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Michel Alfandari
a turquia e os Judeus: um Futuro de interroGações
É sobretudo a partir de 2008 que as críticas de Erdogan contra Israel se transformam em críticas ao “lobby judaico” ou à “diáspora judaica”. Temas claramente antissemitas começaram a circular pela mídia próxima ao governo, sem reação por parte deste. Isto permitiu o incremento de sentimentos antijudaicos na parcela menos educada da população turca.
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michel alfandari
Aprimeira questão a se colocar em perspectiva é que restam hoje aproximadamente 17 mil judeus na Turquia (enquanto eram mais de 100 mil após a Primeira Guerra Mundial) e que as projeções demográficas mostram que a comunidade, infelizmente, vai desaparecer em 30 a 40 anos.
População dos judeus na Turquia
Um total de 95% dos judeus da Turquia é descendente de judeus espanhóis expulsos em 1492. Os 5% restantes são ashquenazis descendentes de judeus fugidos da Alemanha no século XVII, e da Polônia, do Império Austro-Húngaro e da Rússia no século XIX, bem como um pequeno número de Caraitas.
Uma característica dos judeus da Turquia após o período otomano é que permaneceram ao mesmo tempo dóceis e discretos em relação ao poder, muito mais que os gregos e armênios (as duas outras principais comunidades não muçulmanas). Isto se explica pelo fato que, contrariamente aos gregos e armênios, que podiam contar eventualmente com o apoio das potências ocidentais cristãs, os judeus não tinham com quem contar. De todo modo, em geral, foram mais protegidos pelo poder que os cristãos.
De fato, as duas grandes tragédias da Turquia atingiram: 1) Os armênios em 1915 ao final do período otomano (entre 600 mil e 1,5 milhão assassinados em massacres e deportações) e 2) Os gregos em 1923 (1,3 milhão obriga-
dos a emigrar para a Grécia, no acordo de troca de populações firmado entre Grécia e Turquia).
Outras tragédias menores também atingiram os judeus: Primeiro os “Incidentes da Trácia”, em 1934, quando uma série de incidentes se iniciaram pelo boicote aos negócios de judeus, seguidos de ameaças físicas, agressões e o assassinato de um rabino. Estes episódios foram o estopim de uma fuga em massa em direção a Istambul de milhares de judeus (3 mil segundo a versão oficial e mais de 10 mil aparentemente), abandonando todos os seus bens.1
Segundo: de 1942 a 1943 um imposto sobre a fortuna extremamente discriminatório (o Varlık Vergisi), com taxas de 10 a 20 vezes mais alta que para os não muçulmanos ocasionou duas dezenas de mortos e alguns suicídios entre os que foram enviados a campos de trabalho por não terem como pagar.2
Terceiro: os acontecimentos de 6 e 7 de setembro de 1955. Em um contexto de fortes tensões com a Grécia por causa de Chipre, uma horda de manifestantes organizados pelos serviços secretos do Estado saqueou em Istambul locais de culto, escolas, milhares de negócios e também residências de gregos, num primeiro momento, e em seguida de judeus e de armênios, deixando uma quinzena de mortos e mais de 500 feridos.3 Este evento marca o início do fim de Istambul como cidade cosmopolita e multiconfessional.
Em realidade, os dois primeiros atos mostram um desejo e uma política de Estado de “nacionalizar”, por expropriação, os ativos pertencentes principalmente a minorias não muçulmanas. Esta política consistiu, em relação aos judeus, de propaganda antissemita importada, ou ao menos inspirada na Europa, e, em particular na Alemanha, que exerceu influência considerável nos anos 30 e 40 em algumas elites turcas nacionalistas. Entrementes a Turquia conseguiu permanecer neutra durante a Segunda Guerra Mundial, apesar das pressões alemãs, e permitiu a passagem de judeus, principalmente búlgaros e romenos, que queriam alcançar a Palestina.
