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Rabino Sérgio R. Margulies

a tenda comunitária

rabino sérgio r. margulies

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Do convite

Sigmund Freud (1856-1939) e Theodor Herzl (1860-1904) foram vizinhos na cidade de Viena, porém nunca se encontraram. Há os que dizem ‘ainda bem’, pois talvez Freud convencesse Herzl a abandonar sua obsessão sionista ou Herzl persuadisse Freud a deixar o estudo dos sonhos para se concentrar na realidade política.1

O rabino Richard Hirsh (1926-) ensina que, alguns anos antes de Herzl escrever o livro O Estado Judeu, um grupo de jovens pioneiros foi, em 1882, para a terra de Israel constituindo um movimento cuja denominação Bilu é baseada no verso bíblico do profeta Ieshaiahú [Isaías] 2:5: Beit Iaakov lechu uneilcha beor Adonai, “Vem, ó Casa de Jacob, e caminhemos sob a luz do Eterno”.2 Bilu é um acrônimo das primeiras quatro palavras desta frase. As palavras ‘sob a luz do Eterno’ foram deixadas de lado, demonstrando o caráter não religioso do grupo.

Na mesma época em que o movimento Bilu foi organizado na Europa Oriental o movimento Reformista ganhava contornos institucionais na América do Norte e utilizou a mesma frase do profeta Ieshaiahú [Isaías] como fonte de inspiração. No entanto, eliminaram as duas primeiras palavras – Beit Iacov, Casa de Jacob – e mantiveram o resto do verso, evidenciando a irrelevância que atribuíam ao conceito de povo e seus elementos nacionalistas.

Se os membros do Bilu e os líderes da Reforma se encontrassem, apesar da distância geográfica, provavelmente teriam um embate ideológico. Quem se renderia a quem? Qual posição iria prevalecer e qual iria desvanecer? Talvez o diálogo pudesse florescer a partir dos distintos focos para que um aprendesse do outro? Para que este aprendizado se tornasse possível seria necessária a não exclusão das concepções antagônicas e a apreciação da raiz comum.

O filósofo Martin Buber (1878-1965) explica: ‘A’ é oposto a ‘– A’. Assim, podemos pressupor que ‘A’ exclui ‘– A’. No entanto, o judaísmo anseia asA vitalidade judaica está em criar ambientes de convívio. Assim são construídas e mantidas tendas comunitárias – escolas, sinagogas, organizações juvenis, femininas, culturais, sociais, esportivas, assistenciais, entidades de representação – como referências para que o espírito não seja refém do deserto do descaso.

segurar a coexistência de ‘A’ com ‘– A’. Abraçar a diversidade, com seus paradoxos, é uma das fontes da riqueza judaica. Por isso, pontua o rabino Abba Hillel Silver (1893-1963), o judaísmo rejeita a fórmula ou/ou. Prevalece a inclusão expressa pelo ‘e’ que incorpora os opostos para que deles emerjam novos e constantes aprendizados.

O propósito judaico de incluir surgiu já na tenda de habitação do primeiro hebreu e da primeira hebreia, Abrahão e Sara. A tenda deles era aberta a fim de convidar, abraçar e incluir.

Do convívio

Na caminhada pelo deserto em sua busca pela liberdade, o povo de Israel resgatou os ideais da tenda de Abrahão e Sara construindo a tenda comunitária, denominada em hebraico de Mishkan, traduzido por Tabernáculo. No deserto, o Mishkan – a tenda comunitária – tornou-se uma referência para que ninguém se sentisse desvinculado.

A vitalidade judaica está em criar ambientes de convívio. Assim são construídas e mantidas tendas comunitárias – escolas, sinagogas, organizações juvenis, femininas, culturais, sociais, esportivas, assistenciais, entidades de representação – como referências para que o espírito não seja refém do deserto do descaso.

Sob três pilares, afirma o Talmud, o mundo se sustenta: oração, Torá e atos de benevolência. A tradição judaica estipula que oração requer o minian – dez pessoas e o estudo da Torá seja feito em chavruta –, parceria. Deste modo, através de oração e estudo o espaço é de convívio e de compartilhamento. Para os corpos enfraquecidos e corações contritos o ato é da inclusiva benevolência em que a face do outro não fica oculta da face de cada um.

Da mobilidade

O Mishkan era móvel e acompanhou o povo em sua caminhada de quarenta anos. De modo similar, o ensinamento da Torá nos acompanha, pois seu significado é constantemente interpretado. Por isso é denominada por Torat chaim, Torá da vida. Tal como a vida é dinâmica, a Torá, ao ser da vida, é igualmente dinâmica. Seu formato, utilizado para fins ritualísticos, é de rolo: gira. Segue. Não fecha. Sua mensagem é como uma nau em permanente viagem que vislumbra as ilimitadas perspectivas do horizonte. Eventualmente, nós, seus leitores e estudiosos, ancoramos no porto das concepções imutáveis. Faz parte para alguns momentos da vida. Não para a vida toda. É importante, de tempos em tempos, zarpar, oxigenar o espírito e ventilar as ideias. Ambientes fechados mofam. Não somente os fechados pelas paredes, mas aqueles cujo espírito e mente não se oxigenam. Nossas casas comunitárias, ao se renovarem, seguem o paradigma da tenda comunitária do Mishkan de abertura e transformação.

