devarim devarim
Entrevista de Ed Hofland a Gabriel Mordoch
Entrevista de Ed Hofland a Gabriel Mordoch
Heróis anônimos: o processo de dissidência da ortodoxia judaica em Israel Marta F. Topel
Heróis anônimos: o processo de dissidência da ortodoxia judaica em Israel Marta F. Topel
Na herança comum das religiões, um caminho para a paz Rogério José Bento Soares do Nascimento
Na herança comum das religiões, um caminho para a paz Rogério José Bento Soares do Nascimento
Franz Rosenzweig: a fé do homem moderno Rabino Dario E. Bialer
Franz Rosenzweig: a fé do homem moderno Rabino Dario E. Bialer
Na Lagoa aprendi Tanach Rabino Sérgio R. Margulies
Na Lagoa aprendi Tanach Rabino Sérgio R. Margulies
Devarim On-line: virtual e tangível Ricardo Gorodovits
Devarim On-line: virtual e tangível Ricardo Gorodovits
Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 5, n° 11, Março de 2010 Entre idealismo e pragmatismo: A estratégia do kibutz para o século 21
Entre idealismo e pragmatismo: A estratégia do kibutz para o século 21
Li recentemente na edição eletrônica de um jornal israelense um comentário a respeito da facilidade com que os israelenses destroem suas figuras pú blicas mais proeminentes. O texto comentava a queda da popularidade do chefe do Mossad, na esteira do assassinato de um alto membro do Hamas em Dubai, e se estendia para além da figura em questão, avaliando programas de televisão que subitamente caem em desgraça após períodos de sucesso absoluto, e muitas outras situa ções assemelhadas. A conclusão do articulista era que os israelenses não suportam o sucesso de terceiros.
Eu percebo que nós judeus (e não apenas os israelenses) somos realmente avessos a santificar pessoas e coisas. Não tornamos santo o nosso maior líder – Moisés – que é des crito na Torá como um homem comum capaz de enganos dolorosos, se bem que ao mesmo tempo dotado de inten sa visão profética, energia e capacidade de liderança. Ben Gurion e as demais figuras da geração que reverteu a peno sa situação de dois mil anos sem soberania estatal são hoje muito mais criticados por suas falhas eventuais do que lou vados por seus muitos méritos. Santificamos a forma virtual como usamos o tempo do shabat e não o local onde pas samos este dia. E assim por diante. Talvez o mandamento de não adorar ídolos seja o menos importante de todos os dez, tendo em vista a nossa aversão a construí-los.
Penso que é esta característica atávica de rejeitar a santi ficação de pessoas e coisas, e não o incômodo com o suces so de terceiros, que nos leva a subitamente colocar sob sus peição o que era bom e aceitável ontem. Penso que o arti culista foi preciso em medir o fenômeno, porém falhou na conclusão. Penso também que este constante sobe e desce de personagens e coisas é o reflexo externo de uma inquie tação interior dos judeus, que nunca estão satisfeitos com o status quo, que estão sempre à procura de novas frontei ras, especulando novos pensamentos.
Entendemos isto mergulhando na riqueza do nosso passado e, igualmente, observando o mundo à nossa vol ta, hoje. No cenário religioso vemos uma parte da ortodo xia trilhando o caminho da exacerbação das exigências ri tuais e comportamentais, como pode ser verificado na ten tativa de impor uma separação entre homens e mulheres não apenas na sinagoga, mas também no transporte públi co em Israel, nas ruas dos bairros habitados por ortodoxos e até mesmo com o lançamento de uma curiosa pequena tenda individual para preservar os fiéis em aviões e outros locais onde é obrigatório sentar ao lado de estranhos.
Do lado da Reforma, o movimento é igualmente sig nificativo. Cada vez mais rezamos em hebraico nas sinagogas dos Estados Unidos, onde havia até pouco tempo atrás um grande volume de orações traduzidas para o ou com postas em inglês. A ARI, seguindo o exemplo de centenas de outras sinagogas reformistas, está construindo uma mi kvá Há uma procura interessantíssima pela redefinição da casherut para parâmetros modernos, procurando preservar os valores desta mitzvá e assim por diante.
Apesar de sua diversidade, cada um destes movimen tos (e eu citei apenas uma pequena fração deles) é fruto da mesma visão judaica que busca eternamente aperfeiçoar o mundo. Não é por acaso que o judaísmo denominou a formulação prática de seus valores de halachá, ou seja, o cami nho, uma postura dinâmica e não algo estacionado.
Na ARI valorizamos todos os caminhos, apesar de estarmos firmemente comprometidos com o nosso. E é para permitir que continuemos a incessante procura judaica pelo caminho da Torá que a ARI continua diligentemen te a editar, publicar e distribuir a Devarim, que no final do ano passado ganhou uma completa biblioteca eletrôni ca. Com este novo número continuamos a missão que nos impusemos desde sempre, que é a de divulgar e renovar o pensamento judaico dos judeus do Brasil.
Evelyn Freier Milsztajn Presidente da ari
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 1
editorial
Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 5, n° 11, março de 2010
P R es I dente d A ARI evelyn Freier Milsztajn
R A b I nos d A ARI sérgio R. Margulies dario e bialer
dIR eto R d A Rev I stA Raul Cesar Gottlieb
Conselho e d I to RIA l beatriz bach, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio R. Margulies
e d I ção Roney Cytrynowicz (editora narrativa Um)
e d I ção de A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) Paola Nogueira • Tainá Nunes Costa
CAPA e I l U st RA ções leila danziger
F oto GRAFIA s istockphoto.com
Rev I são de t exto Mariangela Paganini
t RA d U ção teresa Roth
Colaboraram neste número: dan Fleshler, Rabino dario e bialer, Gabriel Mordoch, haim harari, Marta F. topel, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Ricardo luis sichel, Rogério José bento soares do nascimento, Rabino sérgio R. Margulies
os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.
A revista devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br devarim@arirj.com.br Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ biblioteca virtual devarim: www.docpro.com.br/devarim
devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.
sumário
Na Lagoa aprendi Tanach Rabino Sérgio R. Margulies 3
Franz Rosenzweig: a fé do homem moderno Rabino Dario E. Bialer 8
Entre idealismo e pragmatismo: a estratégia do kibutz para o século 21 Entrevista com Ed Hofland por Gabriel Mordoch 14
Heróis anônimos: alguns dados sobre o processo de dissidência da ortodoxia judaica em Israel Marta F. Topel 20
“E um dia já fizeram parte de nós” Dan Fleshler 26
Somos livres... nossa responsabilidade começa Ricardo Luis Sichel 32
Na nossa herança comum, um caminho para a paz Rogério José Bento Soares do Nascimento 36
O Instituto Weizmann de Ciências: 60 anos de realizações – II parte Haim Harari 44
Devarim On-line: virtual e tangível Ricardo Gorodovits 52
Em poucas palavras 56
Pediatras, urgente! Paulo Geiger 60
................................
...............................................................................
............................................
.........................................................................
Na l agoa apre N di ta N ach
rabino sérgio r. margulies
“Sem intuição não teríamos artistas que nos proporcionam o contato com o ines perado. É o que chamamos de criatividade.” (Abraham Palatnik)
“Há uma contínua criação.” (Zohar)
Na adolescência fui indagado: se o Estado de Israel guerrear com o Brasil quem você apoiaria? A pergunta traz uma suposta verificação tanto da lealdade para com a identidade judaica, que carrega em seu bojo o sionismo, quanto para com o país do qual somos cidadãos. A indagação pressupõe que há um conflito entre múltiplas identidades.
Respondi que em função da distância geográfica entre as duas regiões este problema inexistia, mas esta resposta foi contestada dado que as guerras ven cem as distâncias. Então poderia resolver a questão tirando o elemento de sio nismo da identidade judaica. Permitir isto, no entanto, seria como extirpar os membros de um corpo, tornando-o disfuncional.
Ao admitirmos que a pluralidade das identidades seja harmonizável e com plementar não compactuaremos com rótulos que criam formas de controle cal cadas no maniqueísmo. Maniqueísmo que induz a exclusão, engessa a criativi dade e amordaça o pensar. Tal como o monopólio econômico e a monocultura agrícola são prejudiciais, também a identidade destituída do potencial de sua pluralidade empobrece o ser.
Enquanto o judaísmo, o sionismo e a brasilidade abraçarem a pluralidade, o conflito inexistirá. No entanto, se alguma destas condições tentar erradicar o respeito ao ser, que em sua integridade harmoniza sua pluralidade, perderá seu propósito. Urgirá, então, o resgate deste propósito a fim de não sucumbirmos à erradicação da pluralidade que emerge do ser.
Respeitando as condições locais e mantendo a uniformidade litúrgica, uma comunidade judaica pode se inserir em novo contexto e preservar a conexão para com a tradição que almeja perpetuar.
Lumpy Noodles
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 3
/ iStockphoto.com
Do ser que é parte de um todo, podendo sentar num lugar da arquibancada do estádio de futebol numa tor cida distinta daquele que senta ao lado em seu santuá rio religioso. Do ser que pensa e sente, podendo em sua afiliação religiosa ou política pertencer a um dos inú meros grupos que compõem o todo comunitário ou so cial, pois também dentro de uma parte deve haver espa ço para subpartes.
Desatei a armadilha da pergunta capciosa com um con tundente texto do jurista e ministro do Supremo Tribunal de Justiça, Waldemar Zweiter, no qual afirma: “Sou brasi leiro, judeu e sionista”. Assim, em nossa múltipla identida de podemos ter estas identidades e ainda outras.
“É o vento ventando / é a chuva chovendo / são as águas de março.” (Tom Jobim)
“Cause a chuva cair e o vento soprar.” (Sidur – livro de oração)
Ao final do ano de 2009 foi sancionada a lei de auto ria do deputado federal Marcelo Itagiba, que estabeleceu o Dia da Imigração Judaica no Brasil, a ser celebrada no dia 18 de março. A data escolhida corresponde à reinau
guração da sinagoga Tsur Israel, estabelecida em Recife no século 17 por judeus holandeses. Foi a primeira sinagoga em todo o continente americano.
Esta comunidade se deparou com uma questão em relação à frase, que, inserida na Grande Oração (denomina da em hebraico de Amidá), recitada diariamente, pede pela chuva. O pedido pela chuva reconhece nossa dependência do ciclo da natureza e enfatiza que a vida espiritual deve estar acoplada às necessidades da subsistência.
O dilema da comunidade era que a frase do pedido da chuva estava associada às estações climáticas da Terra de Is rael e do continente europeu. Aqui, o ciclo das estações di fere. Cabia ou não alterar o período em que a frase era re citada para se adequar à realidade da nova terra?
A resposta foi a de não alterar o período do ano em que a frase da chuva era dita. Porém, em respeito às con dições locais, em que a chuva na estação errada poderia ser perigosa, a comunidade foi isenta da obrigatoriedade de recitar a frase. Assim, de um lado respeitando as con dições locais, e de outro lado mantendo a uniformida de litúrgica, uma comunidade judaica pode se inserir em novo contexto e preservar a conexão para com a tradição que almeja perpetuar.
No novo lugar que traz a promessa de ser definitivo, o imigrante abraça a mensagem do patriarca Iacov: “Então neste lugar há Deus”.
Marcio Silva
/ iStockphoto.com
“Jeová, Jeová olhe pra mim que estou mais pra lá do que pra cá.” (Juca Chaves)
“Como cantar uma música para Deus numa terra estranha?” (Salmo 137:4)
A comunidade estabelecida no Reci fe foi expulsa com os demais holande ses diante da tomada daquela região pe los portugueses. O século 19, seguindose pelo início do 20, assistiu novas levas migratórias.1 Chegam à região amazôni ca judeus oriundos do norte da África e ao sul do país outros vindos da Europa Central. Tanto quanto a distância geográ fica – do Oiapoque ao Chuí – os separavam os dialetos judaicos – ladino e haki tia no norte e iídiche no sul – e os ri tos mesmo que compartilhassem do mes mo calendário religioso, tinham elemen tos distintos.
Talvez o judeu que veio da Europa e assentou no Rio Grande do Sul pudesse rezar junto àquele que estava no Amazonas, mas as conversas teriam que encontrar um terceiro elemento comum. O Brasil propiciou este elemento e assim os que estavam perto em fé e vínculo étnico, mas distantes na língua e na linguagem, puderam fortalecer a integração do vínculo ancestral.
Talvez o judeu que veio da Europa e assentou no Rio Grande do Sul pudesse rezar junto àquele que estava no Amazonas, mas as con versas teriam que encontrar um terceiro elemento comum. O Brasil propiciou este elemento e assim os que estavam perto em fé e vínculo étnico, mas distantes na língua e na linguagem, puderam fortalecer a integração do vínculo ancestral. Deste modo, tanto os imigrantes contribuíram com sua vitalidade e espírito empreendedor quanto a nação brasileira facilitou o fortalecimento dos vínculos que irmanam os membros da comunidade judaica.
Novas levas migratórias no início do século 20 traziam judeus fugidos de discriminação na Europa Oriental. Des providos de recursos materiais e tendo que construir uma vida, em que o aprendizado da cultura local se fazia ur gente, não hesitaram em criar marcos institucionais, dos quais se destaca o Grande Templo localizado no centro do Rio de Janeiro.
Estes marcos demonstram a esperança de integrar-se plenamente à nova terra. Aqui sonhava o exilado: a sua terra de destino seria a terra de origem para a futura ge ração. Aqui sonhava o exilado: não seria mais hóspede do lugar que permitia estar de favor ou ao sabor das decisões dos déspotas. Aqui seria ele responsável pelo seu des tino, de sua família, de sua comunidade e de sua nova na
ção. O hóspede despejado antes poderia se transformar no anfitrião acolhedor de amanhã.
O amanhã nem sempre raiou como esperado e, diante das nuvens sombrias que dominaram a Europa com o advento do nazismo e o Holocausto, o Brasil po deria ser o porto seguro para muitos refu giados. A política de concessão de vistos era contraditória, discursos destoavam da prática de restrição à entrada de refugia dos e ideologias antissemitas ganhavam espaço no escopo da política nacional.
No entanto, a nova terra não seria um campo fértil para que sementes do ódio antigo pudessem florescer. Assim, imigrantes aportaram, criaram suas ins tituições culturais e religiosas, das quais a Associação Religiosa Israelita (ARI) é um exemplo, e integraram-se à vida na cional.
