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Entrevista com a professora Ruth Wisse
O fator preponderante para avaliar se o mundo árabe avança para a democracia ou se está recuando em direção a mais repressão é identificar se o mundo árabe está pronto a aceitar o Estado de Israel sem pré-condições e sem preocupações.
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Aentrevista abaixo foi concedida ao jornal israelense Jerusalem Post em julho de 2011, quando ainda estava “quente” o episódio da flotilha que tentou furar o bloqueio israelense a Gaza em maio de 2010. Devarim decidiu publicar esta entrevista agora, três anos após ela ter acontecido, por julgar que seus conceitos continuam atuais e também para instigar a reflexão sobre o conflito que consome grande parte das preocupações dos judeus do Brasil.
Ruth Wisse é professora de Iídiche e de Literatura Comparada na Universidade de Harvard. Em 2007 recebeu a “National Humanities Medal” por sua “erudição e cátedra que iluminaram as tradições literárias judaicas”. É autora de The Shlemiel as a Modern Hero; If I Am Not For Myself: The liberal betrayal of the Jews; The Modern Jewish Canon: A journey through language and culture; Jews and Power e No Joke: Making Jewish Humor. É membro do conselho editorial do Jewish Review Books e comentarista habitual de Commentary.
JP – Professora Wisse, gostaria de perguntar sua opinião sobre a instável situação do caso da flotilha.
Ruth Wisse – Como denominaríamos a flotilha? É uma flotilha “acabe-com-os-judeus”. É como eu a chamaria, simplesmente. A arte da guerra modificou-se em nosso tempo, como você bem sabe. A guerra dirigida aos EUA, por exemplo, foi levada a cabo por um par de pessoas direcionando aviões contra edifícios.
Neste caso não se trata de um exército invasor e sim algo muito mais sofisticado que utiliza vários outros métodos, pois é muito difícil derrotar o exército de Israel da maneira convencional. A flotilha é enviada para ajudar o Hamas, que se ocupa em destruir o povo de Israel e o Estado Judaico, e o único meio de que Israel dispõe para se proteger é colocando certas restrições ao povo de Gaza.
Israel não tinha intenção de impor tais restrições quando se retirou de Gaza. Foi deixada uma tremenda infraestrutura para que fosse usada em proveito de sua prosperidade, mas, como se sabe, ela foi utilizada como plataforma para lançamento de mísseis e para todo o tipo de ataques contra Israel, cujas fronteiras não são impenetráveis.
Assim Israel teve de impor certas restrições para impedir o fluxo de armamentos, de modo a reduzir a capacidade agressiva de seu vizinho de Gaza. De repente aparece a tal flotilha, cujo propósito é o de desacreditar a tentativa de Israel de se proteger, dizendo: “Queremos trazer auxílio aos matadores de israelenses”. Não se trata de uma flotilha de ajuda, mas uma flotilha “mate-os-judeus”.
Se for chamada pelo seu nome próprio, será reconhecida pelo que realmente é. Neste contexto a nomenclatura é extremamente importante, clarificando da melhor forma a situação. Se ela for adequadamente designada, será reconhecida pelo que realmente é.
Penso que um dos objetivos principais do antissemitismo é o de distorcer e mesmo inverter a realidade e, quanto mais se embarca nessas distorções e inversões, tanto mais se facilita o antissemitismo e seu poder destrutivo. Portanto, creio que é importante usar os termos simples e corretos, de modo a trazer a necessária clareza moral e política à situação. JP – Professora Wisse, tendo escrito bastante sobre o conflito árabe-israelense, qual é seu pensamento sobre a Primavera Árabe, e mais especificamente sobre a atuação do governo norte-americano em suas tentativas de fazer avançar a paz e a democracia no Oriente Médio?
