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Andre Nudelman

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Michel Alfandari

Michel Alfandari

o sidur: uma dança entre a torá, o canto e a palavra do homem

O Sidur é uma obra aberta, em que cada época vem sendo retratada em suas linhas e, por todo o tempo, estabelece-se uma dança entre Torá – simbolizando a palavra revelada pelo Deus – e Shirá – que representa o canto, a palavra, a intenção do homem.

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andre nudelman

Há elementos que nos constroem e que definem as bases das bases, antes mesmo da formação, educação e estruturação dos indivíduos. Atuam em um nível primário e servem de fundações para a edificação e o desenvolvimento da identidade, cultura e de tudo mais que vem depois.

São elementos que costumam ter a ver com as nossas percepções mais diretas e imediatas: quem somos, onde estamos – e a que viemos.

Quem somos – e com quem somos – o sujeito da ação: nossa condição humana, nossas capacidades humanas, nossa maneira singularmente humana de perceber e interagir com o mundo. Além daquilo que, talvez, mais nos caracteriza: formamos famílias, grupos, povos, sociedades.

Onde estamos – o meio: a terra, o próprio ambiente em que vivemos e do qual fazemos parte e que, com nossos atos, transformamos.

A que viemos – a finalidade: o mistério, o não compreendido.

A tradição judaica se constituiu, desde o início, propondo uma relação contínua entre esses três conceitos fundamentais. E o fez cunhando uma ideia que, se antiga, vem se renovando continuamente: um pacto, uma aliança que se estabelece entre o Homem, a Terra – e um Deus. Uma ideia com a qual nos relacionamos, através dos nossos mitos e rituais – e santificamos – há milênios.

Já houve um tempo, quando éramos ainda muito jovens, em que o ritual – a conexão com o divino – dava-se pela vivência do assustador, do que causa mais medo ao homem: sacrifícios, sangue, tripas, fogo.

Com o correr das eras e a evolução das práticas e do pensamento, esse ritual precisou se transformar e passou a acontecer através da experiência do belo,

pelo contato com o que nos toca – a arte: a literatura e a música, principalmente, mas também outras formas de expressão.

E por que a arte?

Podemos pensar na arte como um elo entre o extremamente racional, estrutural, técnico – e as ideias transcendentes que a inspiram – e a experiência transcendente que ela nos propõe e suscita em nós.

Como algo que é matéria – tinta, papel ou telas – ou pedras ou sons que, inspirados, transcendem à sua materialidade e acabam por nos conectar com algo muito especial dentro de nós que, será, poderíamos chamar de “sagrado”?

Uma obra artística é criada através da inteireza do nosso ser – nossa emoção, nossa racionalidade, nossa força, nossa ação. E é inspirada pela nossa centelha criativa.

Da mesma forma, uma obra de arte fala à inteireza do nosso ser – emociona-nos, leva-nos a pensar, aprender; e nos compele a agir.

De fato, a criação cultural e teológica do judaísmo acontece assim: segundo a tradição, Deus teria se revelado ao homem através de um grande tesouro literário – o Tanach – e o homem, por sua vez, busca se aproximar desse Deus também por intermédio de textos – as tantas interpretações, poesias, prosas e demais escritos que compõem as nossas fontes e o nosso Sidur, o livro que contém a ordem das nossas rezas.

A primeira coisa que chama a atenção é exatamente a existência de um livro dessa natureza: precisamos mesmo de um manual e de palavras prontas para que possamos rezar? Como é possível que textos escritos por outras pessoas, em outros momentos e em outros lugares reflitam e expressem a contento a nossa tão particular relação com o sagrado?

A questão pode ser entendida ao investigarmos mais profundamente a própria essência da reza judaica.

Quando pensamos em orações, logo imaginamos aqueles momentos em que, espontaneamente, abrimos nossos corações e, de acordo com nossas necessidades e nossos anseios pessoais, buscamos o contato com o transcendente. Mas, ao folhearmos qualquer livro de rezas, encontraremos textos que falam de uma infinidade de outros assuntos e

Precisamos mesmo veremos que, ao longo de centenas de páde um manual e de palavras prontas para ginas, há apenas um pequeno espaço, alguns poucos minutinhos mesmo, para as nossas meditações pessoais. que possamos rezar? Está claro que, ao propor uma ordem