Nos anos 50 chegam judeus fugidos da perseguição de Nasser no Egito. Estes judeus, em sua maioria de origem sefaradi, encontram os de origem ashke nazi que recém-chegaram da Europa como refugiados do nazismo. O pluralismo que a liberdade enseja permite a expressão de subidentidades particulares existentes dentro de uma mesma identidade. Tal como apreciamos a liberda de da nação que faculta o pluralismo, devemos igualmente apreciar esta liberdade no âmbito de nossa própria identi dade religiosa e étnica. E vice-versa.
“Filhos da guerra, curados ao sol de Copacabana.” (Geor ge Israel)
“Não há coisa que não encontre seu lugar.” (Pirkei Avot/ Ética dos Pais 4:3)
Encontrar numa nova terra a chance de estabelecer uma nova vida exige o esforço de não deixar o olhar ver o novo lugar pelo prisma do antigo. Esforço de romper o medo que o antigo lugar impunha e abraçar a esperança que o novo possibilita. O imigrante carrega em sua bagagem esta esperança. Para o imigrante a esperança é eterna.2
No novo lugar que traz a promessa de ser por opção o definitivo – e senão definitivo será por escolha, como a
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 5
Fotografia Básica / iStockphoto.com
qualquer um sem distinção –, o imigrante abraça a mensagem do patriarca bíbli co Iacov: “Então neste lugar (makom) há Deus”. Se em função das perseguições nos lugares passados a fé era abalada, através da oportunidade do novo lugar pode re encontrar sua fé. Reencontrar sua fé, inde pendentemente de seu nível de observân cia religiosa, pois reencontra fé na vida. Ganha o país que presenteia e é presentea do com esta fé. Fé propulsora da constru ção de um futuro sempre melhor.
“Não existe criança que possa não gostar de música.” (Jacques Niremberg)
No novo lugar que traz a promessa de ser por opção o definitivo – e senão definitivo será por escolha, como a qualquer um sem distinção –, o imigrante abraça a mensagem do patriarca bíblico Iacov: “Então neste lugar (makom) há Deus”.
“Cante uma nova canção para Deus.” (Salmo 96:1)
A liberdade transfere para a comunidade, cada famí lia e indivíduo, a responsabilidade de optar pela afirmação de sua identidade. Recai sobre a comunidade e seus cons tituintes a responsabilidade de promover uma vida judai ca criativa e densa para suas crianças. Deste modo, aqui – e atualmente em quase todos os países em que há uma comunidade – surge o desafio de fomentar um judaísmo pleno, em que a integração almejada seja acompanhada da manutenção acalentada. É neste sentido que o judaísmo li beral pode atuar de modo decisivo (ressaltando que no es paço pluralista comunitário urge ser reconhecido que to das as denominações podem ter atuação relevante), pois traz em seu bojo a capacidade de revitalizar os modelos sem subjugar a essência dos valores particulares e sem ne gligenciar a salutar inserção à vida nacional.
Uma pequena demonstração deste potencial foi dada no congresso de comunidades liberais realizado em julho de 2008, sob os auspícios da ARI, em que, ao término do serviço religioso de kabalat shabat, membros da congrega ção da cidade de Fortaleza cantaram ao som do acordeão e no ritmo da música Asa Branca, de Luiz Gonzaga, o po ema litúrgico Adon Olam (Senhor do Universo).
Este poema, provavelmente composto no século 10 na Espanha, é recitado em todas as sinagogas do mundo. A letra e a mensagem de exaltação do Criador do Mundo são as mesmas. A melodia, porém, pode ser diversa. Os ritmos variados. Para cada makom – para cada lugar – de inserção, um possível novo ritmo. A este exemplo soma-
-se o do lançamento ao final de 2009, no Rio de Janeiro, do DVD “Nossos Lares” (direção de Radamés Viera, produção de André Sztjan e outros) que relata a histó ria da comunidade judaica de Nilópolis. Nesta ocasião, tocaram o grupo Zemer com repertório de música klezmer, típica dos vilarejos judaicos da Europa Oriental de séculos passados, e a bateria da escola de samba Beija-Flor de Nilópolis.
A música judaica – o próprio judaís mo que alavanca esta musicalidade – não ficou ameaçada por isso. Aliás, talvez fi casse ameaçada se perdesse sua capacida de de atuação conjunta. E o samba – bem como a cultura nacional que o enseja – demonstrou a for ça do respeito através da sincronia com ritmos tão díspa res, mas que se tornaram ali complementos e mutuamen te enriquecedores.
“Estamos aqui contribuindo para o progresso desta terra abençoada.” (Arnaldo Niskier)
“Nossos frutos vão ser nossas testemunhas.” (Midrash/lit. rabínica – Gen. Rab. 16:3)
O que os membros da antiga sinagoga Tsur Israel em Recife diriam? Em minha imaginação comentariam: chu va em hebraico é gueshem, palavra cujas letras formam ha gshama, que em hebraico significa realização. Assim, aben çoariam o ideal que estamos realizando. Os frutos que es tamos irrigando nesta terra. Os diversos frutos de nossa múltipla identidade. A frase de uma canção de minha fi lha de oito anos, neta de imigrantes, demonstra estes fru tos. Escreveu ela: “Na Lagoa aprendi Tanach”.3
Notas
1. Ver cronologia da imigração judaica ao Brasil no site do Arquivo Histórico Judai co Brasileiro: www.ahjb.com.br
2. “A Esperança é Eterna”, título do documentário cinematográfico produzido em 1954 pelo imigrante Marcos Margulies (pai do autor deste artigo) sobre a obra do artista plástico Lasar Segall, também imigrante no Brasil.
3. Alusão à Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos cartões postais do Rio de Janeiro e re ferência ao nome hebraico do cânone bíblico judaico.
Sérgio R. Margulies é rabino ordenado pelo Hebrew Union Colle ge (EUA e Israel) e serve à Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 7
Fra N z r ose N zweig: a F é do homem moder N o
Quando um judeu aprende, ele se converte em mais um elo da tradição, mesmo que todo o seu aporte tenha sido uma pequena ideia. No judaísmo o estudo e a lei são um processo da perpétua autorrenovação.
Obras de Leila Danziger
rabino dario e. Bialer
Aprofundidade da obra de Franz Rosenzweig poderia nos levar a acredi tar que nasceu num lar de ilustres doutores e exímios conhecedores do judaísmo. No entanto, o começo de sua vida nada tem de excepcio nal. Este jovem alemão, filho de comerciantes, cresceu bem longe das tradições judaicas numa família bem assimilada. Tanto que em determinado momento pensou seriamente em abandonar formalmente o judaísmo, mas por algum motivo difícil de explicar conseguiu romper com seu próprio passado e se tornou um judeu profundamente convicto, até chegar a ser um dos princi pais expoentes do moderno pensamento judaico.
Em 1912, logo após Rosenzweig receber seu doutorado sobre a filosofia de Hegel, seu primo Hans, com quem discutia intensamente sobre os assuntos profundos da existência humana, decide se converter ao cristianismo. Rosen zweig defende essa atitude contra os reclamos familiares, argumentando a ne cessidade do jovem de descobrir uma religião vivente, coisa que seus pais não tinham se preocupado por brindar-lhe.
“Somos cristãos em tudo. Vivemos num estado cristão, frequentamos escolas cris tãs, lemos livros cristãos, toda a nossa cultura se baseia inteiramente em fundamentos cristãos. Portanto, quando um homem não conta com nada que o retenha, pre cisa apenas de um leve impulso que o leve a aceitar o cristianismo.”1
O judaísmo tinha perdido toda sua relevância, pois nada dizia sobre a vida que os judeus realmente levavam; nada acrescentava às artes, às ciências e às profissões, nem influenciava a política ou o devenir histórico. O judaísmo ti nha deixado de ser ele mesmo, tinha deixado de ser Torá para se converter num “saco vazio”. A causa disso, de acordo com Rosenzweig, é que o lar judeu tinha fracassado. Não era culpa da escola nem da sinagoga. “A educação religiosa for
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 9
mal não tem eficácia alguma na ausência da realidade vista com os olhos, degustada com a boca, escutada com os ouvidos em resumo, praticada fisicamente.”2
Foram meses de profundos conflitos interiores, debatendo-se dia e noite so bre o que fazer de sua vida. No dia de Iom Kipur de 1913 ele entra numa sina goga – talvez pela primeira vez – e chega à conclusão inesperada que escreve para seu primo, o agora pastor Ehrenberg: “Devo te dizer algo que vai te resultar incompreensível. Depois de um prolongado e exaus tivo autoexame inverti minha decisão. Vou continuar sendo judeu”.
Rosenzweig quis “uma nova forma de aprendizado”, que não parte da Torá e chega à vida, mas um aprendizado pelo outro lado: que parte da vida, de um mundo que não sabe nada sobre a Lei, ou que finge nada saber, e regressa à Torá.
Experimentar tão intensamente a falta de uma fé reli giosa o obrigou a reconstruir seu mundo e sua vida dentro dos marcos da fé, e o que pensava que só poderia achar den tro de uma igreja, acabou descobrindo na sinagoga: uma fé vinculada com razão, que daria sentido à sua vida.
No final da Estrela da Redenção – sua obra de maior destaque – ele diz: Le Chaim! À vida! Essa é a chave. Pene trar na vida. Como os sábios que em todos os tempos con frontaram a Torá com tudo o que eram e com tudo que sa biam do mundo onde viviam.
Isto é o que Rosenzweig quis dizer por “uma nova for ma de aprendizado. Um aprendizado de forma reversa. Um aprendizado que não parte da Torá e chega à vida, mas um aprendizado pelo outro lado: que parte da vida, de um mundo que não sabe nada sobre a Lei, ou que finge nada saber, e regressa à Torá. Este é o sinal do tempo”.3
Uma vez identificado o problema e concluir que a for ma de alcançar uma existência plenamente judia é através do estudo e da Lei, ele dedicou todo o resto de sua vida a percorrer aquele caminho – o da Torá –, que nunca chega a um final: um “caminho cujo objetivo [sempre] está um passo além – num não caminho”. Porque o caminho da Torá não nos deixa escolha alguma a não ser de passar da atitude de “caminho” para a de “não caminho”. E se nos dermos ao trabalho de fazer “o laborioso e não objetivo percurso através do judaísmo tradicional”, teremos a “cer teza que o último salto, aquele que damos a partir daqui lo que sabemos para aquilo que precisamos saber a qual quer preço, o salto em direção aos ensinamentos, nos con duz na direção dos ensinamentos judaicos”.4
Nesse sentido, Arnold Eisen, atual reitor do Jewish Theological Seminary de Nova York, afirma: “A noção de Rosen zweig de salto de ‘caminho’ para ‘não ca minho’ articula as características essenciais do aprendizado judaico, e da vivência ju daica nos dias de hoje. A essência é que te mos que abandonar os caminhos pavimen tados que abrangem o judaísmo – e as vi das – conhecido até este momento. À me dida que viramos novas páginas na folhi nha, páginas nunca antes atingidas, chegamos a situações e dilemas que exigem respos tas sem precedentes. Se quisermos responder como judeus, nos aventurando pelo ‘não ca minho’ de uma forma que continue com os caminhos judai cos, nossa resposta terá de vir daquilo que a tradição anterior ensinou. E quando pulamos para o ‘não caminho’, como ju deus instruídos nós carregamos conosco para o futuro a tradi ção da Torá. O judaísmo é então preservado, mantido vital, dentro de nós e por nosso intermédio”.5
Nesse espírito, e para atrair de volta os judeus adul tos, fundou em Frankfurt a Lerhaus – uma casa de estu dos onde conviviam o intelectual e o espiritual –, aber ta aos professores de todas as escolas da Alemanha, “pois cada mestre tem que ser um aluno e cada aluno um mestre”, sempre lembrando que, para o judeu, aprender não é mera aquisição de conhecimento. Começa-se a aprender quando a matéria em questão deixa de ser uma matéria e se transforma numa força interior. Assim, quando um judeu aprende, ele se converte em mais um elo da tradição, mes mo que todo o seu aporte tenha sido uma pequena ideia. No judaísmo o estudo e a lei são um processo da perpé tua autorrenovação.
Convencido que o judeu não deve ser tão somente um herdeiro do passado, senão também um criador do futu ro, deu início a um debate sobre a lei com uma tendên cia revolucionária. Rosenzweig diferiu da posição do ju daísmo tradicional – se bem que na prática viveu confor me suas leis – e também diferia das alternativas das linhas mais liberais.
Rosenzweig não defende a abordagem ortodoxa de compromisso irrestrito à halachá, mas uma escolha – uma escolha baseada, no entanto, na experiência real de viver sob a Lei. Somente na ação (e não antes) podemos per
10 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
ceber o alcance de nossa capacidade para agir de forma significativa.6
“Deve-se viver de acordo com a Lei, mas reservando-se o direito à decisão pessoal.” Esse é, para mim, o aporte mais significativo de Rosenzweig. Uma lei que não é a ha lachá intocável da ortodoxia, mas também não o vínculo muitas vezes bem fraco que, especialmente em seus dias, a Reforma estabelecia com a halachá, reduzindo o judaísmo a um “monoteísmo ético” e julgando severa e até negati vamente os observantes da Lei.
Ele rechaça incondicionalmente as alternativas de “cumprir com tudo” ou “nada”. Por exemplo, observava a casherut no seu lar, mas estava preparado para comer em pratos não casher fora do mesmo. “Desejamos um lar, não um gueto.” Cada judeu deve comer em seu lar, mas também deve poder visitar o cristão que o convida a co mer com ele.
Seu conceito de Lei Judaica é uma síntese das posições da ortodoxia e do liberalismo, em que afirma a ambos e, ao mesmo tempo, os transcende. Por uma parte, a halachá é uma realidade objetiva imposta ao indivíduo: é “a lei dos milênios, estudada e vivida, analisada e exaltada, a lei de to dos os dias e do dia da morte.”
Nessa busca por reviver o conceito de halachá, discute intensamente com seu amigo íntimo, Martin Buber, em longas cartas que no ano 1923 são publicadas com o nome de “Os Construtores”.7
Para Rosenzweig, o que foi revelado foi simplesmen te a presença de Deus no seu relacionamento íntimo e co
mandante – embora não legislativo – com Israel. Contra riamente aos tradicionalistas, então, não foram os man damentos específicos o que foi revelado, mas o fato de ser comandado.
Onde Buber e Rosenzweig se afastam é no que tange ao relacionamento entre a revelação e a lei judaica. Eles con cordam que a lei não é uma parte do conteúdo da revela ção – revelação nunca é legislação –, mas Rosenzweig in siste em que o sentido de “Ser Comandado” o é.