Ademais, durante a ocupação nazista na França, diplomatas turcos baseados em Paris e Marselha salvaram a vida
de um número de judeus turcos que tinham emigrado nos anos 30. Um recente estudo4 demonstrou que se tratavam de inciativas pessoais e não de uma política oficial, e que o número real é provavelmente próximo a 600 pessoas salvas ao invés de milhares como citado por algumas fontes turcas. O mesmo estudo mostra que a Turquia não foi melhor que outros países no acolhimento a refugiados judeus: ela teria acolhido um pouco mais de um milhar de refugiados.
A metade da comunidade que ficou após 1948
No total, ao longo do tempo, metade dos judeus da Turquia emigrou para Israel após 1948, onde hoje estimamos que vivam ao redor de 100 mil judeus de origem turca.
Para os judeus que ficaram na Turquia a partir do fim dos anos 50, os atos antissemitas organizados ou tolerados pelo Estado não se reproduziram mais. O país entrou em um novo período5, muito mais “calmo” no que se refere às minorias não muçulmanas.
Entretanto, a partir dos anos 70, um novo ator entra na paisagem política: o Islã político cujo fundador foi um certo Necmettin Erbakan. Este movimento chamado “Milli Görüş” (Visão Nacional) adotou um discurso duramente antiocidental, antieuropeu, antissionista e antissemita. O partido AKP de Erdoğan, no poder desde 2002, tem origem numa divisão “modernista” do partido de Erbakan. Os temas racistas ouvidos de alguns dirigentes do AKP, repercutidos e ampliados pela mídia próxima ao poder, encontra origem neste antissemitismo islâmico, diferente daquele dos anos 30 e 40 importado da Europa.
Dentre os principais atos antissemitas deste período destacamos: em 1986, 21 judeus são assassinados no shabat na grande sinagoga de Neve Shalom pela organização Abu Nidal. Em novembro de 2003 vários atentados sincronizados pela Al-Qaida contra duas sinagogas, o consulado inglês e o banco HSBC fazem 31 vítimas, das quais seis judeus. Um industrial judeu, Üzeyir Garih, é assassinado em 2001 e um dentista judeu em 2003.

Quanto aos objetivos antissemitas, é sobretudo a partir de 2008 que as críticas de Erdoğan ou de sua comitiva contra Israel se transformam em críticas ao “lobby judaico” ou à “diáspora judaica”. Assim, temas claramente antissemitas começaram a circular pela mídia próxima ao governo, sem reação por parte deste. Isto permitiu o incremento de sentimentos antijudaicos na parcela menos educada da população turca. Segundo o Pew Research Center, as opiniões desfavoráveis aos judeus na Turquia passaram de 49% em 2004 a 76% em 2008.6
Existe uma associação cuja missão é monitorar e denunciar todos os temas racistas e discriminatórios nas mídias.7 Esta associação publica regularmente relatórios bem detalhados com constatações precisas, categoria por categoria, citando nominalmente os órgãos de imprensa e os autores dos artigos. De acordo com os dois últimos relatórios, os judeus aparecem logo atrás dos armênios na lista de comunidades atacadas pelos artigos racistas.8
Entretanto, esta associação se limita à imprensa escrita e tem um alcance limitado. Não existe na Turquia um organismo forte para combater o racismo, o antissemitismo e a xenofobia. Uma lei esperada há muito tempo para melhor combater o racismo e a discriminação foi finalmente adotada em março, mas com um alcance muito abaixo da expectativa.9
Prognósticos para os judeus da Turquia
Verifica-se que os judeus da Turquia e seus representantes são geralmente reticentes em registrar queixas contra ataques racistas nas mídias e não podemos assegurar que os procuradores da República façam seu trabalho neste tema.
