitem experimentar a solidariedade e a capacidade de superação. Que desenvolvem seu espírito competitivo, bem como a necessidade de se adaptar para fazer parte de um grupo.

O que diferencia uma criança de um adulto? O custo dos seus brinquedos, um ditado popular responde.

O jogo que a cada quatro anos une, como nenhum outro, todos os continentes e culturas é o futebol, que teve seu ápice pouquíssimo tempo atrás na Copa do Mundo celebrada no Brasil e deixou uma série de ensinamentos que excedem o caráter estritamente esportivo. Na Copa nós “jogamos” a pátria de uma forma simbólica.

Eu estive no Maracanã no jogo da primeira fase entre França e Equador. Como eu era um espectador neutro, desprovido da parcialidade pelo meu time, me dediquei a olhar e a perceber como as noções de patriotismo se expressavam.

Vi as pessoas separadas pelas cores de suas camisas e bandeiras, gritando pela sua terra (com um amor seguramente desconhecido fora do âmbito do futebol) e enfrentando o adversário como se fosse o inimigo. Quando encontravam alguém que vestia a mesma camisa, mesmo sendo totais desconhecidos, se abraçavam como se fossem muito próximos.

O que define a pátria? Uma linha totalmente artificial que diz: você desse lado faz parte, e desse lado é um estranho? Parece que a pátria é coisa de vida ou morte, porque é algo natural, que nos pertence ou à qual pertencemos. Que faz parte de nós como o DNA, mas que na verdade é 100% aleatório.

O patriotismo cria a ilusão de que é um vínculo atávico, como se se tratasse da pertinência a uma família.

Pareceria que, se a pátria fosse coisa casual, seria menos importante, como um vínculo muito mais frágil, como se o marco de contenção que outorga a nacionalidade se debilitasse. E a verdade é que o Estado-Nação, como nós o

conhecemos, é uma construção moderna. Não é que Deus criou o mundo com cada um dos países e suas fronteiras definidas.

A pátria nos é apresentada como uma coisa épica, grandiosa, quando desde as fronteiras geográficas não é mais do que uma linha artificial totalmente flexível que vai mudando de acordo com as contingências.

Um exemplo perfeito para entender isso foi o que aconteceu na segunda vez em que fui ao Maracanã, dessa vez para o jogo final entre Argentina e Alemanha. O torcedor brasileiro estava no estádio vestido de alemão, com o rosto pintado de amarelo, preto e vermelho, comemorando abraçados e eufóricos a derrota de “los hermanos”, como se fosse uma vitória própria.

Como se a pátria não fosse só uma questão territorial, mas a existência de um projeto em comum, nesse caso a destruição do adversário comum.

E esse me parece ser um ponto central para entender nossa realidade. A pátria deveria ser algo a nosso favor. Mas resulta ser contra o outro (que pode nem estar jogando) que ameaça minha hegemonia.

Essa ideia está presente (consciente ou inconscientemente) cada vez que a cidadania se apresenta diante das urnas para votar nos nossos representantes. Votamos projetos? Ideias? Ou votamos contra, para que de quem não gostamos seja derrotado?

Anular o outro é também uma forma de fanatismo. Porque, diante da falta de projeto, se aposta na inspiração individual. O craque que faça a jogada, que faça o cruzamento perfeito e que chute para o gol. Espera-se o messias que, com atributos divinos, resolva o que a sociedade é incapaz de realizar por si própria.

E enquanto este messias não chega, muitas vezes o que chega é a violência. Não é verdade que os violentos são violentos pelas circunstâncias, pelos governantes corruptos ou porque dessa forma vão ser ouvidos e levados a sério. Muito menos que Deus se agrade com isso.