Ruth Wisse – Penso que é muito nobre a tentativa
O mundo árabe criou de inspirar aperfeiçoamentos no mundo, e continua a criar esses problemas e mas creio que nenhum aporte financeiro a qualquer país no Oriente Médio será útil, a menos que os líderes árabes e seus enquanto tal situação povos aprendam a aceitar o Estado de Ispermanecer, enquanto rael e sua irmandade com o povo judaico, usar Israel como bem como a legitimidade do Lar Judaico. desculpa conveniente A meu ver o fator preponderante para avaliar se o mundo árabe avança para a para não cuidar de democracia ou se está recuando em diseus problemas reção a mais repressão é identificar se o internos, enquanto mundo árabe está pronto a aceitar o Esnão implementar suas tado de Israel sem pré-condições e sem necessárias reformas, preocupações. Penso que este ponto simplesmente o mundo árabe não não é entendido. Não é certamente enprogredirá. tendido pelos árabes, mas também não o é pelos judeus e pelos israelenses. Certamente também não é entendido pelo atual governo dos EUA, contudo é intuitivamente entendido pela sociedade dos Estados Unidos, embora não de maneira conceitual e completa. Creio que este é o ponto que deve ser endereçado antes que qualquer progresso real possa ter lugar. Isto porque a organização política contra os judeus – que modernamente ganha o nome de antissemitismo –, além de ser uma das mais atrativas ferramentas da política moderna, é também uma das mais destrutivas. O antissemitismo na Alemanha e em outros países da Europa foi altamente destrutivo não apenas para os judeus, mas também para as respectivas populações. É o antissemitismo, mais do que qualquer outro fator, que fez com que a Alemanha tivesse perdido sua posição proeminente no mundo ocidental. Uma proeminência que ela teve no século XIX e que ainda não conseguiu retomar por causa do efeito corrosivo do antissemitismo na sociedade. Penso que o efeito corrosivo seja ainda pior nas sociedades árabes desde meados dos anos 1940 do século XX. Se as lideranças árabes, e o mundo árabe que as segue, tivessem conseguido aceitar a irmandade entre os filhos de Ishmael e os filhos de Isaac, simplesmente dizendo: “Sim, muito bem, nós possuímos 800 vezes mais terra do que os judeus – o que poderia até evidenciar uma ‘superioridade’ da civilização árabe muçulmana sobre a civilização judaica – e nós conseguiremos ter sucesso com 800 vezes mais terra”.
Ao invés disso, o que o mundo árabe fez foi usar a sua organização política contra os judeus e para a guerra contra Israel, artificialmente doutrinando o deslocado e perseguido povo palestino, assegurando que ele permaneça por muitos anos em campos de refugiados, como um perpétuo espinho nas costas de Israel.
O mundo árabe criou e continua a criar esses problemas e enquanto tal situação permanecer, enquanto usar Israel como desculpa conveniente para não cuidar de seus problemas internos, enquanto não implementar suas necessárias reformas, o mundo árabe não progredirá.
Creio que a análise do antissemitismo é o assunto mais mal-entendido e mais mal diagnosticado da política moderna. Pelo fato de ser mal direcionada, conscientemente tenta tirar a ênfase da política interna, apontando para fora. Estão sempre dizendo: “Veja, é culpa dos judeus, se apenas eles não estivessem em Israel, se apenas não estivessem construindo assentamentos, se apenas não estivessem fazendo isso ou aquilo”. O teor da acusação sempre muda, mas não o instrumento político, o ódio aos judeus permanece inalterado.
JP – Professora Wisse, gostaria de pedir esclarecimento sobre sua referência ao conflito árabe-israelense como um “paradigma errado”. O que a senhora quer dizer com isso?
Ruth Wisse – Bem, é um paradigma errado em termos de conflito porque quase todos pensam que existem dois lados em guerra. Certamente, pessoas como o jornalista Tom Friedman do The New York Times, bem como muitos líderes israelenses e mundiais aceitam tal paradigma, e isto é tão absurdo! Nada poderia estar mais afastado da verdade.
Esta não é uma guerra entre duas entidades por uma terra, como às vezes é colocado, e não é uma “guerra normal”, em termos de duas entidades que se defrontam com interesses em conflito: este é um genuíno assalto unilateral e muito desequilibrado. Não acho que haja existido na
Frank Ramspott / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 49
história humana uma guerra tão desequilibrada como a do conflito dos últimos 60 anos do mundo árabe contra Israel.
Assim, este não é um conflito que possa ser finalizado, pois não se consegue trazer os dois lados a uma mesa, já que existe um único lado!
Aos judeus não interessa a guerra. Certamente não nos interessa guerrear com o povo do qual procuramos aceitação! Desta forma, nossa estratégia é dizer: “Por favor, aceitem-nos”, “por favor, faremos isto, tentaremos isto, faremos aquilo, tentaremos aquilo”. E a única razão de possuirmos uma força de defesa forte e que precisa ser mais forte com o passar dos anos é porque ela tem que estar lá, pois é o único meio de o Estado de Israel sobreviver.