Deus pode não legislar, mas comanda. A diferença entre lei e mandamento é que a lei é impessoal e universal, enquanto o mandamento é pessoal e subjetivo. As leis são escritas em livros e os mandamentos vivenciados.8
Por outro lado, a halachá é para hoje e não para ontem; aberta, não fechada; mutante e em evolução, não imutável e acabada. Sem dúvida, os rabinos do Talmud que criaram grande parte da lei tradicional, e sob a qual esta se desen volveu, a consideraram contemporânea, aberta e vivente. A lei não é algo inalterável, consumado no passado; cada nova geração tem a missão de voltar a criá-la para si mes ma. Nossa tarefa consiste em viver conforme as palavras de Deuteronômio: “Não com nossos pais, fez o Eterno esse pacto, mas com todos nós que estamos aqui vivos”. (Deu teronômio, 5:3)
A ortodoxia sustenta seu direito exclusivo e capacidade incontestável para determinar a lei, para definir os limites e a distinção precisa entre o permitido e o proibido. Ro senzweig alega vigorosamente: “Nós não conhecemos os li mites!” Um ato permitido pela ortodoxia pode parecer ve
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 11
dado para a sensibilidade religiosa do judeu moderno.
A consciência religiosa do judeu mo derno pode descobrir novas mitzvot, no vos mandamentos e novas proibições.
A ortodoxia comete um erro quando trata de congelar a realidade vivente da lei em parágrafos fixos, em códigos legais, como o Shulchan Aruch.9 Nem esta mesa, nem qualquer outra “mesa que mais al guém preparou” serve para ele. Quantas mais mesas, melhor, quanto mais variadas as mesas, me lhor, quanto mais diversificadas as pessoas em torno delas, melhor; para nós e para a Torá.
Seu conceito de Lei Judaica é uma síntese das posições da ortodoxia e do liberalismo, em que afirma a ambos e, ao mesmo tempo, os transcende.
Rosenzweig não observava todas as mitzvot. Ele fez uma seleção, tomando cuidado para que a escolha entre o que “pode” ou “não pode” cumprir não seja uma questão de caprichos, gostos ou preferência pessoal, mas um pro blema humano de profunda e extrema seriedade.10
As leis que cada um pode observar não são eleitas arbi trariamente. Sua observância emerge de um “devo” inte rior, uma afirmação interna da sua validade e um signifi cado que tem caráter compulsivo.
Este “devo” interior não brota por si só. O homem tem que buscar para encontrá-lo. Devemos fazer tudo o que podemos, e é possível que algum dia descubramos que podemos fazer tudo o que devemos, pois ao fazer tudo o que podemos, chegará o momento em que não será possí vel prescindir da mitzvá. É assim que a lei é nossa; quan do deixa de ser uma exigência exterior para ser uma ne cessidade interior.
O maior interesse de Rosenzweig não era que todos os judeus chegassem ao mesmo “devo” no que concerne à Lei, mas que suas decisões individuais resultassem de um profundo sentido de responsabilidade, e não que fossem motivadas pela indiferença, pela apatia intelectual ou pela frivolidade.
Quando alguém perguntava para ele se usava tefilin du rante as orações matutinas, ele respondia significativamen te: “Ainda não”. Ele ainda não tinha chegado a esse ponto, o que não quer dizer que não poderia chegar no futu ro e o que não significava que, para um outro judeu, essa fosse uma mitzvá essencial.
A noção da transformação do “posso” na realidade vi vente do “devo” representa a diferença decisiva entre a po
sição de Rosenzweig e o que ele via acon tecer no judaísmo liberal. Não nos desli gar da transcendência da mitzvá e não nos vincular a ela apenas nos aspectos que nos resultam confortáveis. Um ato permiti do pela ortodoxia pode vir a ser proibido pela sensibilidade religiosa do judeu moderno. Recuperar a função vital que a mit zvá tem no judaísmo, seu caráter obriga tório, não como imposição exterior, mas como uma necessidade interior, é um dos aspectos mais significativos deste fabuloso homem, que precisamente por ter sido um judeu marginal e ter se apro ximando do judaísmo a partir do seu exterior, compreen deu – talvez melhor que ninguém – a falta de sentido que o judaísmo tradicional tem para os judeus como ele: a dis tância entre o judaísmo e a vida cotidiana.
Quando ele sentiu essa falta, consagrou sua vida para preenchê-la de sentido. E essa tarefa – mais sagrada do que qualquer outra – gerou um pensamento original, ideias que nunca ninguém antes dele tinha colocado. Talvez por isso Rosenzweig me resulte tão relevante. Porque em toda a época moderna são muito poucos os aportes originais ao judaísmo. Ele foi capaz disso, dialogando com a Torá, com seus colegas e com a vida moderna, criando uma nova Torá. E a criação de uma nova Torá é, de fato, a única for ma de preservá-la.
Notas
1. Bergman, Samuel, Fe y Razón, Editorial Paidos. Biblioteca del hombre contempo ráneo, Buenos Aires 1997.
2. Idem.
3. Rosenzweig, Franz, On Jewish Learning, editado por Glatzer, p. 231.
4. Rosenzweig, Franz, Teaching and law, pp. 236, 241.
5. Eisen, Arnold, Beginning with Torah, New York, 2008.
6. Noveck, Simon, Great Jewish Thinkers of the Twentieth Century. Franz Rosenzweig by Nahum N. Glazer, B’nai B’ Rith, usa 1963, p. 178.
7. Para quem se interessar em buscar este material: em inglês referenciar “The Buil ders” em hebraico “Habonim”.
8. Gillman, Neil, Sacred fragments, The Jewish Publication Society, Philadelphia. Je rusalém, 1990.
9. Literalmente “Mesa Servida” é o código de leis compilado por Iosef Caro no sécu lo 16 e.c. e atualmente considerado definitivo pela ortodoxia.
10. São os 613 preceitos religiosos comandados por Deus ao povo de Israel.
Dario E. Bialer é rabino e serve à Associação Religiosa do Rio de Janeiro – ARI e cursou os estudos rabínicos no Seminário Rabíni co Latinoamericano Marshal T. Meyer, em Buenos Aires, e no Sche chter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém.
12 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Um arquivo de alianças, desejos e esperanças
Háalguns anos guardo imagens de anéis de casamento do século XVI pertencentes ao acervo do Museu de Arte e de História do Judaísmo, em Paris. Estes objetos me interrogam pelo difícil equilíbrio que suas formas suge rem. O que os adorna não são apenas pedras preciosas, mas recipientes em forma de edificações em miniatura ou de um sólido geométrico, que deveria conter especiarias, substâncias capa zes de reavivar nossos sentidos e mar car a diferenciação entre o tempo es pecial do shabat e os outros dias da se mana em seu transcorrer habitual.
Mas por que equilibrar tantos sig nificados nos dedos? Quantos dese jos e esperanças estes anéis transmi tiram ao longo de gerações, antes de serem imobilizados no museu? Que
sentidos lhes atribuir hoje, afastados dos rituais?
À ampla gama de desejos, esperan ças e enigmas que envolvem os anéis associo a poesia de Yehuda Amichaï, seus poemas de Jerusalém, que deli neiam a cidade longe de clichês, mos trando-a intensamente humana, voltada para a devoção a Deus, mas também plena de sensualidade.
No poema Jerusalém, 1985, Ami chaï associa os pedidos deixados no muro das lamentações a um bilhe te escrito na urgência de um encon tro desfeito: Desejos rabiscados pre sos nas fendas do muro das lamen tações,/ papéis amassados, empilha dos.// E no caminho, sob uma velha porta de ferro,/ parcialmente escondi da pelos jasmins, um bilhete:/ “Não
le I l A d A nz IG e R
pude vir, espero que você compreen da” (a partir da tradução francesa de Michel Eckhard Elial, em Yehuda Ami chai, Poèmes de Jerusalem , Paris, Ed. de l’Éclat, 2008, p. 41).
As imagens que proponho são tam bém bilhetes, anotações orientadas pelo que me parece ser o mais signi ficativo da tradição judaica em sua re lação com as artes plásticas: a inten sa materialidade da palavra. Por outro lado, organizei as imagens de modo que não existam isoladamente, mas em contato umas com as outras, produzin do uma coleção, uma espécie de ar quivo constituído por signos de alian ças, pactos, desejos e esperanças; um arquivo por definição incompleto, sem pre à espera de novas imagens, pala vras e anotações.
eN tre idealismo e pragmatismo: a estratégia do ki B utz para o século 21
entrevista de ed hofland a Gabriel Mordoch
Arevolução kibutziana é um dos exemplos mais felizes da concretização de um sonho. O ideal socialista dos pioneiros da imigração judaica a Eretz-Israel, aplicado num contexto agrícola, foi fundamental para a criação do moderno Estado judeu. No ora sexagenário Estado de Israel talvez muitos pensem que o kibutz perdeu sua relevância. No entanto, acompa nhando o ritmo da história sem perder seu caráter coletivo e igualitário, alguns kibutzim mostram que o sonho não acabou. Sua capacidade de adaptação os projeta enquanto peça de destaque no dinâmico e policromático mosaico das identidades judaicas contemporâneas. Ed Hofland, nascido na Holanda e veterano do kibutz Keturá, falou a Devarim sobre sua história de vida e sobre o kibutz no qual vive há mais de 30 anos.
Devarim: Hofland, conte-nos um pouco sobre sua histó ria pessoal.
Hofland: Eu vim a Israel em 1978 como voluntário. Antes disso eu já havia estado em Israel três vezes, duran te o verão, como voluntário no kibutz Orim. Decidi en
tão vir a Israel por pelo menos seis meses para entender melhor a essência do kibutz, bem como a essência do Estado de Israel. Nunca me destaquei na escola, de manei ra que a vinda para Israel também foi um tipo de fuga do sistema holandês.
Entendi então que para melhor integrar-me ao país eu precisaria me converter ao judaísmo. Nasci numa famí lia holandesa bem estabelecida, cristã-protestante, íamos a igreja todas as semanas. Em determinado momento en tendi que tratava-se do mesmo Deus, não importa a qual religião você pertence. Quando lhes contei minha decisão de tornar-me kibutznik e me converter ao judaísmo, eles não me contrariaram, nunca disseram que eu estava louco ou ameaçaram deixar de falar comigo, ao contrário, apoia ram minha opção.
Me integrei rapidamente ao kibutz Keturá, tanto em termos sociais quanto ao trabalho. Conheci minha futu ra esposa, casei e acabei ficando. Temos quatro filhos, dois homens e duas mulheres, o mais velho tem 25 anos, o mais novo 18. Acho que posso ser considerado um israelense em todos os aspectos, eu me integrei bastante.
14 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Devarim: Conte-nos um pouco sobre o kibutz Keturá.
Hofland: Keturá foi fundado em 1973 por um grupo (garin) provenien te dos Estados Unidos, do movimento Yehuda ha-Tzair. Desde o princípio hou ve uma mescla entre norte-americanos e sabras. No começo foi bem difícil. Quando cheguei, em 1978, o kibutz tinha cin co anos de existência, 20 membros, e pas sava por uma crise aguda. Desde então a situação melhorou. Hoje somos 150 membros, 250 crianças, ao todo uma po pulação de 455 pessoas advindas princi palmente dos movimentos juvenis Yehu da ha-Tzair e Tzofim. Há cerca de 15 anos
É preciso buscar um equilíbrio entre o coletivo e o individual. O fato de permitirmos aos membros do kibutz tomar iniciativas próprias, ou trabalhar no local que quiserem, é parte do sucesso, porque se os membros do kibutz ficam satisfeitos, então o kibutz também estará.
o movimento conservador Noam também colabora conosco.
Keturá não pertence a nenhuma cor rente formal, mas creio que estamos bas tante próximos da corrente conservadora. Há uma sinagoga ativa no kibutz. O ki butz recebeu um prêmio do Parlamento israelense no quesito Tolerância, por sua singular busca por um meio termo e uma convivência fraternal entre religiosos e lai cos. Nós queremos dar o exemplo de que esta convivência é possível. Não organi zamos atividades com microfone às sex tas-feiras à noite; costumamos nos reunir, há festas, mas sem o uso de energia elétri ca. Também não organizamos passeios aos
Vista do Kibutz Keturá, no Neguev, fundado em 1973 por imigrantes norte-americanos. Fotografias do acervo do Kibutz Keturá e de Gabriel Mordoch
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 15
sábados. Se há um pouco de compromisso de ambas as partes, sem radicalismo, a convivência torna-se uma realidade.
Por que um talento deve valer mais do que outro?
Ou adota-se a maneira kibutziana de pensar, ou trabalha-se sob o estímulo do dinheiro.
Keturá se administra ao velho modo kibutziano: o refeitório fornece três re feições diárias, seis vezes por semana. Nós não passamos pelas mudanças que vêm transformando outros kibutzim. O padrão mantido em Keturá é seguido atualmente por somente cerca de 30 kibutzim. Dos se tenta e poucos kibutzim que permanecem sendo coleti vistas, aproximadamente a metade é administrada no ve lho estilo kibutziano, sendo este o nosso caso.
Devarim: Conte-nos um pouco sobre a economia do kibutz e como ela se desenvolveu com o passar do tempo.
Hofland: Fomos fundados enquanto kibutz agríco la, com o apoio da Agência Judaica. Havia então espaços para a criação de perus, de vacas leiteiras, de cultivo de tâ maras, de mangas, de pomelos, e, o mais importante en tão, o cultivo de vegetais. O cultivo de vegetais na região da Aravá, onde estamos localizados, é realizado no inver no com a finalidade de exportá-los à Europa, teoricamen te a bons preços. Nós aprendemos a lição da maneira mais difícil: viver da agricultura é como viver da bolsa de valo res, quer dizer, você pode obter muito sucesso e alcançar bons resultados, mas se os preços do produto comerciali zado estão em baixa, então mesmo num ano de boa safra você acaba tendo prejuízo.
Além disso, não nos destacamos enquanto agricultores, pois a maioria de nós veio de fora do país, de famílias de classe média e alta, e de agricultura não entendíamos mui to. Então aos poucos fomos fechando os departamentos supra-mencionados, com exceção de dois: a produção de leite e o cultivo de tâmaras, nos quais somos muito bons.
Hoje cerca de 40% ou 50% dos membros do kibutz também possuem postos de trabalho fora do kibutz. Mais de 95% dos membros de Keturá possuem título acadêmi co. Isto lhes possibilita encontrar com relativa facilidade postos de trabalho, apesar de estarmos vivendo no meio do deserto, a 50 quilômetros de Eilat, ao sul – cidade cuja economia está baseada principalmente em turismo –, e a 200 quilômetros de Beer-Sheva, ao norte.