Como é possível que predeterminada de textos, nossa traditextos escritos por ção imagina algo diferente – e bem mais outras pessoas, em abrangente. A ideia é que, em nossos momentos de reflexão, possamos entrar outros momentos e em em contato com todas as ideias, conceioutros lugares reflitam tos e valores que nos identificam como e expressem a contento povo e que aparecem condensados na a nossa tão particular nossa liturgia. relação com o sagrado? O Sidur é um compêndio que vem sendo organizado e compilado ao longo de muitos séculos e traz em suas páginas a própria construção e evolução da cultura judaica. Dispõe a saga de uma civilização que atravessou o tempo e o espaço e vem, elástica e gelatinosamente, modelando-se. Escapando como gotinhas pelas frestas, por vezes; por outras, jorrando com maior liberdade como um manancial, numa troca e num embate – bate-bate – com o mundo e demais culturas ao redor. Os textos mais antigos do Sidur, por exemplo, foram retirados diretamente das fontes bíblicas – no entendimento de então, a palavra literal do Deus – e seus textos mais novos devem estar sendo escritos agora mesmo. É uma obra aberta, em que cada época vem sendo retratada em suas linhas e, por todo o tempo, estabelece-se uma dança entre Torá – simbolizando a palavra revelada pelo Deus – e Shirá – que representa o canto, a palavra, a intenção do homem. Algumas passagens aludem aos grandes acontecimentos míticos do passado, aqueles momentos marcados por uma maior interferência divina no mundo: a criação do cosmos, a redenção no Egito e a revelação no Sinai. Outras tratam de episódios históricos: o exílio, as cruzadas, o Holocausto e o restabelecimento do moderno Estado de Israel – cada evento importante, devidamente colorido e floreado, está representado nos tantos textos que vieram sendo incluídos no nosso livro de rezas. Há ainda o retrato de uma transformação teológica fundamental, quando Abrahão, prestes a matar seu filho, reconhece o divino não naquele Deus que o mandara erguer a faca, mas na voz da sua consciência que, num úl-

timo momento, acaba por impedir o ato bárbaro. O patriarca redefine o próprio conceito de Deus, sofisticando-o e o tornando aceitável dentro da proposta dessa nova cultura que começava a se desenhar.

Estão representados no Sidur também aspectos de natureza mais política: em um tempo em que havia os reis e também o rei dos reis, apareceu um texto trazendo a ideia de um Deus como aquele que seria o Rei sobre o rei-dos-reis. E, muito à frente, já na emancipada comunidade alemã do Século 19, encontramos a “Gebetfürden Kaiser”, uma reza em que se pedia pelo bem do imperador, citado nominalmente em letras hebraicas.

Vemos também como, desde o princípio, temos nos encantado com as estações do ano, com o passar dos dias que se sucedem através do movimento do sol, da lua e dos astros e como nos maravilhamos com a natureza: uma das primeiras bênçãos que recitamos pela manhã reconhece a grandeza divina por ter, o galo, a sabedoria para distinguir entre o dia e a noite! E, claro, estão no Sidur aqueles nossos anseios mais práticos e com os quais conseguimos nos conectar mais diretamente, como os pedidos por segurança, saúde, fartura da terra, prosperidade, paz e bem-estar – e demais preocupações humanas. Podemos perceber, então, qual é a proposta da liturgia judaica: a ideia é que possamos, juntos, vivenciar – ritualmente – nossas lendas, nossa história e a própria construção, passo a passo, da nossa tradição. Rezamos estudando e interpretando como rezaram aqueles que vieram

É interessante e até divertido que hoje, na plenitude das nossas vidas tão modernas, nos flagremos ocupados com assuntos como o antigo Egito, faraós, divindades e povos já extintos; e tecemos um contato contínuo com essa dimensão do mito que, se não fosse tão familiar, iria nos parecer totalmente surreal.

Engin Korkmaz / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 11

antes de nós, contemplando como tudo O Sidur dispõe a saga o que recebemos do passado foi sendo construído aos poucos, geração a geração. Tal experiência faz com que, ao rezar, de uma civilização que atravessou o tempo e o estejamos inseridos, também nós, no meio espaço e vem, elástica dessa grande continuidade histórica, como e gelatinosamente, partícipes de uma saga que, de tão antiga, modelando-se. devemos tornar nova a cada tempo. É interessante e até divertido que hoje, na plenitude das nossas vidas tão Escapando como gotinhas pelas frestas, modernas, de repente nos flagremos ocu- por vezes; por outras, pados com assuntos como o antigo Egi- jorrando com maior to, faraós, divindades e povos já extin- liberdade como um tos; e tecemos um contato contínuo com essa dimensão do mito que, se não fosmanancial, numa troca se tão familiar, iria nos parecer totalmene num embate com te surreal. o mundo e demais

De fato, transitar entre esses dois culturas ao redor. mundos – o mundo das lendas, dos mitos, daquele conhecimento que vem dos primórdios da

nossa experiência na terra – e o nosso mundo “real”, contemporâneo, é algo que nos enriquece e inspira imensamente e é o que permite que tenhamos, de fato, todos os milhares de anos que tanto nos orgulhamos de ter. Assumimos, assim, nossa vez como protagonistas dessa longeva narrativa, buscando entender o nosso tempo e como poderemos recriar e arremessar toda essa bagagem para frente, a fim de que, no futuro, aquilo que construímos hoje, com as nossas mãos, possa também ter sido entregue no Sinai. Mantendo viva essa velha canção que costura quem – e com quem somos –; onde – e como estamos – e a que viemos. Andre Nudelman é chazan e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

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