A pessoa sempre tem uma escolha. Não tentemos tirar isso dela, pois então estaremos tirando o mais humano que ela possui. Nas palavras de Yeshayahu Leibowitz:

“Todo homem necessita comer e necessita urinar; de acordo com isto, comer e urinar não constituem valores. Mas um

Anular o outro é homem não necessita ser honesto, pode ser também uma forma de fanatismo. Porque, também corrupto em qualquer marco da sociedade, governo e cultura. Corrupto pode ser no que se refere à irresponsabilidade mal diante da falta de intencionada com a qual desempenha seu projeto, se aposta na cargo ou quando frauda a confiança que lhe inspiração individual. outorgaram seus companheiros, ou em sua

Espera-se o messias relação com sua mulher. Por isso, se encontrarmos um homem que, em toda situação que, com atributos sob a qual ele tem uma alternativa, opta divinos, resolva o que a pela honestidade, então é possível afirmar sociedade é incapaz de que para tal homem a honestidade é um realizar por si própria. valor. E esta é a conclusão para quem opta em favor de desfrutar os sentidos, a honra e o poder, ou em favor do patriotismo. E, é claro, em favor da fé religiosa” . Voltando ao Maracanã. Aquele dia em que os equatorianos se vestiam de equatorianos, os franceses de franceses e os brasileiros de brasileiros, havia um jovem coberto da cabeça aos pés com uma bandeira de Israel como se fosse um talit, com uma frase escrita, que bem poderia ser considerada uma benção ou uma oração. Bring back our boys. Olhei para ele e vi a construção de uma pátria diferente de todas as demais. Não a farsa da pátria que se disputa no campo de futebol, mas a verdadeira, que dia a dia se disputa no campo da vida, e tantas vezes infelizmente também no campo de batalha. A pátria que Israel se dispõe a construir e a defender é a que se faz bandeira. Trazer de volta nossos filhos não é o slogan para uma campanha política. É a mais decisiva convicção de que esse filho é o meu filho, que esses três garotos nos foram arrancados da nossa própria casa. Aquele dia todos os judeus do mundo torcíamos na expectativa de que regressariam a salvo à casa. Quando soubemos que tinham sido assassinados a comoção foi grande e, enquanto o coração nos dizia que a única coisa que queríamos era nos sentar em shivá, a razão indicava que não podíamos nos dar a esse luxo e que devíamos nos levantar e defender dos foguetes que diariamente caíam no país todo. No dia seguinte, após acharem os corpos, duas notícias se destacaram. Um casal de judeus americanos teve trigêmeos e deu a eles os nomes dos nossos meninos: Naftali, Gilad e Eyal e, no mesmo dia, Mohamed, um jovem árabe israelense, foi queimado vivo em Jerusalém. Um assassina-

to com tamanho requinte de crueldade, que eu tinha esperança que logo se descobriria a verdade e que seria uma vingança do próprio Hamas. Mas eu me enganei e o inimaginável se confirmou. A barbárie foi perpetrada por judeus, ditos religiosos, assim como os muçulmanos que vêm massacrando outros muçulmanos na Síria também se acham religiosos. O califado que está dilacerando o Iraque também se diz religioso, da mesma forma a Irmandade Muçulmana do Egito que promoveu vários incêndios em igrejas coptas na noite do Natal no momento em que elas estavam mais cheias.

O Corão contém 109 versos que chamam os muçulmanos a fazer a guerra contra os infiéis. Alguns desses versículos são bem gráficos, com imperativos de cortar dedos, cortar cabeças e perseguir os infiéis onde for que eles se escondam. Mas seria profundamente injusto condenar aos muçulmanos hoje por aquelas palavras.

A Torá e o Talmud também têm afirmações sanguinárias muito difíceis de aceitar para nós. Voltando a Amos Oz: “O fanatismo é mais velho que o Islã, que o cristianismo, que o judaísmo. Mais velho do que qualquer Estado, governo ou sistema político. Mais velho do que qualquer credo ou ideologia do mundo”.

O fanatismo não é patrimônio do Islã, porém há uma forte prevalência islâmica entre os perpetradores de crimes motivados pela xenofobia e pelo racismo. Isso, insisto, não tem a ver com a os livros sagrados, mas com a interpretação que se faz dos mesmos. O que está causando o mal no mundo de hoje não é a religião nem o ser humano. O que está causando o mal no mundo é a falta da mentalidade reformista nas religiões. Quando o fundamentalismo de todos os matizes estiver enfraquecido em todos os quadrantes o mundo terá dado um grande passo adiante.