Estabelecemos muitos negócios baseados na formação e no conhecimento dos membros. Fornecemos um servi
ço de contabilidade a kibutzim e fábricas da região. Criamos um hotel de qualida de que recebe grupos de jovens de fora do país, aos quais ensinamos sionismo, juda ísmo e kibutzianismo. Criamos uma uni versidade para a preservação ambiental, o Aravá Institute, frequentada tanto por judeus quanto árabes, que vivenciam uma experiência muito intensa, tanto acade micamente como de vida coletiva. O estudante recebe cre denciamento da Universidade Ben-Gurion, e também há cursos de pós-graduação. Parte dos professores vem de Tel Aviv e parte pertence ao kibutz ou à região. Há membros do kibutz que oferecem serviços de traduções ou de webpo sitioning e há também um confeiteiro e um joalheiro.
Somos sócios de uma empresa que cria a autêntica va riedade ossetra russa de caviar, no kibutz Dan, no norte de Israel. Criamos uma marca registrada própria, a Karat Kaviar. A empresa é atualmente o maior produtor de ca viar do mundo. Trata-se do caviar mais qualificado e mais solicitado do mercado. No entanto, não comercializamos dentro de Israel, dado que caviar não é um alimento ca sher. Vendemos principalmente para Rússia, Japão e Es tados Unidos.
Adquirimos o conhecimento da Universidade Ben-Gu rion para a criação de um determinado tipo de alga a par tir da qual desenvolvemos um produto anti-oxidante, a as taxantina, que serve de suplemento alimentar e também é usada em produtos cosméticos, como cremes para o cor po e protetores solares. Vendemos este produto para Japão, Europa e Estados Unidos.
A astaxantina também serve de corante para o salmão. O salmão de carne branca, apesar de ter o mesmo sabor, não possui o mesmo apelo comercial do salmão rosado, de modo que os criadores adicionam astaxantinas químicas à ração do salmão. Nós desenvolvemos uma astaxan tina natural, que aos poucos está substituindo os coran tes sintéticos.
A criação das algas também está conectada aos biocom bustíveis, que hoje em dia são produzidos a partir de ali mentos como milho e cana de açúcar. A nova tendência mundial é preservar os alimentos e produzir biocombustí vel a partir de algas. A alga é uma planta de dificílimo cul tivo, portanto somos exclusivos e muito solicitados.
Outro empreendimento criado em Keturá é o aprovei
16 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
tamento da energia solar. Criamos, junto com um sócio norte-americano, a Aravá Power Company, empresa cujo objetivo é produzir energia elétrica a partir de energia so lar. Começamos há três anos e hoje somos a empresa líder no ramo. Assinamos acordos com a Siemens, da Alema nha, com kibutzim e proprietários de terras, e trabalhamos em coordenação com a empresa estatal de eletricidade e os órgãos reguladores.
Creio que o kibutz Keturá constitui uma exceção den tro do movimento kibutziano, porque a maioria de nós emigrou a Israel, de maneira que possuímos rica vivên cia em duas culturas diferentes. No kibutz há russos, sulamericanos, europeus, norte-americanos. Os sabras são cerca de 40%. Nós administramos o kibutz de forma con servadora, quase não pegamos empréstimos, tudo é financiado a partir dos nossos lucros. O nível de vida é modes to, não gostamos de desperdiçar. Temos fundos reserva dos para pensão e para os estudos acadêmicos das crianças do kibutz. Sempre que se decide pegar um empréstimo é necessário obter autorização de todos os membros do ki butz. Nosso mecanismo é prudente, evitamos riscos, pre
ferimos conduzir cinco ou seis negócios nos quais temos 30% de participação do que depender de um só negócio 100% próprio.
Nossa universidade também é especial. Cada estudante paga cerca de 6.500 dólares por semestre e recebe, além do programa de estudos, moradia e alimentação. Em Isra el é um preço relativamente alto, mas para os padrões nor te-americanos é baixo. Criamos uma organização que arre cada fundos para bolsas de estudos que consegue cerca de 2 milhões de dólares por ano a fim de financiar estudan tes israelenses e árabes.
O kibutz é administrado internamente de maneira ki butziana, entretanto em nossa relação com o mundo ex terno somos obrigados a competir no mercado e nos com portar como capitalistas. Tratamos de fazê-lo de modo hu mano e honesto.
Devarim: Esta é a chave do sucesso do kibutz? Por que, na sua opinião, a maioria dos kibutzim desapareceram?
Hofland: Além da qualidade dos membros há o “fa tor conjunto”. Enquanto os membros estiverem dispos
Criação de algas para o desenvolvimento de um produto antioxidante utilizado como corante do salmão, suplemento alimentar e em cosméticos.
tos a acordar cedo e trabalhar duro porque isto é bom para o kibutz, e se for bom para o kibutz então será bom para eles, a equação funcionará. Mas se começarem a se perguntar “por que tenho que traba lhar duro, uma vez que meu vizinho não o faz?”, ou dizer “eu trabalho muito mais que meu vizi nho”, a consequência será que todos irão trabalhar menos e a ideia kibutziana fracassará.
A economia é somente um meio para a felicidade dos membros, não é a meta.
na cidade. No kibutz Keturá ainda pen samos conforme a equação, os membros entendem que o que é bom para o kibutz é bom pra eles também.
Devarim: Ainda há portanto a prioriza ção do coletivismo em detrimento da individualidade?
Ou adota-se a maneira kibutziana de pensar, ou traba lha-se sob o estímulo do dinheiro. Em cerca de 200 kibut zim a equação não deu certo, de maneira que passaram a adotar o sistema de salário diferenciado, no princípio sem diferenciar muito, já que isto causou um certo desconfor to, mas com o tempo a diferença aumentou. Se sou um bom gerente e me dão 10% a mais do que recebe uma pessoa que mal trabalha, depois de um tempo vou que rer 20% ou 30% a mais e no final você acaba indo morar
Hofland: É preciso buscar um equilíbrio entre o cole tivo e o individual. O fato de permitimos aos membros do kibutz tomarem iniciativas próprias, ou trabalhar no local que quiserem, é parte do sucesso, porque se os membros do kibutz ficam satisfeitos, então o kibutz também estará. Nos preocupamos com a satisfação dos nossos membros, somos muito atentos a isto. Houve casos no passado em que o comitê do trabalho decidiu onde os membros deve riam trabalhar mas hoje isso quase não acontece. Porque se alguém é obrigado a trabalhar em determinada área, quan to tempo ele pode aguentar? Uma pessoa não pode traba-
A nova tendência mundial é preservar os alimentos e produzir biocombustíveis a partir de algas.
lhar a vida inteira num local que não gosta. Nós procuramos o lugar ideal para cada membro do kibutz, mesmo quando isso ocasiona menor lucro, porque a longo prazo convém ao kibutz.
Acho que, enquanto membros do kibutz, concretiza mos o sonho de ver Keturá ser bem sucedido, ao mesmo tempo em que estamos satisfeitos com nossas vidas pes soais. Se você for capaz de integrar as duas coisas... isso é um kibutz de sucesso. A economia é somente um meio para a felicidade dos membros, não é a meta.
Eu recebo bons salários das empresas em que traba lho como CEO e todo dinheiro vai para o kibutz. No fi nal das contas eu recebo o mesmo que a babá e que o tra balhador da lavanderia. Eu acho que isso é totalmente na tural e apropriado. Talvez eu tenha talento para administrar negócios, mas se me puserem num jardim de infância as crianças fugirão de mim. Por que um talento deve valer mais do que outro?
Devarim: Você não se vê morando em outro lugar do mundo?
Hofland: Eu moro no melhor lugar do mundo! No entanto não vivo em estado de euforia, eu sei que há des vantagens no kibutz, em viver na região da Aravá, mas para mim, no cômputo geral, é a forma de vida ideal. Há mo mentos difíceis, mas não há coisa melhor do que desen volver-se a nível pessoal, criar os filhos, sentir que se está contribuindo com a comunidade. Acho que a influência de cada membro do kibutz sobre o kibutz e sobre a região – a área sul da Aravá – é muito importante. Esta região re presenta 13% do total do território do Estado de Israel, e há tão somente duas mil pessoas adultas vivendo neste es paço. De maneira que, enquanto indivíduo, sinto que es tou contribuindo, construindo, fazendo. Há poucos luga res no mundo que te permitem sentir isto.
Devarim: Você vê os jovens do kibutz vivendo no kibutz no futuro?
Hofland: Ficarei muito contente se isso acontecer, mas não dá para saber. Eles receberam uma boa educação e eles decidirão. Seria decepcionante vê-los abandonar o país, mas entenderia se não optassem pelo kibutz. Isso de pende de muitos fatores, do cônjuge, do local de trabalho, etc., mas acho que a maioria gosta do estilo de vida kibut ziano. Em Yotvatá, o maior kibutz da região, há muitos jo
vens que deixaram o kibutz e que, quando chegaram à fai xa dos 30 anos, voltaram. Eles experimentam a vida na ci dade, mas depois do nascimento do primeiro ou segundo filho eles entendem que no kibutz não é tão ruim assim, apesar das desvantagens.
Devarim: Como você se sente como israelense hoje?
Hofland: Acho que sou um tanto sionista... Costu ma-se falar muito sobre periferia no Estado de Israel, dizem que Beer-Sheva por exemplo é periferia. Beer-She va na verdade é no centro do país, Beer-Sheva fica a uma hora de Tel Aviv, é muito perto. A verdadeira periferia de Israel é a Aravá. Na Aravá ainda há muito o que fazer, de maneira que realmente sentimos que estamos construin do algo.
Eu realmente penso que daqui há 20 ou 30 anos sen tirei que fiz algo, que estabeleci algo. Nós juntos estamos construindo algo que não estaria lá se não fosse a presen ça dos kibutzim.
Gabriel Mordoch é mestrando em Línguas e Literaturas Judaicas na Universidade Hebraica de Jerusalém. Nascido na Holanda, Ed Hofland imigrou para Israel em 1978.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 19
Bleex / iStockphoto.com
h eróis a N ô N imos: o processo de dissidê N cia da ortodoxia judaica em i srael 1
marta F. topel
A modo de introdução
Os judeus brasileiros têm sido protagonistas e testemunhas de uma mudança significativa do judaísmo local. Essa mudança é mais visí vel na cidade de São Paulo e pode ser definida como o processo de ortodoxização do judaísmo paulistano, causado pelo amplo poder de convocatória dos rabinos ligados ao Movimento Chabad-Lubavitch, ao Binyan Olam e a outras sinagogas e correntes ortodoxas, dentre as quais tem destaque a sinagoga Mekor Haim, dirigida pelo rabino Dichi.
A partir do final da década de 1980, o processo de chazará bi´teshuvá, defi nido pelos rabinos doutrinários como o retorno às raízes autênticas do judaísmo (o que implica a transformação de judeus laicos e liberais em ortodoxos), tem ganho muitos adeptos na cidade. A multiplicação de sinagogas, yeshivot, kole lim, escolas ortodoxas para meninas e meninos, mikves e uma ampla gama de atividades recreativas e de estudo informal do judaísmo haláchico constituem indicadores fiéis da transformação ocorrida.
Não menos importante é a ampliação e diversificação pelas que passou o mercado casher, através da abertura de pequenos comércios, minimercados, res taurantes, pizzarias e, inclusive, da venda de produtos casher em redes de supermercado não judias. O processo descrito acima não se restringe ao Brasil ou à comunidade judaica de São Paulo; assim, diversos pesquisadores mostram que o movimento de teshuvá influenciou significativamente o judaísmo contempo râneo (alguns autores dirão pós-moderno), tanto em Israel como nas comuni dades diaspóricas.
Também no Brasil existem iotzim le´sheelá, isto é, judeus que por alguma razão decidiram desvincular-se das comunidades ortodoxas e adotaram o modus vivendi da sociedade moderna e secular.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 21
Mas se no Brasil a maioria dos judeus são conscientes deste fenômeno, poucos sabem que existe um movimento opos to, denominado ietziá le´sheelá (do he braico: saída à procura de perguntas). Trata-se de judeus ortodoxos que opta ram por uma vida secular. E se bem que o abandono da ortodoxia seja mais vi sível em comunidades ortodoxas com uma longa tradi ção, como a de Israel e a dos Estados Unidos, também no Brasil existem iotzim le´sheelá, isto é, judeus que por alguma razão decidiram desvincular-se das comunida des ortodoxas e adotaram o modus vivendi da sociedade moderna e secular.
A deserção da ortodoxia no Israel contemporâneo
O fenômeno da ietziá le´sheelá pareceria ser novo ou, pelo menos, relativamente novo, se levarmos em consi deração que as ONGs que apóiam os dissidentes religio sos israelenses foram criadas na década de 1990. Entre tanto, a dissidência da ortodoxia judaica remonta aos sé culos XVIII e XIX, momento em que a grande maioria de judeus europeus deixou o tradicionalismo das comu nidades ortodoxas para aderir àquelas formas de juda ísmo que se aggiornaram aos ares da Modernidade. Em Israel, o processo foi similar e, com o estabelecimento do Estado, um número significativo de judeus ortodo xos abandonou as comunidades de origem para alistarse nas fileiras do sionismo e participar da construção da nova sociedade.
Mas se nesse caso existiam diferentes instituições que com os braços abertos recebiam os desertores da ortodo xia, como kibutzim, moshavim, o exército, os movimentos juvenis e as universidades, na atualidade a situação é dife rente e os iotzim le´sheelá devem confrontar-se com uma série de obstáculos. Assim, por exemplo, os jovens deserto res deixam as certezas da visão de mundo religiosa para de parar-se com a relatividade axiológica característica da so ciedade secular contemporânea. Ou seja, a ietziá le´sheelá (saída à procura de perguntas) não leva os dissidentes reli giosos a um mundo de respostas claras, e não há emprei tada heróica da qual fazer parte numa sociedade denomi nada por alguns de pós-sionista.
O processo torna-se mais difícil ainda se pensarmos
que 90% dos desertores são jovens entre os 18 e 23 anos. Jovens que se defrontam com a falta de legitimidade das institui ções seculares, o caráter solitário e indivi dual do caminho escolhido, o individua lismo acirrado da sociedade maior e a in diferença das instituições nacionais para oferecer apoio aos dissidentes.
O estigma e ostracismo com os quais são rotulados os iotzim le´sheelá nas comunidades ortodoxas e na fa mília piora o processo, transformando-o em um percur so no qual os indivíduos têm de lutar contra pais, irmãos e rabinos, o despreparo para desempenhar-se na socieda de secular com sucesso, dúvidas existenciais que devem ser resolvidas numa situação de solidão devastadora, fal ta de moradia e dos mínimos recursos para o sustento di ário, só para mencionar alguns dos obstáculos que carac terizam o processo de dissidência das comunidades ortodoxas no Israel de hoje.
