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Luiz Dolhinkoff
as lonGas somBras da Guerra de 1967
luiz dolhinkoff
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Nos dias que antecederam a destruição de Israel e a aniquilação de sua população em junho de 1967, estas foram as palavras de ordem lançadas antes das primeiras bombas:
“Soldados! 300 mil combatentes do Exército do Povo estão com vocês na batalha, e atrás deles 100 milhões de árabes. A nata de nossas tropas está à frente. Ataquem os assentamentos do inimigo, transformem-nos em poeira, pavimentem as estradas árabes com os crânios dos judeus. Ataquem sem piedade” [ministro da Defesa sírio em exortação às suas tropas].
“A guerra só terminará com a destruição de Israel” [governo sírio].
“Já é tempo [...] de tomar a iniciativa de destruir a presença sionista na terra árabe” [Hafez al-Assad, ditador sírio].
“Quando as hostilidades começarem”, calculava [o coronel Mustafá] Tlas [comandante da frente central], “a Síria e o Egito poderão destruir Israel em, no máximo, quatro dias.”
“Eu acreditava que [...] atacaríamos primeiro e destruiríamos Israel em questão de horas. Eu tinha muitas ideias sobre o que fazer com Israel depois de conquistado e eliminado” [general Amin Tantawi, comandante da 4ª Divisão egípcia]. Este texto pretende romper a inércia pseudoexplicativa de alguns mitos cristalizados através do impacto da ficcionalização parcial da história. Para entendê-lo é fundamental ler suas notas de rodapé, ao final do artigo.
[O marechal Amer, chefe das Forças Armadas egípcias] expressou numa conversa telefônica com Ahmad Shuqayri a esperança de que “logo poderemos tomar a iniciativa e nos livrarmos para sempre de Israel”.
“Destruiremos Israel e seus habitantes, e quanto aos sobreviventes – se houver algum – os navios estarão prontos para deportá-los” [Ahmad Shuqayri, chefe da OLP].
O primeiro-ministro argelino, Houari Boumedienne, declarou: “A liberdade da pátria será completada com a destruição da entidade sionista”.
O ministro do Exterior do Iêmen, Salam: “Queremos a guerra. A guerra é a única forma de resolver o problema de Israel”.
As forças jordanianas devem “destruir todos os edifícios e matar todas as pessoas que estiverem” nessas áreas, incluindo civis [israelenses].
Datadas dos dias anteriores ao início da Guerra de Junho, como ficou conhecida a catastrófica guerra árabe-israelense de 1967, estas declarações de altas autoridades árabes podem ser encontradas na obra fundamental de Michael B. Oren.1 A maioria, em todo caso, é bastante conhecida (para o leitor atual que não tenha lido o livro, causará certa estranheza, e será talvez motivo de uma busca na internet, somente a obscura sigla “OLP”, na quinta citação).
Com a esmagadora – literalmente – vitória árabe em apenas três semanas dos combates mais cruéis e cruentos da história recente, até que o último foco de resistência israelense fosse brutalmente eliminado, o mundo de certa forma se acostumou, como afinal se acostuma a tudo (ou, ao menos, a tudo que seja um fato histórico consumado), com aquilo que o Ocidente, aos poucos, passou a reconhecer, em mais um surto de arrependimento tão inútil quanto tardio, como o “Segundo Holocausto” – em que 600 mil judeus israelenses foram mortos, enquanto quase um milhão abandonou suas casas, num dos maiores e mais dramáticos êxodos da história contemporânea.
Cunhou-se, então, a expressão “limpeza étnica” para definir e resumir a tragédia tão anunciada, ou seja, a destruição de Israel depois do colapso de suas linhas de defesa, e a expulsão brutal daqueles que não foram mortos pelas centenas de milhares de soldados das forças árabes invasoras.2 Tudo isso, como dito, é bastante conhecido, e tudo fora fartamente anunciado pelas mesmas forças árabes à época, conforme reproduzido acima.
Uma dessas estranhas, mas familiarmente trágicas, confluências de circunstâncias históricas, geopolíticas, militares e ideológicas, neste caso explicáveis – mas jamais justificáveis – pelo contexto da Guerra Fria, além da simpatia de parte importante do chamado “campo da esquerda” pela “causa árabe”, paralisou o mundo por pouco tempo, porém por tempo mais do que suficiente para que o jovem Estado de Israel, então com apenas 19 anos, fosse destruído.
O Conselho de Segurança da ONU, em seguida, discutiria e tentaria votar resoluções contra os Estados árabes agressores e pela reconstrução de Israel, mas foi em vão. Tudo seria vetado pela hoje extinta URSS. E os EUA, única força capaz de reverter a situação, não enfrentariam a ex-URSS e seu poderio atômico, somados às centenas de milhões de árabes e seu poder petroeconômico, por mais um punhado de judeus. A Alemanha nazista não foi combatida, é bom que ainda se diga, por seu programa de extermínio dos judeus europeus, mas porque invadiu a Polônia.