Não há Reforma no Islã. Então os muçulmanos continuam vítimas dos que se julgam profetas, dos que se declaram califas, dos que se declaram sabedores do que é bom para todos os humanos. A grande maioria dos muçulmanos quer viver em paz. Isso é inegável, mas também insuficiente, por alguns motivos: O que está causando o Pelo fato de que os fanáticos são os mal no mundo de hoje não é a religião. O que que dominam no Islã. Porque há tan tos milhões de muçulmanos que, mes mo que em uma pequeníssima porcen está causando o mal tagem, ainda é uma enorme quantidade no mundo é a falta da de fanáticos. E, principalmente, porque mentalidade reformista a realidade indica que essa maioria pacínas religiões. Quando fica é uma maioria silenciosa, intimida da e imperceptível. E esse silêncio os tor o fundamentalismo de na irrelevantes. Quem se cala também é todos os matizes estiver inimigo da paz. enfraquecido em todos Israel vive hoje mais uma escalada proos quadrantes o mundo vocada pelo fundamentalismo religioso terá dado um grande que almeja islamizar o mundo todo e eliminar todos os infiéis, sendo os judeus os passo adiante. primeiros da fila. Não falta sustento ao raciocínio de que uma invasão, como a israelense a Gaza, circunstancialmente estimula o radicalismo. É a perversa lógica na qual nos introduz o fanatismo, que obriga Israel a fazer o que não quer. Eu, honestamente, não penso que essa operação militar vá resolver o problema. Hamas é uma ideia, uma ideia fanática e desesperada que surgiu da desolação e da frustração de muitos palestinos que, ao invés de reconhecer o problema em si próprios, o projetaram contra os vizinhos. Nenhuma ideia foi derrotada, jamais, através da força. Mas também não vejo outra saída do que dizimar o poder do inimigo, que desde o outro lado da linha lança foguetes e cava túneis para aumentar seu armamento e para infiltrar terroristas em Israel. Quando, quase dez anos atrás, Israel devolveu este território em troca de uma trégua que esperava ser o trampolim para uma convivência duradora, quem poderia ter imaginado que a resposta, ao invés de um governo dedicado a desenvolver seu próprio território, fosse dedicado quase que exclusivamente a atacar o país vizinho? Israel, nesse tempo, montou um inédito escudo de mísseis, para interceptar os ataques e dar um alerta aos cidadãos para correr aos refúgios que absolutamente qualquer lugar tem que ter. Do outro lado, o escudo é humano. Quando o exército israelense tende a poupar vidas pedindo aos palestinos para abandonar prédios que vão ser bombardeados, o Hamas chama as pessoas a que fiquem dentro desses lugares e que explodam junto com as pedras para virar fotos de jornal. Utilizar escudos humanos não é

resistência. É assassinato. É imoral e contrário a qualquer religião bem interpretada. Diante dessa realidade não há muito que Israel possa fazer a não ser se defender da melhor forma possível e esperar que um dia o Islã – as pessoas de bem do Islã – diga aos seus fundamentalistas que eles não o representa e que não vai mudar o que sua consciência lhes indica.

Uma última reflexão cheia de humor de Amos Oz:

“Creio que a essência do fanatismo reside no desejo de obrigar os demais a mudar. Nessa tendência tão comum de melhorar ao vizinho, de corrigir a esposa ou de guiar o irmão em vez de deixá-lo ser. O fanático é uma criatura até mesmo generosa. O fanático é altruista. Frequentemente está mais interessado nos demais que em si mesmo. Quer salvar a tua alma, quer te redimir. Liberar-te do pecado, do erro, de fumar. Liberar-te da tua fé ou da tua carência de fé. Quer melhorar teus hábitos alimentícios, lograr que deixes de beber ou de votar. O fanático se anula pelo outro. Das duas uma: ou se lança com os braços ao teu pescoço porque te ama de verdade ou se nos lança à tua jugular para demonstrar que és irredimível. (…) De uma forma ou de outra o fanático está mais interessado no outro que em si mesmo, pela muito simples razão de que tem um si mesmo bastante exíguo ou nenhum si mesmo em absoluto”.

Não se pode dizer melhor nem com mais ironia. A um fanático que se retira a razão de seu fanatismo não resta nada. Ele é nada.

A pátria não é a terra. É o projeto que nos une. É o sentimento de fazer parte da mesma família. Como disse Golda Meir, com toda a sensibilidade que uma mãe pode ter: A paz chegará no dia em que nossos vizinhos amarem mais seus filhos do que odeiam os nossos.

O rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabínico Latinoamericano Marshal T. Mayer, em Buenos Aires, Argentina, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém, Israel.

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