Mas, quem são os desertores da ortodoxia no Israel contemporâneo? Em um documento da ONG Dror destinado a obter subsídios do Estado e apoio financeiro de entidades particulares e fundações para os iotzim le´sheelá, são destacados seis itens para a sua definição:
– abandono da comunidade ortodoxa e aspiração a levar um estilo de vida livre;
– falta de educação suficiente que possibilite a inserção na sociedade secular;
– ruptura com a família e com a sociedade conhecida;
– alienação no que diz respeito aos valores seculares, fe nômeno que revela seu lado oposto, ou seja, o desconhecimento da sociedade secular em relação à situação dos desertores;
– crise identitária e fragilidade psicológica como resultado da dificuldade em compreender novos códigos sociais;
– dificuldade em encontrar uma crença alternativa àque la que foi abandonada com a saída do universo orto doxo.
A ONG Dror tem redobrado esforços para criar um lo bby no Parlamento e no governo com o fim de conscienti zar parlamentares e ministros da situação precária dos dis sidentes religiosos. O objetivo mais importante dessa mo bilização é que a Knesset promulgue uma lei que assegure
A saída à procura de perguntas não leva os dissidentes religiosos a um mundo de respostas claras.
22 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
apoio do Estado àqueles que abandonaram as comunida des ortodoxas, e que os iotzim recebam o status de olé cha dash (novo imigrante); paradoxalmente, e como é ressal tado em diversos documentos da ONG Dror, “novos imi grantes em sua própria pátria”.
A ruptura: por que arriscar-se, por que fazer perguntas?
Quando ao longo da minha estada em Israel para re alizar o trabalho de campo perguntei aos iotzim le´sheelá com quem conversei quais foram as razões principais para terem abandonado a ortodoxia, as respostas mais recor rentes foram não suportar o olhar vigilante existente nas comunidades ortodoxas (por parte de pais, rabinos, pro fessores e pares, principalmente nas yeshivot), almejar es tudar na universidade e trabalhar, bem como serem livres para escolher o melhor caminho para a personalidade de cada um. Entre os homens, foram um denominador co
mum as críticas ao sistema da yeshivá, isto é, a obrigato riedade de dedicar-se full time ao estudo dos textos sagra dos. Para compreender este último, devemos lembrar que as yeshivot, além de estarem separadas do mundo exterior por barreiras físicas, desenvolveram um rígido sistema de separação do mundo externo.
Este processo se observa na proibição – sob ameaças de castigos – de os alunos frequentarem espaços seculares, como cinema, teatro, cafés, praias, bibliotecas públicas e outros. Todavia, como instituições de ensino, a neutraliza ção do mundo externo, isto é, do mundo secular, observase principalmente no currículo que contempla muito su perficialmente matérias do ensino laico, como geografia, hebraico moderno2, história, matemática e inglês.
E não se trata de uma mera estratégia de focalizar o es tudo dos internos nos textos sagrados, mas de tornar os alunos ineptos para o convívio na sociedade moderna e se cular. As consequências disto são visíveis nas dificuldades
O caminho de “sair à procura de perguntas” no mundo secular é solitário e não tem respostas claras.
Amit Erez / iStockphoto.com
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 23
enfrentadas pelos iotzim le´sheelá uma vez que se desvincularam da ortodoxia. Assim, por exemplo, o fato de as yeshi vot não prepararem seus estudantes para as bagruiot3 tor na seu desempenho na sociedade secular muito mais difí cil, tanto se é para seguir uma carreira universitária como para inserir-se no mercado de trabalho.
A autoestima dos desertores, por outro lado, é atingida por isso, por sentirem-se inferiores aos jovens laicos e em desvantagem para desempenhar-se com sucesso nas com petitivas universidades e no igual competitivo mercado de trabalho. Pode acrescentar-se que as comunidades ortodo xas não só tentam separar-se o máximo possível da socie dade secular, mas inculcam nos jovens a ideia de que os va lores seculares são corruptos e contrários ao judaísmo. Eis um exemplo dessa atitude:
Estudei em uma escola de meninas: duas mil moças que escutam o tempo todo que os laicos são pessoas más e o mui to que nós éramos boazinhas. E você sai dessa borbulha e descobre que entre os ortodoxos há pessoas ruins igual que entre os laicos... Em certo momento me dei conta de que os religiosos não eram melhores, e que os laicos não só conso mem drogas e estão interessados em sexo, mas que são pes
soas completamente normais. Porém, leva tempo você mudar a sua cabeça.
Os dois lados da moeda, ou entrar no mundo ortodoxo é mais fácil que pular as muralhas do gueto ortodoxo
Não há nenhum traço de romantismo nas muitas his tórias que ouvi durante os meses que conversei com os de sertores da ortodoxia, nem a certeza de “ter chegado ao lu gar certo” (como costumam asseverar sem um ápice de dú vida os chozrim bi’teshuvá em particular e os convertidos de modo geral), mas o convencimento férreo de ter deixa do um mundo para o qual “não foram feitos”, e a esperan ça e a determinação de encontrar seu lugar na sociedade secular. Uma outra diferença marcante entre os que abandonaram a ortodoxia e os que a escolheram como siste ma de vida diz respeito à solidão e ao vazio dos primeiros em oposição à quantidade de novos relacionamentos que são garantidos aos chozrim bi’teshuvá, que abrangem famí lias adotivas, apresentação de parceiros para casar, comu nidades nas quais são bem-vindos e o apoio incondicional dos rabinos que oficiam como professores, pais adotivos
Os iotzim ostracismo comunidades ortodoxas e nas famílias.
le´sheelá têm de lutar contra o estigma e o
nas
Özgür Donmaz / iStockphoto.com
e guias espirituais. Além do mais, os que se arriscam a sair do universo ortodoxo, além de não contar com qualquer ajuda além da providenciada pelas ONGs Hil lel e Dror, são humilhados por rabinos e pais. Em síntese, se as famílias dos chozrim bi´teshuvá demonstram tolerância e fazem inúmeros esforços para manter o relacio namento com os filhos, no caso dos iot zim le´sheelá, a ruptura por parte da fa mília é drástica e, em muitos casos, sem volta, apesar das tentativas dos dissidentes em aproximar-se de pais e irmãos.
Nos relatos dos iotzim li’sheelá, a saí da das comunidades ortodoxas é retratada como uma fuga – quase como um ato criminoso –, que como toda fuga deve ser programada em seus detalhes para ser marcada pelo sucesso. Entre as várias pro vidências que devem tomar os dissidentes, achar uma mo radia e contar com algum dinheiro são algumas das mais difíceis e urgentes para, literalmente, pular as muralhas do gueto ortodoxo. Nem todos os iotzim le´sheelá conseguem vencer esse primeiro obstáculo com êxito, e foram várias as histórias que ouvi de pessoas que ficaram na rua por pe ríodos mais ou menos curtos tentando encontrar um teto. Os depoimentos que seguem fazem referência a essa situa ção e retratam o desamparo e a crueldade que distinguem a primeira etapa de abandono da ortodoxia:
O estigma e ostracismo com os quais são rotulados os iotzim le´sheelá nas comunidades ortodoxas e na família piora o processo, transformando-o em um percurso no qual os indivíduos têm de lutar contra pais, irmãos e rabinos e o despreparo para desempenhar-se na sociedade secular com sucesso.
De certa forma, literal e metaforicamente, os iotzim entram na sociedade se cular nus, já que às vezes nem sequer dis põem da roupa necessária que substitua o “uniforme ortodoxo” e lhes permita dar os primeiros passos no novo mundo. Além do mais, o prestígio social que tinham nas comunidades ortodoxas, como pertencer a determinada família, terem sido bons alunos nas academias rabínicas, dominar a língua iídiche e conhecer de cabo a rabo o Talmud, não constituem sinais de status ou valores de barganha na sociedade secular.
Se a isso somamos a ruptura drástica com a família e as sanções que na maioria dos casos são impostas por pais, irmãos e parentes de segundo grau aos que se aventuram a sair do gueto ortodoxo, não é possível imaginar outro termo que o luto para começar a compreender o processo vivenciado pelos dissidentes da ortodoxia israelense e a sua definição como verdadeiros he róis, jovens corajosos que colocam todas as suas energias – intelectuais, emocionais e espirituais – num único obje tivo: serem livres.
Notas
1. Este artigo foi redigido com dados da tese de livre-docência: “A ortodoxia judaica e seus descontentes: dissidência religiosa no Israel contemporâneo”, defendida na USP em dezembro de 2008.
Para sair você precisa esperar o anoitecer para que nin guém reconheça você. Eu fugi para o cemitério e decidi ficar lá até encontrar um lugar melhor. Fui ao cemitério porque fica perto da minha casa, mas ninguém transita por lá. Além disso, não sei se você percebeu, mas em Bnei Brak4 não existem jardins públicos e, como muitas pessoas me conhecem, eu tinha medo de que me identificassem... No cemitério eu sabia que ninguém circulava, além de que lá tinha uma sensação de tranquilidade. Digamos que naquele lugar onde as pesso as morrem, eu renasci.5
Era meia-noite e meu pai me disse: você tem dez minutos para deixar esta casa. Eu fui para a rua... Saí com algumas centenas de shkalim6, mas logo acabaram. Fiquei algumas se manas dormindo na praia até que arrumei um emprego em troca de comida numa mercearia, logo um emprego melhor e depois de um tempo consegui alugar um quarto.7
2. Nas yeshivot não se ensina o hebraico moderno e os iotzim le´sheelá que provêm de famílias chassídicas utilizam o iídiche no dia-a-dia. Para todos, incorporar o he braico moderno, tanto no nível da gramática, como no nível coloquial constitui o problema, transformando-se num obstáculo a mais para se inserirem na sociedade israelense secular.
3. Série de provas realizadas pelos alunos no último ano do ensino médio que os ha bilita a fazer o exame psicométrico para ingressar nas universidades e faculdades do país.
4. Cidade ultraortodoxa próxima a Tel Aviv.
5. O moço em questão dormiu alguns dias no cemitério até entrar em contato com a ONG Dror, que lhe arranjou um apartamento provisório.
6. Pl. de shekel, moeda israelense.
7. Dados das ONGs Hillel e Dror e de pesquisas sobre a comunidade ortodoxa em Israel e sobre a situação de menores abandonados apontam que 90% dos meno res que deambulam pelas ruas do país provêm de famílias ortodoxas. Cfr. Ilan, Sh. Charedim Be’Erbon Mugbal. Jerusalém, Keter Publishing House, 2000.
Marta F. Topel é antropóloga, livre-docente, professora e pesquisa dora no Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Litera tura e Cultura Judaica da USP.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 25
Aneta Skoczewska / iStockphoto.com
“ e um dia já
F izeram parte de N ós”
A Alemanha moderna vem se destacando pelos muitos memoriais às vítimas do Holocausto que pontuam suas paisagens. Mas existe um fenômeno digno de nota e do qual não se ouve falar muito: pelo país afora alemães não judeus vêm trabalhando para restaurar, documentar e perpetuar a memória da vida e cultura judaicas de antes da instalação do nazismo.
Na página anterior, a Neue Synagoge em Berlim, parte de um processo de recuperar a memória e recriar a vida e a cultura judaica na Alemanha.
dan Fleshler
Ohistoriador Peter Gay lembra-se de ter ouvido o chanceler da Ale manha Ocidental, Willy Brandt, dirigindo-se a uma plateia de novaiorquinos em 1964, dizer: “Temos saudades dos nossos judeus”.
Naquela ocasião, a reação de Gay foi que “ele tinha mesmo todos os motivos para sentir saudades de nós, embora eu duvidasse que este sentimen to por parte dele fosse uma preocupação vital para a maioria dos alemães.”
Hoje em dia encontramos alemães em praticamente todas as cidades, e não só nas metrópoles, trabalhando para garantir que seus vizinhos sintam a falta dos judeus que um dia viveram entre eles.
A Alemanha moderna vem se destacando pelos muitos memoriais às vítimas do Holocausto que pontuam suas paisagens, pelas compensações que vem pa gando aos sobreviventes e pelo apoio bastante sólido que vem oferecendo a Is rael. Mas existe um fenômeno digno de nota e do qual não se ouve falar mui to: pelo país afora alemães não judeus vêm trabalhando para restaurar, docu mentar e perpetuar a memória da vida e cultura judaicas de antes da instala ção do nazismo.
As comunidades judaicas não foram exatamente ressuscitadas, com exceção de algumas poucas localidades, porém cidadãos comuns conseguiram criar a sensação concreta de uma presença judaica, alguma coisa muito mais tangível do que algo passível de ser evocado por placas ou monumentos.
Uma destas pessoas é Angelika Brosig, uma assistente social da cidade de Schopfloch, na Bavária, que fotografou e documentou lápides quase apaga das do cemitério judaico local. A ideia de fazer isto lhe ocorreu depois que, em
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 27
1977, uma amiga, ao visitar o cemitério e vê-lo em ruínas, teve uma crise de choro. Brosig também criou um site na internet com a finalidade de angariar donativos para res taurar as lápides, além de estar pesquisando a genealogia das famílias judias locais e tratando de encontrar antigos residentes judeus e seus descendentes.
Brosig foi uma das cinco pessoas agraciadas com um dos prêmios Obermayer de História Judaica Alemã para 2010, que foram entregues em uma cerimônia no Parla mento em Berlim no dia 25 de janeiro. Este prêmio, cria do há dez anos, foi idealizado por Arthur Obermayer, um empreendedor aposentado da área de Boston, cujos ante passados vieram da Alemanha. O conceito do premio sur giu de uma viagem que ele fez à Alemanha em busca de suas raízes.
Ao falar desta viagem ele diz: “Em cada comunidade que visitei encontrei pessoas maravilhosamente generosas dedicando uma parcela significativa de suas vidas à tarefa de descobrir e preservar a história judaica local. Em Har dheim, ganhei um disquete contendo os nomes e o his tórico completo de cerca de 90 pessoas de minha família que viveram lá no século XIX, levaram-me para conhe cer algumas de suas casas e também a planta de manufa
tura de sabão de um de meus antepassados. Em Fuerth pude visitar o antigo cemitério judaico onde foram enter rados meus familiares, acompanhado pela senhora que o reconstruiu. Em Augsburg mostraram-me as casas onde meus tataravós e os pais deles tinham vivido há mais de 200 anos, ganhei uma cópia do contrato de casamento deles e ainda me levaram para conhecer o cemitério onde estão enterrados”.