Em contrapartida, se observam iniciativas recentes que não poderíamos imaginar há alguns anos: notadamente, não é mais tabu falar sobre os massacres de 1915 e dos acontecimentos antiminorias ocorridos nos anos 30 a 50. Com isto aparecem colóquios, debates e exposições sobre estes temas. Em 2012, o filme Em 2012, o filme Shoah, de LanzShoah, de Lanzmann, foi transmitido em mann, foi transmitido em uma cadeia nacional de televisão, por iniciativa do Projeto Aladim.10 Em outubro de 2013, uma cadeia nacional um grupo de 25 universitários turcos de televisão, por participou de um seminário de formainiciativa do Projeto ção organizado em Istambul pelo ProjeAladim. Em outubro to Aladim para formar especialistas no ensino da Shoah nas universidades turde 2013, um grupo cas, primeira iniciativa no mundo mude 25 universitários çulmano.11 Enfim, em 27 de janeiro pasturcos participou de um sado houve uma comemoração em Isseminário de formação tambul por ocasião do Dia Internacioorganizado em Istambul nal do Holocausto, o que demonstra um movimento progressivo de esclarecimenpelo Projeto Aladim para to promovido pela sociedade civil. formar especialistas no Deve-se observar igualmente a aproensino da Shoah nas vação de uma lei em 2012 que permite a universidades turcas, primeira iniciativa no restituição de bens comunitários confiscados pelo Estado a partir dos anos 20, mesmo em se tratando de uma restituimundo muçulmano. ção parcial.12 Desde então, é possível se falar de uma “esperança de melhoria” quando o desaparecimento gradual da comunidade é inevitável? Tentaremos a seguir: Podemos distinguir uma melhoria “mínima indispensável” e uma melhoria “desejável”. O mínimo indispensável seria que as ideias antissionistas e antissemitas dos dirigentes cessem. Para que isto possa acontecer é necessária a queda de Erdoğan. Entretanto, Erdoğan não deixará o poder tão rápido, como demonstram os resultados das eleições municipais de 30 de março. E, mesmo após a saída de Erdoğan, é provável que os preconceitos de ódio demorem a desaparecer. Dito de outra forma, mesmo o “mínimo indispensável” não está assegurado (apesar de uma melhora nas relações com Israel, prevista pelos observadores, impactar positivamente.) Quanto à melhora “desejável”, ela parece utópica. Com efeito, ela consistiria numa liberdade e igualdade verdadeiras para os judeus turcos e outras minorias e não somente no papel.13 Os critérios de Copenhaguem, de acesso à União Europeia, garantem estas liberdades e igualdades. Vemos, entretanto, que, após alguns anos, a perspectiva de acesso da Turquia à União Europeia é altamente improvável num futuro previsível (o que não agrada nada aos ju-
deus da Turquia). Só restariam, portanto, as dinâmicas internas do país.
Quanto às dinâmicas internas, existem esquematicamente uma visão otimista e uma visão pessimista. Segundo a visão otimista, as grandes manifestações de junho 2013 na Praça Taksim, em Istambul, constituem uma tomada de posição cidadã do poder, aparentemente liberado de antigas reflexões paternalistas e militaristas da frente laica, uma primeira na história da República turca.14 Se este movimento conseguir se liberar definitivamente de suas referências nacionalistas e assimilacionistas (com relação às minorias) e se conseguir se organizar em movimento político, estaria em condições de representar uma alternativa política séria ao AKP de Erdoğan.
Segundo a visão pessimista, Atatürk instituiu uma cidadania turca destinada a englobar todos os habitantes do país qualquer que seja sua religião ou etnia, mas de
Em 27 de janeiro fato seria pedir muito, pois ele não teve passado houve uma comemoração em nem o poder nem o tempo de mudar em profundidade a sociedade turca (Atatürk morreu aos 57 anos). Se bem que para os Istambul por ocasião sucessores de Atatürk e para uma grande do Dia Internacional parte da sociedade, a identidade “turca” do Holocausto, o ficou extremamente associada à identidaque demonstra um de “muçulmana”15 e os judeus turcos foram considerados “convidados”, devendo movimento progressivo ficar eternamente gratos aos turcos por têde esclarecimento -los acolhido em 1492. promovido pela Sempre de acordo com a visão pessociedade civil. simista16, mais fundamentalmente não houve a “Renascença” nem o “século das luzes” na Turquia (que é pois uma república relativamente jovem) nem no Islã (que tem “apenas” 1.400 anos), que poderia ter aproximado o país do humanismo, da emancipação do indivíduo e dos valores universais de liberdade e igualdade. Desta forma restaria, pois, um longo caminho a percorrer pela sociedade turca. Em todos os casos será muito pouco e muito tarde para os judeus da Turquia.