Da visão

O modelo de abertura do Mishkan foi seguido na construção do Primeiro Templo em Jerusalém. Uma passagem da literatura rabínica ensina3: Quando um rei constrói um palácio as janelas são estreitas na parte externa e mais largas na interna a fim de que a luz adentre. Mas na construção do primeiro Templo em Jerusalém – palácio simbólico do Rei dos reis, o Soberano do Universo – as janelas foram construídas de modo oposto, isto é, estreitas do lado de dentro e mais largas do lado de fora a fim de que daquele ambiente saia luz.

A concepção é de que o ambiente religioso não fique voltado para si mesmo, seja capaz de atuar no mundo, abrir-se para o mundo e não fechar-se do mundo. As sinagogas – nossas casas comunitárias contemporâneas – devem ter janelas, estabelece a lei judaica. A ênfase nesta determinação alerta: a espiritualidade é para reforçar a interação com o mundo e com as pessoas do mundo.

Da abertura

Pessoas do mundo. Cada uma com sua singularidade. No intuito de, no convívio, valorizar a riqueza das individualidades na caminhada pelo deserto além da tenda comunitária, o Mishkan, havia as tendas em que cada família morava. Os comentaristas da Torá expõem que cada tenda de habitação preservava sua privacidade. A preocu-

Tal como a vida é dinâmica, a Torá, ao ser da vida, é igualmente dinâmica. Seu formato, utilizado para fins ritualísticos, é de rolo: gira. Segue. Não fecha. Sua mensagem é como uma nau em permanente viagem que vislumbra as ilimitadas perspectivas do horizonte.

pação judaica é de equilibrar a pertinência comunitária com o respeito à individualidade. Ser inclusivo pressupõe não ser invasivo. Respeitar os limites da individualidade e da privacidade reforça os laços de convívio. Convívio é tanto abrir quanto fechar a porta, é tanto compartilhar quanto se retirar. Para então retornar.

Do futuro

Os intérpretes da Torá perguntam: Como em pleno deserto o povo judeu encontrou madeira para construir o Tabernáculo? A explicação alegórica é significativa. Séculos antes o patriarca Iacov [Jacob] saiu da Terra de Israel e foi para o Egito procurar alimentos. No caminho plantou pequenas mudas de árvore. Quando o povo fez o caminho reverso – do Egito à Terra de Israel – encontrou árvores crescidas e utilizaram seus galhos para construir sua tenda comunitária.

Se alguém na geração do deserto falasse: “Não podemos tocar na árvore, pois foi plantada por Iacov [Jacob]”, o próprio esforço de Iacov teria sido em vão. Mas não foi em vão e a Torá afirma: “E o Tabernáculo veio a ser um todo”. (Shemot [Êxodo] 36:13).4 Um – explicam os comentaristas – quer dizer que no Tabernáculo ninguém se sentiu superior, cada um contribuiu completando o outro. Acrescento: cada um de nós completando os inúmeros outros na valorização do potencial de transformação que os vínculos proporcionam através do aprendizado mútuo.

De cada um

O rabino Abrahão Heschel (1907-1972) sugere que nossas casas comunitárias sejam o santuário do tempo. Tempo em hebraico é zeman. A palavra zeman forma um verbo: lehazmin, que significa convidar. A vida comunitária encontra expressão no convite que abraça e compartilha o tempo de convivência. O convite rompe a mentalidade um ou outro e afirma um e outro. Um e outro na tenda comunitária ampla e aberta, uma tradição que remonta Abrahão e Sara e segue... ... até Freud, que buscava compreender a agonia da alma e encontrou na pertinência comunitária da Associação B’nai B’rith conforto para sua própria angústia diante da rejeição de seus estudos; ... até Herzl, que em seu pragmatismo enxergou o milenar sonho judaico; ... até o Bilu, que tirou a menção de Adonai de seu nome, mas seu manifesto programático conclui com a proclamação: ‘Escuta, ó Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é Um’; ... até os reformistas, que se reformaram ressaltando o conceito de povo e o vínculo com a terra ancestral; ... por contínuas gerações para que cada um encontre seu espaço, viva seu tempo de convívio com sua riqueza de inevitáveis contradições e salutares transformações.

A preocupação judaica é de equilibrar a pertinência comunitária com o respeito à individualidade. Ser inclusivo pressupõe não ser invasivo.

Respeitar os limites da individualidade e da privacidade reforça os laços de convívio. Convívio é tanto abrir quanto fechar a porta, é tanto compartilhar quanto se retirar. Para então retornar.

Notas

1. The Jerusalem Post, 6/10/2009. 2. Tradução em Português, Bíblia Hebraica, Editora Sefer, SP, 2006, ed. Fridlin, J. e Gorodovits, D. 3. Citado pelo rabino Richard Hirsch (Fonte: a coletânea de interpretação do livro Levitico, Vaikra Raba). 4. Bíblia Hebraica, op. cit. Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

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