Depois de passar por experiências como estas em cinco comunidades, Obermayer decidiu que era preciso fazer al guma coisa para valorizar esse trabalho e encorajar outros alemães a fazê-lo. Quando os alemães descobrirem e pas sarem a apreciar a cultura e sociedade judaicas que um dia existiram aqui, será bom assegurar que ficarão vigilantes para que nada como o Holocausto jamais volte a aconte cer, disse Obermayer, que também fundou um museu de história judaica na cidade alemã de Creglingen.
Enfrentando o passado
Muitas vezes ensinar aos alemães sobre o que houve no passado implica em forçá-los a enfrentar verdades de sagradáveis que eles prefeririam ignorar. Em 2006, Brosig
Cúpula restaurada da Neue Synagoge na Oranienburgstrasse, em Berlim.
Alex Nikada /
iStockphoto.com
organizou um festival de memória e pendurou uma faixa do lado de fora de uma casa que no passado abrigara uma sina goga. A região, Francônia, tinha sido um ninho de antissemitismo na Alemanha do pré-guerra. Na opinião dela, era chegado o momento de acabar com alguns dos mi tos que a comunidade ainda guardava so bre a sua própria história.
Muitas vezes ensinar aos alemães sobre o que houve no passado implica em forçá-los a enfrentar verdades desagradáveis que eles prefeririam ignorar.
Segundo ela, todos os panfletos turís ticos diziam que a região era aberta aos judeus. Mas não é verdade. O nacional-socialismo liderava ali. O que fize ram com os judeus durante os anos anteriores à guerra foi humilhante. Ela tenta manter na memória pública alguns incidentes especialmente aterradores, como o que aconteceu durante a Noite dos Cristais, em 1938, quando os últimos 18 judeus de Schopfloch foram forçados a correr pelas ruas e espancados enquanto as janelas de suas casas eram estilhaçadas.
Outros premiados deste ano são um fazendeiro aposen tado e duas professoras que diligentemente reconstruíram e publicaram as histórias de suas comunidades judaicas lo cais e também um advogado que liderou esforços para res taurar uma sinagoga na praça de sua cidade.
Obermayer continuou dizendo: “Muitos judeus da mi nha geração (ele tem 78 anos) ainda se recusam a visitar a Alemanha. Mas não me parece justo culpar os alemães de hoje por crimes pelos quais eles não foram responsáveis. O fato é que cidadãos de outras nacionalidades deveriam se espelhar na atitude das pessoas que estão preservando e reconstruindo a sociedade e cultura dos judeus alemães e fazer deste exemplo um aprendizado. Estas pessoas não es tão fazendo o seu trabalho com o único objetivo de lem brar o passado, mas também para manter uma vigilância constante quanto a quaisquer sinais de racismo, precon ceito e intolerância”.
Construindo novas amizades
Muito embora a principal motivação do trabalho des tes guardiões da memória seja impactar seus compatriotas, o efeito de suas atividades estendeu-se para muito além das fronteiras da Alemanha, tendo tocado as vidas de descen dentes de judeus alemães no mundo inteiro.
O que torna os prêmios Obermayer especialmente to
cantes é que os escolhidos são nomeados por judeus que vivem no estrangeiro –muitos deles sobreviventes do Holocaus to –, cujas famílias no passado viveram nas regiões onde os agraciados fizeram seu trabalho voluntário. No decorrer do tra balho de busca das raízes destes judeus, é bastante comum que aqueles que bus cam suas raízes e aqueles que os ajudam a buscá-las se tornem muito bons ami gos e embarquem juntos na mesma viagem de descober tas e lembranças.
Richard Yashek, nascido na cidade de Lübeck, foi de portado para Riga ainda garoto e perdeu toda a sua famí lia imediata no Holocausto. Segundo sua esposa, Rosalye, durante a maior parte de sua vida ele jamais falou sobre aquela época e tentou “reprimir todas as suas lembranças, tanto as boas como as ruins, perdendo assim todo o sentido de infância, família e raízes”.
Tudo isso foi devolvido a Yashek, já falecido, por Hei demarie Kugler-Weiemann, uma das agraciadas com o prêmio Obermayer deste ano. Heidemarie é professo ra em Lübeck e criou um programa de Estudos Judaicos e de Holocausto para estudantes de todas as idades, in cluindo alguns pesquisadores independentes do Holo causto. Também organizou minuciosos registros dos an tigos residentes da cidade e do que aconteceu com eles durante o nazismo, tendo publicado vários livros sobre este assunto.
A convite dela, Yashek voltou à sua cidade natal. Ela o ajudou a encontrar ruas e prédios de que ele se lembra va e fez com que ele tivesse acesso a arquivos para que ele pudesse responder às suas próprias perguntas, e até conse guiu reunir 16 de seus amigos de infância em um encon tro choroso.
Ao escrever um material nomeando Kugler-Weiemann para um prêmio Obermayer, a esposa de Yashek declarou: “Pelo resto da vida dele, sua amizade com Heidemarie, com muitas das pessoas que ele conheceu e com aqueles amigos que reencontrou depois de tantos anos enriquece ram seus dias e preencheram sua vida com muito encan tamento. Foi como se ele tivesse recebido uma injeção de felicidade. Ficou inundado de memórias... que trouxeram de volta todas as boas lembranças... ele encontrou um lar para o qual podia voltar”.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 29
Durante as primeiras décadas pósSegunda Guerra Mundial consideravase uma grosseria discutir o Holocaus to em público na Alemanha. Aos pou cos, esta resistência foi desaparecendo.
O desafio que a Alemanha enfrenta não é só a necessidade de instruir as novas gerações sobre os horrores do Holocaus to; é também a suposta “fadiga do Ho locausto”, o sentimento prevalente entre os alemães de que foram bombardeados com um excesso de informações sobre as atrocidades nazistas. O trabalho come morativo feito pelos ganhadores dos prê mios Obermayer vem chamando a atenção de educadores como uma cura para este mal, sobretudo entre os alemães mais jovens.
O desafio que a Alemanha enfrenta não é só a necessidade de instruir as novas gerações sobre os horrores do Holocausto; é também a suposta “fadiga do Holocausto”, o sentimento prevalente entre os alemães de que foram bombardeados com um excesso de informações sobre as atrocidades nazistas.
von Braun, diretora do Instituto de Estu dos Culturais da Universidade Humbol dt. “Mas não estão cansados de ouvir falar naquilo que se perdeu em termos de his tória e cultura alemãs, ou sobre as pesso as que viveram aqui por centenas de anos. Os estudantes alemães estão ansiosos para ouvir falar destas pessoas, para aprender que um dia já fizeram parte de nós.” Assim, a memória destes judeus conti nua viva em cada cantinho da Alemanha, e eles fazem uma enorme falta. É difícil imaginar melhor vingança contra Hitler e seus ajudantes.
“Muitos jovens estão realmente bem cansados de ouvir falar o tempo todo sobre genocídio, algo que nem ao me nos conseguem imaginar”, segundo a professora Christina
Dan Fleshler, membro da Hebrew Tabernacle Congregation da cidade de Nova York, é con sultor para estratégias de comunicação e políti cas públicas e autor do livro Transforming America’s Israel’s Lobby – The Limits of Its Power and the Potential for Change, publicado pela Potomac Books em maio de 2009.
A cura da “fadiga do Holocausto”
Traduzido por Teresa Roth
Porta da nova sinagoga principal de Munique, reconstruída em 2006 no mesmo lugar da antiga sinagoga destruída durante a “Noite dos Cristais” em 1938.
Elena Korenbaum /
30 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
iStockphoto.com
Ufuk Zivana / iStockphoto.com
s omos l ivres... Nossa r espo N sa B ilidade c omeça
Em maio de 2009, o Tribunal Penal Internatio nal determinou a prisão do presidente do Sudão (Omar Hasan Ahmad al-Bashir) por crimes con tra a humanidade ocorridos em Dafur. Aproxi madamente dois milhões de pessoas foram expulsas por motivos étnicos, com cerca de 70 mil mortos. O que, entretanto, deveria ser óbvio, ou seja, a condenação por um massacre, não parece. Algumas nações continuam a dar apoio a um governante que está sendo processado por crimes contra a humanidade, esquecendo da responsabili dade internacional da proteção aos direitos humanos.
A proteção dos direitos humanos encontra seu mo mento de destaque inicial na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, editada pela Assembleia da França, após a Revolução Francesa, em 26 de agosto de 1789, na qual se destaca o preceito de que “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ter como fundamento a utilidade comum”. Igualmente foi estabelecido que todos os homens são iguais perante a lei. Por sinal, esta Revolução tinha como palavras de ordem a liberdade, a igualdade e a fraternidade.1
Após o terror nazista, vitimando milhões de pessoas, ressaltando-se os seis milhões de judeus dizimados, editou a Organização das Nações Unidas nova Declaração de Direitos do Homem, repetindo o espírito da Revolu ção Francesa.
Eventos Mortos
Holocausto 6.000.000 judeus 500.000 ciganos 54.000 homossexuais
Camboja 2.000.000 cambojanos Turquia 1918 1.500.000 armênios
Genocídio Ucraniano (1932/33) 3.000.000 ucranianos
Ruanda 800.000 tutsis
Bósnia Herzegovina 200.000 bósnios
Massacre de Srebrenica 8.373 bósnios
Timor Leste 150.000 timorenses
ricardo luis sichel
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 33
Estes números revelam a capacidade do ser humano em matar seu semelhante, por motivos os mais variados, sem qual quer distinção entre homens ou mulhe res, idosos ou crianças, movido pelo pre conceito e pela crueldade, que transforma a vítima em subumano e, portanto, passí vel de ser eliminada.
Um fato estarrecedor sobre a solidariedade internacional é que esta, via de regra, é requisitada apenas pelo grupo perseguido.
Os judeus, na insanidade nazista, não eram arianos e desta forma não eram pessoas; os tutsis, por seu turno, eram chamados de “baratas” e, portanto, po deriam ser eliminados; assim a loucura genocida retira da pessoa a sua condição humana, de forma a justificar a sua eliminação. Já em Timor Leste, após a independência de Portugal, ocorreu a invasão pela Indonésia e, em 25 anos, 2/3 da população timorense havia sido dizimada. O fil me “Timor Leste – O massacre que o mundo não viu” dá uma boa noção do massacre e buscou denunciar as atroci dades perpetradas.
Nesse ponto, observo que o genocídio, além de estar li gado à limpeza étnica, pode também se vincular a um mas sacre de forma indiscriminada de pessoas de forma a aten der a ânsia de um ditador. São conhecidos os motivos que levavam à internação de pessoas nos Campos de Trabalho Forçado durante a Ditadura de Pol Pot, como, por exem plo: ser detentor de formação universitária e usar óculos,
entre outros “motivos”. Já em Ruanda, o alvo eram os tutsis, em função de riva lidades tribais locais e o massacre, como em Timor Leste, foi denunciado em vários documentários e filmes, como “Hotel Ruanda” e “Tiros em Ruanda”, este últi mo editado pela BBC, tendo em seu corpo diretivo sobreviventes do genocídio. Em todas estas ocorrências existe a ne gação de um direito básico do ser humano, qual seja, aque le de inexistir diferença motivada por cor, etnia, religião. Entretanto, o fundamentalismo, em todas as suas facetas, tem como pressuposto a negação daquele que é diferen te, pauta sua conduta pela intolerância e, assim, a vida e a integridade física das pessoas que não se enquadram no grupo não têm valor, podem e devem ser sacrificadas, em nome de uma falsa purificação, baseada na ideia de que a existência destes contamina aqueles que se dizem “puros” ou os defensores da fé.
Porém, um fato estarrecedor se refere à solidariedade internacional àqueles que são vitimados pela intolerância. Esta, via de regra, é requisitada pelo grupo perseguido. Nós, até hoje, ouvimos relatos dos perseguidos pela histe ria nazista que buscavam refúgio e em muitos casos não a obtinham, sentindo-se abandonados pelo mundo e, desta forma, entregues à própria sorte. O mundo fingia que não
Hypergon / iStockphoto.com
enxergava, ou melhor, não queria ver, para não se comprometer com o poder nazis ta, sendo poucos aqueles que adotavam uma linha de ação diferente (Dinamarca, Bulgária). A solidariedade humana deixa va de existir. Após a guerra, o mundo se contentou em ver pessoas depositadas em campos, denominados como “Displaced Persons”, sem um local para ir, como ver dadeiros rejeitos humanos.
E hoje, ela existe? Os judeus estão em uma situação bastante mais confortável em diversos países desde a criação e o esta belecimento do Estado de Israel. Porém, os organismos judaicos pouco se manifestam em relação às perseguições posteriores à Segunda Guerra Mundial. A barbárie somente mudou com relação à titulação das vítimas. Não quero com isso criar parâme tros de comparação com a barbárie nazista, única em bus car o ser judeu, independentemente da nacionalidade e de sua localização.
Os judeus estão em uma situação bastante mais confortável em diversos países desde a criação e o estabelecimento do Estado de Israel. Porém, os organismos judaicos pouco se manifestam em relação às perseguições posteriores à Segunda Guerra Mundial.
nos lembrar da condição de forasteiros na terra do Egito. Porém, tudo isso é tratado como uma simbologia, um fato distante, enquanto, nos dias atuais, outros grupos são “escravizados” e nossas organizações não se importam.
Os conflitos estão ocorrendo na Áfri ca (Sudão e vários outros lugares), a fome permeia o mundo e nós ficamos confor táveis em nossas “ilhas de prosperidade”, sem nos importarmos com os dramas, até o momento em que possamos, amanhã, nos sentir de alguma maneira atingidos. Em nome de relações comerciais, países silenciam sobre massacres, poucos falam do Tibete, e Israel se omite com relação aos curdos.
Entretanto, até onde se tem notícia, inexiste gradação de massacres; o que existe são genocídios dirigidos com objetivo de exterminar determinado grupo e estes, após 1945, chega a mais de três milhões de pessoas. O que nós fazemos? O que nossas organizações fazem? Até onde eu posso observar, vejo um grande silêncio, uma omissão idêntica àquela conduta da sociedade em geral, quando nossos antepassados eram vítimas do nazismo. Porém, agora, não somos mais as vítimas, o problema passou a ser de um outro grupo. Curiosa esta argumentação, sendo mui to próxima daquela arguida em relação a nossos antepas sados. Conclamávamos uma posição quando éramos víti mas, exigíamos uma conduta quando esta nos afetava, po rém agora nos silenciamos.