Do outro lado existem países que não são democráticos, dirigidos por líderes que podem unilateralmente mudar de pensamento e de política da noite para o dia. Esses países têm usado, como menciono acima, sua organização política contra Israel de uma forma que eles acham muito criativa.
Para dar um exemplo bem claro, o mundo árabe é constituído de muitas diferenças. Há diferenças internas, há conflitos entre o Irã e o Iraque, entre sunitas e xiitas, entre os que querem ser muçulmanos tradicionais, entre os que são tradicionalistas e querem se tornar seculares, enfim, há todos os tipos de conflitos internos. Quão conveniente tem sido para o mundo árabe e para boa parte do mundo muçulmano usar a oposição a Israel como o elemento de aglutinação. Creio que não haja nada mais no mundo árabe, e em boa parte do mundo muçulmano, tão atrativo como o antissemitismo para forjar a sua unidade.
Minha tese é de que a utilização da organização política contra os judeus e contra Israel será destrutiva aos seus usuários e aos seus apoiadores. Parece destrutiva aos judeus porque visa-os, mas, de fato, embora possa destruir judeus fisicamente, não consegue destruí-los, porque os judeus não usam o conflito como recurso para resolver seus problemas.
Os judeus “olham para dentro”. A democracia “olha para dentro”. Interessa-se pelo desenvolvimento de recursos internos. O mundo árabe tem tais recursos, tem recur-
Uma das tragédias de sos físicos em abundância e tem também ter perdido contato com o iídiche é que recursos humanos. Creio que esses recursos humanos estão muito subdesenvolvidos por causa de suas preocupações com perdemos contato com “aquilo lá fora”: a crescente mania, eu dio nosso processo de ria também, a crescente patologia de vimodernização. O que sar os judeus gritando o tempo todo: “Isnos falta é a história rael, Israel, Israel”, como se a presença de Israel fosse de alguma maneira relevante do que deu errado. Se a ao mundo árabe. conhecêssemos melhor, estaríamos mais bem JP – Professora Wisse, a senhora escrepreparados para lidar veu no passado que os judeus consticom a situação atual. tuíam-se numa falsa entidade política. Gostaria de perguntar como caracterizaria o Estado Judeu hoje. Ruth Wisse – Às vezes uso a seguinte frase, que ouvi de um chofer de táxi em Boston, para caracterizar o que o Estado judeu se tornou: “A frente de luta do que costumávamos chamar de a Civilização Ocidental, do mundo livre e democrático”. Certamente não por escolha. Não há um só israelense que eu conheça que gosta de pensar que está em tal posição ou que gosta de exercer tal papel no mundo. Mas os judeus foram colocados em tal posição, e então a questão é: como se comportar? Chamei aos judeus, no passado, de uma falsa entidade política muito relutantemente, porque meu ponto principal é que os judeus não podem solucionar os problemas dos quais são acusados. Este é o dilema com que os judeus se defrontaram por muitos e muitos séculos e ainda se defrontam hoje, embora de uma forma diferente. Como podemos solucionar a situação dos árabes, como podemos fazê-los aceitar o Estado de Israel? É um desejo natural de solucionar tais problemas, porque a agressão é voltada contra nós. Acho que a primeira coisa a ser reconhecida é que somos o último povo que pode fazer algo para achar uma solução. A única maneira de auxiliar é certificar-se que o agressor entende que nunca conseguirá vencer-nos. Fazer o agressor acreditar que ele não necessita da agressão. Se pudermos persuadir o agressor que a agressão será mais prejudicial a ele próprio, aí penso que temos uma chance. Mas, até agora, nem Israel nem o povo judeu entenderam suficientemente seu papel na política para tomar tal iniciativa.
JP – Professora Wisse, a senhora tem sido chamada de otimista por uns e de pessimista por outros. Por favor, diga algo a este respeito.
Ruth Wisse – Quando ouvem meu diagnóstico, dizem: “Oh, a senhora é tão pessimista!” porque o meu diagnóstico requer uma mudança radical no mundo árabe. E eles acham pessimista esperar que a mudança aconteça para o lado positivo.