Mas se tudo isso é tão conhecido (e levou o famoso historiador marxista Eric Hobsbawm a cunhar sua famosa expressão “o pequeno século das grandes catástrofes”, em referência ao século XX e suas tragédias, como a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial, o Primeiro Holocausto e o Segundo Holocausto, que marcaria seu “fim” no ano de 1967 – daí a “pequenez” do século)3, por que recordá-lo mais uma vez, mesmo se no contexto dos 47 anos desses eventos funestos?
Porque é preciso sempre recordar. E porque lembrei há pouco de um surpreendente fato correlato a essa imensurável tragédia: a existência, à época, de um “movimento pela libertação da Palestina”.

O leitor pensará, naturalmente, que estou equivocado. Como poderia existir um movimento pela libertação da Palestina em 1967, quando a Palestina se tornou independente em 1948, com a saída das forças coloniais britânicas? Realmente, parece um equívoco – mas, em todo caso, não é meu.
Se o leitor parou de ler este artigo para pesquisar na internet a obscura sigla referida no início, ou seja, OLP, terá descoberto que ela significa, de fato, “Organização para a Libertação da Palestina”, criada no Cairo em 1964, sob os auspícios de Nasser e da Liga Árabe. Mas se em 1964 não havia nenhuma Palestina a libertar, mas apenas o Estado de Israel, além de territórios da ex-colônia britânica governados, à época, por árabes, ou seja, Gaza (então parte do Egito), Jerusalém Oriental e a chamada Cisjordânia (partes da Jordânia), qual o sentido, ou melhor, qual o objetivo, dessa hoje esquecida organização? A acreditar em seus estatutos, construir um Estado “palestino” unindo os territórios de Israel, Gaza e Cisjordânia. Ou seja, reeditar a antiga Palestina Britânica, com exceção do que era, durante o Mandato Britânico, a chamada Transjordânia (atual Jordânia).4 Mas para que, afinal, perguntará ainda o leitor? Para ser o Estado do “povo palestino”.
Muito deste artigo há de parecer ficção, mas é pura história; a história de processos e causas quase esquecidos de uma história muito lembrada (a do Segundo Holocausto), razão, aliás, de ele ter sido escrito.
Durante o Mandato Britânico (1922-1948), todos os habitantes da região, árabes e judeus, eram chamados “palestinos” (o antigo jornal judaico The Jerusalem Post, que existiu entre 1948 e 1967, chamava-se, durante o mandato, The Palestine Post). Antes do período britânico, a região, parte do Império Otomano durante meio milênio, não constituía nenhuma unidade geopolítica, mas estava dividida em províncias (velayats) otomanas, em nada correspondentes à futura Palestina Britânica – que, aliás, foi buscar esse nome na antiga Palestina Romana. Portanto não havia, antes do curto Mandato Britânico, nem Palestina nem palestinos.5
Enfim: os referidos palestinos de 1964 eram simplesmente os árabes da própria Palestina Britânica, que agora assumiam o nome outrora rejeitado (compreensivelmente, por sua origem colonial), e, com o nome, reivindicavam uma nova identidade étnica: não mais árabes de uma das muitas ex-colônias europeias desenhadas sobre antigas províncias otomanas, mas “palestinos” (a Resolução da ONU de 29 de novembro de 1947, que decretou a extinção e a partilha da Palestina Britânica, naturalmente não se refere a “palestinos”: “Os [futuros] Estados independentes judeu e árabe [...]” [Resolução 181, I, 3]).6
A destruição de Israel em 1967, como referido, aconteceu depois de três semanas de guerra, iniciadas em 4 de junho com a invasão, a oeste, pelas forças egípcias, seguidas pelas forças jordanianas, sírias e iraquianas, além de voluntários de dezenas de países árabes, que formaram a Segunda Legião Árabe (a primeira fora derrotada na guerra de 1948):
Convergiam para o Sinai contingentes militares de países [como] Marrocos, Líbia, Arábia Saudita [e] Tunísia. [A] Síria [concordou] em enviar uma brigada para lutar ao lado dos iraquianos na Jordânia. Combinados, os exércitos árabes tinham 900 aviões de combate, mais de cinco mil tanques e meio milhão de homens. Acrescente-se a isto um imenso poder político (p. 205 da obra citada de Michael Oren).
Com a capitulação final das FDI (Forças de Defesa de Israel) no dia 25 de junho, a Síria se apoderou da Galileia, enquanto o Egito estendia seu território de Gaza até Jerusalém Ocidental e a Jordânia, mais fraca, grosso modo se contentava em manter sob seu domínio a chamada Cisjordânia, além de Jerusalém Oriental.