Por que nos silenciamos? Durante o nazismo, estudan tes da Universidade de Munique denunciaram o terror e espalharam panfletos conclamando os alemães a se sepa rar do terror nazista e demonstrar por atos sua forma di ferente de pensar.2 Será que agora que temos uma posi ção mais confortável podemos adotar esta visão? Uma vi são desta natureza contradiz com a celebração de Pessach, pois nesta é clara a mensagem no sentido de nos lembrar mos que fomos escravos no Egito e que se a libertação não tivesse ocorrido ainda o seríamos. Temos, igualmente, que
Nos importar com os dramas não se limita em denun ciar a opressão, a violação aos direitos humanos, mas também oferecer respaldo espiritual e material para o persegui do, em função das profundas marcas decorrentes da opres são, da perseguição e da tortura. Estas marcas permane cem, mesmo quando o perseguido é livre. “São noites de silêncio. Vozes que clamam num espaço infinito. Um si lêncio do homem e um silêncio de Deus.”3
A nossa antiga situação de oprimidos não pode nem deve ser objeto de falso culto, em nome de um falso heroísmo. Deve nos dar a devida consciência dar importân cia da conscientização e de sermos vigilantes, nos solidari zando com o oprimido e o perseguido. A omissão é fatal e criminosa, pois se nos silenciarmos, teremos aí condições de exigir a solidariedade dos outros, se nós não somos efe tivamente solidários com a aflição destes?
Notas
1. Art. 1 – Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. Les distinc tions sociales ne peuvent être fondées que sur l’utilité commune. Art. 3 – Tous les hommes sont égaux par nature et devant la loi.
2. Rosa Branca, Sophie Scholl. “Darum trennt Euch von dem nationalsozialistis chen Untermenschentum! Beweist durch die Tat, daß Ihr anders denk” (Sepa rem-se do sub-homem (desumanidade) nazista! Demonstrem por atos que vo cês são diferentes).
3. Agenda de Frei Tito de Alencar Lima (pouco antes de seu suicídio).
Ricardo Luis Sichel é Conselheiro da ARI, Procurador Federal junto ao INPI e professor-adjunto de Direito Civil da Unirio, doutor e mestre em Direito da Propriedade Intelectual pela Westfälische Wilhelms Universität, em Münster (Alemanha).
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 35
Sybille Yates
/ iStockphoto.com
Na N ossa hera N ça comum, um cami N ho para a paz
rogério josé Bento soares do Nascimento
Aliberdade de culto, assegurada no inciso VI do Artigo 5º da Constitui ção brasileira e no Artigo XVIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, é liberdade de culto público, ou seja, significa não aceitar que a vivência de fé seja apenas garantida na esfera pri vada. E mais, no vocabulário laico que exprime os valores constitutivos da identidade ocidental, sintetizados nas declarações de direitos humanos, a liber dade de expressão, que é um valor essencial da democracia, se desdobra, entre outros aspectos e dimensões, nas liberdades de imprensa e de associação. Esta liberdade de associação, que é liberdade de agir em comum, vem a ser o canal mais valioso para proteção de minorias e grupos sociais vulneráveis em geral1 e se combina com a liberdade de culto porque também protege o direito de exprimir-se, de reunir-se e de pregar.
Porém, o Estado Democrático de Direito apenas reconhece a liberdade de associação constituída para a discussão, isto é, para o convencimento, ou constituída para a cooperação; não autoriza associações constituídas para combate, ou seja, associações que recorrem a meios violentos de persuasão. Na democra cia, a tolerância é o limite da tolerância, por isso exclui quem emprega meios violentos para buscar seus resultados, atitude que em si já representa uma for ma de intolerância.
Ora, aceitar menos do que a liberdade de associação e de culto em públi co equivale a aceitar guetos. Ainda que se trate de um gueto virtual, simbóli co, permanece algo inadmissível. A fé move multidões, é parte da vida e do pa
A diversidade é uma graça porque não depende da nossa iniciativa para existir, está dada, e porque nos favorece na medida em que educa o olhar, enriquecendo os indivíduos e as comunidades. E diversidade pressupõe respeito, palavra que deriva do latim re spectare, voltar a olhar, olhar mais de uma vez, olhar com atenção ao outro.
As imagens deste artigo mostram Moisés com as Tábuas da Lei em manifestações artísticas tanto cristãs como judaicas.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 37
trimônio cultural da humanidade, assim, pode e deve estar presente no espaço pú blico, dialogando com o pensamento lai co, com o Estado. A obrigação de impes soalidade e de imparcialidade é do Poder Púbico, não do cidadão.2
E as tradições religiosas também po dem e devem buscar entendimento. Não se trata de aceitar ou de negar uma tra dição. Quando nos defrontamos com a herança constitutiva de uma tradição a qual estamos vinculados não é possível anular o quem somos, não é possível evi tar o olhar do nosso tempo. A tradição é e será sempre interpretada sob o prisma do presente. Tenhamos consciência disso ou não, o que fazemos é reinterpretá-la. O que nos impediria de enriquecer este olhar que reinterpreta com contribuições trazidas de fora senão o preconceito? Mas queremos e de vemos nos deixar ficar prisioneiros de preconceitos? E é esta convicção de que há muito por ganhar com o plura lismo, com o conhecimento dos outros que nos cercam, do diferente, que justifica tratar do diálogo entre herdei ros de Abraão.3
O diálogo entre tradições religiosas passa, ainda, no campo cristão, por distinguir proselitismo, aqui empregado no sentido de pregação para a conversão e tido como indesejável, de missão, aqui empregado no sentido de testemunho público de fé, na linha renovada do Concílio
Vaticano II, quer dizer, sem o propósito de converter.
Pensar em unidade no ambiente social, ou pensar no processo de integração que a torna possível e concreta, passa por des locar o foco da atenção para o nós – nem eu, nem tu, nem eles –, quem estabelece compromissos e age em pareceria é sem pre o sujeito plural, o nós. A diversidade é uma graça porque não depende da nossa iniciativa para existir, está dada, e porque nos favorece na medida em que educa o olhar, enriquecendo os indivíduos e as co munidades. E diversidade pressupõe res peito, palavra que deriva do latim re spec tare, voltar a olhar, olhar mais de uma vez, olhar com atenção ao outro.
Qualquer diálogo traz alguns pressu postos. Para que haja troca é preciso en tender e se fazer entender, é preciso mais do que falar a mesma língua. Dominar os mesmos signos da linguagem permite conversa e permite negociação. Muitas vezes negociar é importante, frequen temente estamos diante de problemas práticos e de inte resses opostos, então é necessário primeiro conversar e de pois fazer e cobrar concessões para se alcançar, no todo ou em parte, o objetivo perseguido.
Há muitas diferentes atitudes diante do debate de ideias em um ambiente plural, que podem ser sintetiza das em umas poucas classes. Diante de um pensamento que se serve de ideias diferentes das suas um interlocutor pode simplesmente desqualificar o pensamento diferente; pode se esforçar para conhecer a posição do outro, com a intenção deliberada de se apropriar de algumas ideias da outra corrente de pensamento, revisadas com auxílio das suas próprias ideias e segundo a sua própria visão, e pode buscar compreender a posição do outro, com o objetivo, um pouco mais modesto, de explicitar diferenças e con vergências, sem intenção de fundir conceitos ou de apro priar-se de categorias de pensamento alheias atribuindo-lhes um sentido fora do seu contexto de elaboração. Fa lando diretamente: pode sim haver diálogo entre tradições religiosas com preservação da identidade de cada um dos participantes, sem sincretismo e sem renúncia aos dogmas da própria fé.
Não se busca unidade no singular. Unidade é um atri buto do que é plural. Diversidade se opõe a uniformidade.
Para conviver, no entanto, é preciso mais e, ao mesmo tempo, é preciso menos. Mais porque a conversa, tomada no sentido de uma comunicação que não exige compre ensão mútua, não basta; e menos no sentido de que não há necessidade de acordo, tal como nas negociações; neste diálogo orientado para a convivência não é preciso conven cer ou ser convencido pelo interlocutor. E isto já é muito. O produto das nossas conquistas é perecível, mas o nosso crescimento pessoal na trajetória percorrida em direção às metas que estabelecemos é algo que dura.
Quando se trata do intercâmbio de ideias entre dife rentes tradições religiosas há, também, uma premissa que é aceitar a possibilidade de a revelação da outra tradição ser autêntica. No campo das tradições monoteístas essa possi bilidade talvez conduza a uma teologia de múltipla alian ça. Aceitação da aliança universal do Deus único com Noé e da aliança antipagã com Abraão, renovada ao povo ju deu pela Lei, com Moisés; revivida aos gentios com o Cris to revelado nos Evangelhos; e revelada aos muçulmanos através de Maomé no Alcorão. Cada aliança pode ser acei
38 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Keith
Reicher / iStockphoto.com
Alexey Stiop
/ iStockphoto.com
ta como produto de uma revelação autêntica, na sua particularidade, para cada qual, sem que seja tomada como exclu dente das demais. Por que estaríamos im pedidos de aceitar mais de um caminho para a santidade?
Na tradição católica Deus se expres sa como trindade (Mateus, 28, 19), é re lacionamento. E relação em harmonia é amor. A primeira Encíclica de Bento XVI, não por acaso, foi Deus Caritas Est (Deus é Amor), título este extraído do Evange lho de São João4. A benevolência sem li mite do Senhor pode ser colhida na tradi ção hebraica em Ieshaiáhu, 54,10.
Do ponto de vista católico, a criação é um ato de amor, de caridade, de graça no sentido de gratuidade, o que se faz ou dá independen temente de recompensa ou utilidade. O sentido de existir, para a criatura, é estar em comunhão com o Criador, vi vendo plenamente os dons de ser imagem e semelhança, ou seja, espelhando-se no exemplo e aproximando-se da perfeição do Criador. Mas, imagem e semelhança não têm uma conotação fisiológica ou de essência, que são incom paráveis5, se traduz em livre arbítrio. Arbítrio é discerni mento, consciência de si e do mundo e capacidade de distinguir o certo e o errado e liberdade é capacidade de fa zer escolhas. O discernimento, a capacidade de compre ensão e de escolha, bem como a consciência da transito riedade da existência corpórea; fazem parte de um patri mônio comum reconhecível na alegoria da Árvore do Co nhecimento, Bereshit, 3, 5, e na advertência de Moisés ao povo de Israel sobre a responsabilidade de fazer escolhas, Devarim 30, 15.
O entendimento é possível se houver um compromisso radical com a tolerância, com o respeito mútuo, em um sincero intercâmbio entre iguais, estabelecido de um mesmo plano, sem qualquer arrogância. Se houver um compromisso com o direito de autodefinir-se de cada tradição.
lativismo, de aceitação de qualquer ex periência religiosa individual como váli da. Diante das três possíveis atitudes com as quais estas reflexões se iniciam o que se propõe é a terceira, isto é, o conheci mento mútuo sem diluição de identida de. A aceitação da pluralidade não se opõe à busca de coerência.
Diferentes respostas sobre o que é cor reto podem representar o sinal de um en gano, como podem expressar, também, e apenas, uma necessidade de considerar o contexto e as individualidades num mun do que é complexo e heterogêneo. E o es paço público é um lugar de encontro, de confirmação de convergências e de co nhecimento, aceitação e reconhecimen to de divergências.
O diálogo entre tradições religiosas passa, ainda, no campo cristão, por distinguir proselitismo, aqui empregado no sentido de pregação para a conversão e tido como inde sejável, de missão, aqui empregado no sentido de testemu nho público de fé, na linha renovada do Concílio Vatica no II, em particular no modo de relações apresentado na Declaração Nostra Aetate6, quer dizer, sem o propósito de converter. Nem mesmo importa buscar responder se o debate, a conversação, a troca mútua de impressões e de vi sões é um meio ou um fim em sim mesmo para cada um dos participantes, o que importa é reconhecer a necessida de da troca, da atenção para com o outro.
Estar em comunhão, meta de estar unido em harmo nia com o Criador, inclui estar em comunhão com a Sua obra, implica aceitação do que nos é externo, ou seja, dos outros. Não se trata de uma nova Lei que rompe a Alian ça que toma o povo de Israel como exemplo, pela unidade da fé, é a única Lei: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo (Devarin, 6, 4; Shemot, 20, 1-14; Mateus, 22, 37; Marcos, 12, 29-31), com um novo desa fio: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos perseguem e caluniam (Mateus, 5, 44).
Não significa, contudo, defender alguma forma de re
Isto não é fácil. Há todo um passado de perseguições justificadas em nome da fé que precisa ser permanente mente repudiado. Há também diferenças de ponto de vista sobre fatos históricos consideráveis (o mais óbvio diz res peito à interpretação do papel histórico do Papa Pio XII durante a Shoah) e, mesmo no presente, há violência e há gestos ambíguos que não favorecem o entendimento. Mas é possível se houver um compromisso radical com a tole rância, com o respeito mútuo, em um sincero intercâmbio entre iguais, estabelecido de um mesmo plano, sem qualquer arrogância. Se houver um compromisso com o direi to de autodefinir-se de cada tradição7
Em 12 de março de 2004, o primeiro domingo da Quaresma (período de 40 dias que antecedem a ocasião mais importante do calendário litúrgico católico, que é a
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 41
Semana Santa, e são dedicados à preparação espiritual e à penitência), o Papa João Paulo II, durante o Ato Peniten cial, que é parte da celebração ritual da missa, surpreendeu ao conduzir sete confissões de culpa, seguido de sete pedidos de perdão por atitudes da Igreja Católica nas rela ções com outras crenças, referindo-se diretamente às cru zadas, à inquisição e ao Holocausto. Esta atitude tomou por base um Documento da Igreja com título Memória e Reconciliação. A Igreja e os Erros do Passado. Especifica mente sobre a Shoah João Paulo II voltou a se pronunciar, enfaticamente, no mês seguinte do mesmo ano, em Isra el, durante visita ao Iad Vashem, onde declarou que não há palavras fortes o suficiente para deplorar a terrível tragé dia que foi a Shoah
Por outro lado a revogação da excomunhão de qua tro bispos consagrados pelo cardeal francês ultraconser vador Marcel Lefebvre, entre eles o negacionista Richard Willianson, às vésperas de viagem do Papa Bento XVI à Jordânia e a Israel, por exemplo, causou forte e negativa re percussão, levando Bento XVI a se pronunciar, em 27 de janeiro de 2009 (dia instituído pela ONU para memória das vítimas do Shoah por marcar a libertação do campo de
Esta posição que já tinha sido expressa por Bento XVI em visita a Auschwitz, em 2006, foi reafirmada na via gem a Israel, que foi adiada e só se concretizou em maio de 2009, tanto em visita ao Iad Vashem, pronunciamento que foi criticado na imprensa como pouco contundente quanto no discurso de despedida, já no Aeroporto de Tel Aviv, quando foi enfático ao afirmar referindo-se àquela visita que “aqueles encontros profundamente comoventes me trouxeram memórias de minha visita, três anos atrás, ao cam po da morte de Auschwitz, onde tantos judeus – mães, pais, esposos, esposas, filhos, filhas, irmãos, irmãs, amigos – foram brutalmente exterminados sob um regime ateu que propagou uma ideologia de antissemitismo e ódio. Esse horrível capítu lo da história nunca deve ser esquecido ou negado. Pelo con trário, aquelas memórias obscuras devem fortalecer nossa de terminação para estar mais próximos uns dos outros, como ra mos da mesma oliveira, nutridos pela mesma raiz e unidos no amor fraterno”.