Notas
1. Rıfat Bali, The 1934 Thrace events, entrevista no European Journal of Turkish
Studies, n. 7: http://www.ejts.org/document2903.html e Avner Levi, Türkiye
Cumhuriyeti’nde Yahudiler (Les Juifs de la République de Turquie), İletişim, Istanbul, 1996 2. Ayhan Aktar, Varlık Vergisi ve Türkleştirme Politikaları (L’impôt sur la fortune et les politiques de turquification), İletişim, Istanbul, 2000 3. Dilek Güven, 6-7 Eylül Olayları (Les événements des 6-7 septembre 1955), İletişim,
Istanbul, 2006 4. Corry Guttstadt, Turkey, the Jews, and the Holocaust, Cambridge University Press, 2013 et http://www.salom.com.tr/newsdetails.asp?id=88997 5. Adesão à ONU e começo do período multipartite, principalmente 6. http://www.pewglobal.org/2008/09/17/chapter-1-views-of-religious-groups/ 7. http://nefretsoylemi.org/ 8. http://nefretsoylemi.org/rapor/Eylul-Aralik2013_nefretsoylemi_ayrimcisoylem_ raporu.pdf, p. 9 e Mehveş Evin, no jornalMilliyet : Müslüman olmayana nefret arttı(La haine des non-musulmans a augmenté): http://www.milliyet.com.tr/musluman-olmayana-nefret-artti/gundem/ydetay/1870029/default.htm 9. http://www.salom.com.tr/newsdetails.asp?id=90229 et http://marksist.org/yazarlar/roni-margulies/14224-bugunnkimdennnefretnedelim 10. O Projeto Aladim (http://projetaladin.org/) é uma iniciativa lançada em 2009 pela Fondation pour la Mémoire de la Shoah, colocando à disposição de países muçulmanos informações históricas confiáveis sobre a Shoah e sobre a cultura judaica 11. http://www.projetaladin.org/fr/s%C3%A9minaire-international-sur-lenseignement-de-la-shoah-1.html 12. http://turquieeuropeenne.eu/turquie-un-grand-pas-pour-les-droits-des-non.html 13. Mesmo se o Tratado de Lausanne de 1923 garante aos cidadãos turcos não muçulmanos o livre acesso aos empregos públicos, inúmeros altos postos estão de fato vedados principalmente na diplomacia, na magistratura e no exército 14. OyaBaydar: http://www.courrierinternational.com/article/2014/03/05/turquie-enfin-une-troisieme-voie 15. Harold Rhode: http://www.sephardichorizons.org/Volume4/Issue1/turkey.html 16. Jack Salom, Difficile transition vers la modernité: o caso da Turquia (conferência de 23 de março de 2013 na Inalco em Paris) 17. O Projeto Aladim (http://projetaladin.org/) é uma iniciativa lançada em 2009 pela Fondation pour la Mémoire de la Shoah, colocando à disposição de países muçulmanos informações históricas confiáveis sobre a Shoah e sobre a cultura judaica 18. http://www.projetaladin.org/fr/s%C3%A9minaire-international-sur-lenseignement-de-la-shoah-1.html
Michel Alfandari nasceu em Istambul, vive em Paris, trabalha como gerente de risco operacional de um grande banco internacional e mantém o blog www.alfandar.fr, onde podem ser encontradas mais informações sobre os judeus da Turquia.
Traduzido do francês por Michel Ventura.