Não, caro leitor: nenhum “Estado palestino” foi afinal criado, nem era esse, de fato, o verdadeiro objetivo da guerra de 1967. A criação da Organização para a Libertação da Palestina em 1964, quando não havia nenhuma “Palestina” a libertar, fora, na verdade, parte da batalha de propaganda, visando fornecer um objetivo político defensável a uma guerra política e moralmente indefensável, cujo fim se limitava àquele que, tragicamente, afinal atingiu: a destruição de Israel e a morte ou expulsão de todos seus habitantes judeus.7
Luis Dolhnikoff é escritor, articulista político e tradutor. Trabalha atualmente na tradução para o português de The Torah: A Modern Commentary, do Rabbi Gunther Plaut, para a WUPJ.
Notas
1. Seis dias de guerra – junho de 1967 e a formação do moderno Oriente Médio (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001, pp. 92, 108, 129, 169, 202, 203, 205 e 349). Mi-

chael B. Oren é real (e realmente um respeitado historiador), assim como seu livro e todas suas citações. 2. A expressão “limpeza étnica” (“ethnic cleansing”) foi criada durante a Segunda
Guerra Mundial e popularizada durante a guerra civil na Bósnia, nos anos 1990. 3. A famosa expressão de Hobsbawm é, na verdade, “o curto século XX” (“the short 20th century”), referindo-se ao seu “início” em 1914 e ao seu “fim” em 1989 (queda do muro de Berlim). 4. Todas as afirmações deste parágrafo são factuais. 5. Idem. 6. Idem. 7. Este texto pretende romper a inércia pseudoexplicativa de alguns mitos cristalizados através do impacto da ficcionalização parcial da história (o fim desta nota separa o joio ficcional do trigo factual; mas adianto que todas as citações são factuais). Não tem, por outro lado, a intenção de “negar” a atual existência de um autoproclamado povo palestino, ainda que ele não tenha existência histórica enquanto tal, ou seja, como um povo com qualquer identidade étnico-linguística separada ou separável da grande identidade árabe. Sem adentrar aqui em complexos argumentos geopolíticos-antropológicos-culturais, contemporaneamente, depois do surgimento do Estado-Nação na Europa moderna e do processo de descolonização do século XX, deixando para trás protoestados em busca de nações, povos são, grosso modo, construções principalmente políticas, e a vontade de autodeterminação, sua razão (quase) suficiente. Mas nada disso justifica malbaratar fatos históricos robustos, enquanto se intoxica politicamente o presente.
Não se pode explicar o fracasso histórico do movimento palestino apenas pela ação ou reação israelense. Nenhum dos incontáveis povos que, durante o século
XX, deixou a condição colonial pela autodeterminação, da gigantesca Índia ao minúsculo Timor Leste, passando pela totalidade da África, pediu permissão às forças antagônicas. Os palestinos, que buscam um objetivo geopolítico frustrado desde 1948, são um caso único (para não falar do grande e grandemente infeliz povo curdo, o verdadeiro povo esquecido – e injustiçado – do período histórico da “autodeterminação dos povos”). Exceções exigem explicações particulares. Se os africanos do sul lograram acabar com o regime do apartheid e encontrar um modus vivendi com os brancos, e se os vietnamitas puderam derrotar (politicamente) a maior máquina militar da história, a explicação, neste caso, não se limita e não pode se limitar à “malignidade especial” da “entidade sionista”, ou ao apoio irredutível do irredutivelmente maléfico Tio Sam (tantas vezes derrotado, do Vietnã ao Irã do xá, passando pela Nicarágua de Somoza etc.). A explicação real e realista passa, necessariamente, pela opção histórica do movimento palestino de priorizar, no contexto maior da geopolítica árabe, não a construção de seu Estado, mas a destruição do Estado de Israel (sequer a derrota de 1967 alteraria esse quadro, como o prova a nova tentativa na Guerra do Yom Kippur, em 1973). Isso só começaria a mudar, de forma hesitante, a partir dos Acordos de Oslo, em 1993. Porém não o bastante para que as hesitações e contradições palestinas não matassem os acordos de Camp David em 2000 – fato ainda mais determinante do que o assassinato de Yitzhak Rabin em 1995, pois este não impediu a realização das próprias conferências de Camp David, que somente não levaram a um acordo histórico pela desistência de Arafat às vésperas da assinatura (motivada, fundamentalmente, pelas consequências políticas contemporâneas das contradições históricas do movimento palestino). De lá para cá, com intifadas, ascensão do Hamas, ascensão do Likud, morte de Arafat, coma de Sharon etc., o que era difícil se tornou imponderável. Mais uma vez, e tragicamente – pois a existência de dois Estados é um imperativo inadiável.