E assim pensam ser mais otimista acreditar que Israel seja responsável. E por que isto seria mais otimista? Porque assim basta convencer aos judeus de que retirando-se daqui ou não construindo ali será mais fácil chegar a uma solução. Mas isto é um falso otimismo.
Porque desta forma tudo o que tenho de fazer é persuadir o meu lado de que eu é que devo mudar para que tudo se solucione. E como é fácil persuadir os judeus de algo! Temos visto quantos compromissos os judeus estão preparados a fazer. Assumimos compromissos todos os dias!
Porém, no instante em que assumimos compromissos as coisas somente pioram, pois estamos dando munição ao lado contrário, reforçando a ideia de que nós somos os responsáveis, e que por isso estamos fazendo as concessões.
Eu insisto que o problema está no aspecto unilateral do conflito e que sua solução depende exclusivamente dos árabes decidirem descartar de sua política o antagonismo com Israel.
Parece pessimista porque sabemos que o mundo árabe levará um tempo muito longo para se modificar, mas eu gostaria de dizer que sou otimista porque realmente espero que o mundo árabe vá mudar.

JP – Concluindo, professora Wisse, parece-me curioso como uma pessoa erudita em iídiche, uma intelectual co-
nhecida, acaba escrevendo um livro sobre poder e política judaica?1
Ruth Wisse – É uma boa pergunta. Às vezes eu menciono, brincando, que a literatura iídiche me ensinou a história dos erros judaicos. E isto não está muito longe da verdade, pois se você ler a moderna literatura iídiche perceberá quão profundamente os judeus adotaram ideias que se revelaram autodestrutivas. O comunismo é uma, o socialismo radical é outra, uma forma de secularismo é ainda outra e especialmente a ideia de que os judeus devem consertar o mundo. Esta era uma ideia comum nos círculos judaicos, particularmente nos anos 1920-30.
Não dá para discutir isto em maior profundidade nesta entrevista, mas se você ler literatura iídiche e entrar em contato com as posições de seus grandes escritores, e quais as consequências de algumas delas em termos políticos, verá que eles não poderiam ter previsto suas consequências políticas. Não se pode culpá-los retroativamente e longe de mim tal intenção.
Eles estavam experimentando e entrando em um mundo que ninguém conhecia bem. Era a primeira vez que a modernidade ocorria, e então tentaram ajustar-se o melhor possível. Porém nós, agora, olhando para trás, certamente podemos perceber o que deu certo e o que não deu certo e podemos aprender disso.
Uma das tragédias de ter perdido contato com o iídiche é que perdemos contato com o nosso processo de modernização. O que nos falta é a história do que deu errado. Se a conhecêssemos melhor, se a tivéssemos melhor internalizado, estaríamos mais bem preparados para lidar com a situação atual.
A propósito da ligação entre o iídiche e a política, deixe-me citar um único exemplo. Estou presentemente escrevendo um livro de humor iídiche2, mas que será muito diferente de outras coleções de humor judaico. Espero que seja engraçado, que contenha parte do melhor humor judaico, mas meu propósito é de alertar contra excessos, como no exemplo que se segue, que se conecta com nosso tempo.
Uma das peças de humor cheia de sagacidade, ambientada no gueto de Varsóvia, diz: “Que Deus proíba que esta guerra continue enquanto pudermos resistir”. Se você entende bem esta piada, então você entende as terríveis consequências de quão profundo o humor judaico se tornou.
O natural seria “Que Deus proíba que esta guerra continue por mais tempo do que podemos resistir”. Porém, para os judeus o valor supremo é resistir e não obter a vitória ou uma existência sadia. É simplesmente que um entre dez, ou não sei quantos, sobreviva. É isto que está na origem desta piada.
Esperamos que o humor israelense resulte em algo completamente diferente, pois a situação dos judeus em Israel é completamente diferente, visto que Israel é capaz de defender-se. Que Deus proíba que este tipo de piada se torne característica dos israelenses.
Notas
1. O livro Jews and Power, publicado em 2007 pela Schocken Books, sem tradução para o português. 2. O livro No Joke: Making Jewish Humor, publicado em 2013 (depois desta entrevista) pela Princeton University Press, sem tradução para o português.
Traduzido do inglês por Daniel Kovarsky.