Infelizmente, atos de violência justificados em nome da religião ainda são frequentes. Fora dos casos mui
Auschwitz pelo exército soviético em 1945), para reafirmar o repúdio da Igreja a reducionismo ou negação8
Frank Axelsen / iStockphoto.com
42 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
to lembrados, como o recém-pacificado conflito entre católicos e protestan tes na Irlanda do Norte, os conflitos en volvendo a criação do Estado de Israel e os atentados terroristas da Al Qaeda, é possível citar os mais de 200 mil mor tos atribuídos aos conflitos envolvendo o governo islâmico do Sudão, os milha res de mortos em conflitos entre hindus e muçulmanos no nordeste da Índia, os centenas de mortos no conflito envol vendo a minoria muçulmana Uigur na província de Xinjiang, na China, em ju lho de 2009, os assassinatos de lideran ças religiosas como o Padre Rufus Halley, em agosto de 2009, por militantes da Frente Moura de Libertação Islâmi ca nas Filipinas, do Padre Cecílio Luce ro, em setembro de 2009, sem autoria reivindicada, também nas Filipinas, e os de Mariam Houssein e de Omar Khala fe, líderes de um movimento cristão subterrâneo na So mália, em setembro de 2009, por membros da milícia is lâmica Al Shabaab. Estes episódios trágicos, longe de ne gar, na verdade reforçam a necessidade urgente da bus ca de entendimento.
Muitos dos que são comprometidos com a viabilidade deste debate vem buscando inspiração no legado de Abraão.
O gesto de Abraão no sacrifício de Isaac marca a radical aceitação do Deus pessoal, único, patrimônio comum dos judeus, cristãos e muçulmanos. Além de representar o óbvio, que é a obediência, o gesto traz em si, também, uma lição de confiança.
idosos e crianças, por exemplo, podem ser vulneráveis em cer tas sociedades sem que sejam minorias.
2. Portanto, tem razão a Corte Europeia de Direitos Huma nos na decisão que condenou o governo da Itália pela expo sição de crucifixos em salas de aula de escolas públicas, práti ca aceita pela justiça italiana ao argumento de que representa ria uma manifestação inserida nas tradições do país; mas não têm razão as autoridades francesas quando cerceiam modos de vestir e o uso de objetos pessoais que são símbolos religio sos, ressalvado, naturalmente, a proibição das formas de ves tir que impeçam o conhecimento da identidade de quem cir cula no espaço público, neste caso, por razões que não dizem respeito ao problema da secularização, isto é, não envolvem o tema da separação entre religião e poder político.
3. Herdeiros de Abraão é título de livro organizado por Bra dford E. Hinze e Irfan A. Omar, professores de teologia na Marquette University, instituição católica mantida pelos je suítas em Milwaukee, Wisconsin, EUA, dedicado a discutir o futuro das relações entre muçulmanos, judeus e cristãos, depois do atentado de 11 de setembro de 2001, reunindo contribuições dos organizadores, do rabino Reuven Firesto ne, professor do Hebrew Union College, de Los Angeles, do arcebispo Michel L. Fitzgerald, que foi secretário e presiden te de Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso, en tre 1987 e 2006, até ser afastado de Roma pelo Papa Bento XVI, passando a condição de Núncio Apostólico no Egito, e de Mahmoud M. Ayoub, professor da Temple Univesity, na Filadélfia. Há edição brasileira da obra. Herdeiros de Abraão. São Paulo. Paulus editora, 2007.
4. Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele (1 Jo 4, 16).
5. Não podemos aprender de Deus o que Ele é, mas apenas o que Ele não é e de que ma neira os outros seres se situam em relação a Ele. Catecismo da Igreja Católica, Primei ra Parte, Capítulo I, 43.
Muitos dos que são comprometidos com a viabilida de deste debate vem buscando inspiração no legado de Abraão. O gesto de Abraão no sacrifício de Isaac marca a radical aceitação do Deus pessoal, único, patrimônio comum dos judeus, cristãos e muçulmanos. Além de re presentar o óbvio, que é a obediência, o gesto traz em si, também, uma lição de confiança. Para além das mui tas diferenças a herança de Abraão traz um rico exemplo de fé, humildade e esperança, quiçá sirva para facilitar a compreensão mútua pavimentando caminhos para coe xistência em paz.
Rogério José Bento Soares do Nascimento é professor da Uni versidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Doutor pela UERJ e Procurador Regional da República.
Notas
1. A vulnerabilidade decorre do fato de se partilhar uma identidade social não hege mônica e isto pode ser decorrente do número reduzido ou não. Mulheres, negros,
6. Declaração sobre as relações da Igreja Católica com as Religiões não cristãs apro vada durante o Concílio e que dedica o parágrafo quarto às relações com o ju daísmo: reconhecendo a validade da Aliança divina com o povo judeu que, na perspectiva católica, integra por si os desígnios de salvação – consilia salutis –; reprovando o antissemitismo e exortando ao diálogo no seguinte trecho: Sendo assim tão grande o patrimônio espiritual comum aos cristãos e aos judeus, este sagra do Concílio quer fomentar e recomendar entre eles o mútuo conhecimento e estima, os quais se alcançarão sobre tudo por meio dos estudos bíblicos e teológicos e com os diálogos fraternos.
7. Como afirmou o Papa João Paulo II em sua famosa Alocução proferida na Sinago ga de Roma em 1986: “A ninguém escapa que a diferença fundamental inicial con siste no consentimento dos católicos à pessoa e à doutrina de Jesus de Nazaré, este que é filho do vosso povo. (…) Mas esse consentimento pertence ao âmbito da fé, isso quer dizer do consentimento livre da razão e do coração, que são guiados pelo espírito. Con sentimento esse nunca deve chegar a ser, em um ou outro sentido, objeto de pressão ex terna. Essa é a razão por que estamos dispostos a aprofundar o diálogo entre nós em le aldade e amizade, bem como no respeito das convicções internas do um e do outro, to mando os elementos da revelação, os quais temos em comum como ‘grande herança es piritual’ (cf. Nostra Aetate, nº 4) como fundamento essencial.”
8. Tendo dito que “vêm-me à memória as imagens recolhidas em minhas repetidas vi sitas a Auschwitz, um dos lugares nos quais se consumou o brutal massacre de milhões de hebreus, vítimas inocentes de um cego ódio étnico e religioso. Enquanto renovo com afeto a expressão de minha total e indiscutível solidariedade com nossos irmãos desti natários da Primeira Aliança, auguro que a memória da Shoah induza a humanida de a refletir sobre o imprevisível poder do mal quando conquista o coração do homem. Que a Shoah seja para todos uma advertência contra o esquecimento, contra a negação ou o reducionismo, porque a violência feita contra um só ser humano é violência con tra todos. Que a Shoah ensine tanto às antigas como às novas gerações que só o fatigo so caminho da escuta e do diálogo, do amor e do perdão, conduz os povos, as culturas e as religiões do mundo ao desejado encontro da fraternidade e da paz na verdade”.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 43
o iN stituto w eizma NN de c iê N cias: 60 a N os de realizações
segunda parte da palestra proferida em encontro comemorativo do 60o aniversário do Instituto Weizmann em Paris, França, em 4 de maio de 2009. A primeira parte foi publicada em devarim 10.
Eu gostaria de definir quais são, na minha visão, os sete pilares em que se baseia o sucesso do Instituto Weizmann. Podem ser chamados de “os sete pilares da sabedoria”, se desejarem, de acordo com o Livro dos Provérbios: “A sabedoria ergueu sua casa, talhou seus sete pilares”.
Vivenciei todos os ângulos do Instituto, passei uma vida ali dentro: de estudante, a jovem cientista e a cien tista mais velho, em seguida como o presidente que ficou mais tempo no cargo e agora sou ex-presidente. Cada um dos princípios dos chamados Sete Pilares foi plantado em meu cérebro quando eu tinha vinte e poucos anos sem que eu tivesse consciência disso e, com frequência, enquanto eu me recusava a aceitá-los. Passaram-se décadas antes que eu compreendesse quão corretos estes princípios são e até que eu me desse conta de que eles realmente estão no san gue e no DNA do Instituto Weizmann e que são seguidos por geração após geração.
O Pilar número 1 é o pensamento e a visão do Instituto a muito longo prazo, não em termos de comissões plane jando o futuro, mas pela disposição de investir no futuro
distante, mesmo às custas do presente. Isto se manifesta em muitos aspectos, do mais importante ao mais insignifican te. Primeiro e antes de tudo há o conceito de dedicar esforço total à pesquisa básica sabendo que a boa pesquisa básica trará aplicações práticas e resultados comerciais benéficos a muito longo prazo. A joia máxima dos produtos lucrativos do Instituto Weizmann, o remédio Copaxone, para trata mento da esclerose múltipla, inventado por Michael Sela e Ruth Arnon, levou cerca de 25 anos desde o nascimento até gerar resultados financeiros compensadores.
A mesma atitude de planejar o futuro distante levou o Instituto, na década de 1950, a construir um campus com jardins maravilhosos em um país sem água, sem pão, sem dinheiro, sem nada. Só loucos construiriam estes jardins belíssimos com o intuito de criar um ambiente agradável e sereno para a ciência. Mas graças a este pensamento de longo prazo cada funcionário do Instituto Weizmann ao chegar ao trabalho pela manhã tem a sensação de estar en trando em um paraíso. Algumas das árvores no campus são mais altas que os edifícios.
Outro exemplo é o primeiro computador. Quando eu era criança, no início da década de 1950, a comida era ra haim harari
44 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
cionada e eu tinha direito a 100 gramas de carne e três ovos por semana, mas este louco Instituto Weizmann es tava construindo o segundo computador mais rápido do mundo, com um orçamento espantoso para o momento. Dez anos mais tarde os melhores especialistas em compu tação do país eram treinados no Weizmann e posterior mente Israel se tornou o segundo país do mundo a usar o e-mail. A bem sucedida indústria israelense de high-tech deve muito a esta visão.
O que é comum aos exemplos que acabo de dar, do investimento em pesquisa básica, aos lindos jardins e ao investimento prematuro em um computador gigante é o pensar para frente com um horizonte de décadas. Outro componente desta atitude vem a ser o investimento nos jo vens, falaremos disto daqui a pouco.
O Pilar número 2 é a interdisciplinaridade. Nós somos o único instituto de ciências do mundo que tem a 20 me
tros um do outro cientistas de informática estudando o cé rebro e especialistas em cérebro pensando em computadores. Temos físicos e biólogos em departamentos diferentes colaborando uns com os outros. A esta lista se acrescentam muitos outros assuntos, da bioinformática à ciência am biental e à biologia estrutural. Muitas universidades ofere cem estes tópicos, mas com contatos relativamente fracos entre as dezenas de milhares de estudantes de disciplinas diferentes. Nós somos um Instituto relativamente compac to, dedicado apenas à pesquisa básica e a nossa multidisci plinaridade é realmente única. Hoje, quase todos os insti tutos de pesquisa estão tentando ser assim, mas nós sem pre fomos assim.
Cada um dos cinco primeiros departamentos do Insti tuto Weizmann, em 1949, já era um departamento inter disciplinar. Ephraim Katzir fundou um departamento de biofísica, uma combinação de biologia e física. Israel Dos trovsky encabeçou a pesquisa de isótopos, ou seja, aplicou
Fotografias cedidas pelo Instituto Weizmann
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 45
técnicas de isótopos radioativos a todo tipo de problemas científicos, desde a busca de água e minerais subterrâneos até aplicações médicas. Aharon Katzir pesquisou políme ros com uma mistura complexa de biologia, química e fí sica. A matemática aplicada de Chaim Pekeris se propôs a resolver problemas da física com a ajuda de computado res e outros métodos matemáticos avançados. O quinto departamento era o de Isaac Bernblum, que fazia pesqui sa de câncer usando métodos oriundos de diversos cam pos de pesquisa.
Tratava-se de uma coleção de assuntos muito pouco comuns para o início de um instituto em 1949. Nenhum destes departamentos existe atualmente, foram todos re organizados devido às mudanças ocorridas na ciência nes tes 60 anos. Mas o espírito do enfoque interdisciplinar fi cou impresso na mente de todos. Um importante passo à frente foi dado no final da década de 1970 quando o nos so sexto presidente, Michael Sela, trouxe o conceito de “Centros”, significando minidotações, ou pequenas orga nizações financeiras dentro do Instituto, encorajando a co laboração entre diferentes departamentos.
O Pilar número 3 é mudança e flexibilidade. Muito an tes que o presidente Obama popularizasse o conceito, nós já gritávamos “vamos mudar”, e as coisas veem mudando sem parar. O segredo, que eu nunca vi em nenhum ou tro lugar, é que não temos “nichos”. Não dizemos que te mos cinco cátedras de química orgânica e mais sete em física nuclear. Temos tantas cátedras quantas precisamos
para acomodar as pessoas extraordinárias que recrutamos, e zero nos campos onde não encontramos pessoas de nível. Em determinados períodos certos assuntos desapareceram completamente e de forma indolor. Ao mesmo tempo, e em velocidade recorde, assuntos totalmente novos surgi ram em nosso campus.
Em meus tempos de jovem cientista eu participei de uma destas transições. Criamos uma grande e forte ativi dade em física de partículas enquanto o império de física nuclear desapareceu quase que da noite para o dia. E de pois, quando era presidente, testemunhei a diminuição da física de partículas, cedendo lugar a outros campos da fí sica, inclusive ao que agora se denomina nanofísica. Este último campo surgiu do nada, com um bom número de novos professores, um enorme investimento financeiro. A neurobiologia e a informática nasceram de maneira similar, e muitas outras atividades científicas foram criadas se guindo esta metodologia.
O tamanho do Instituto Weizmann nunca foi determi nado pelo seu executivo ou pela sua diretoria e sim pelo número de profissionais extraordinários com quem pu déssemos contar. Jamais bloqueamos a contratação de um professor ou cientista sênior porque não tínhamos as con dições financeiras para tal naquele momento, nem mes mo em tempos de déficits ou de crises financeiras. Não foi fácil, mas posso dizer com absoluta certeza que nunca na história do Instituto aconteceu de querermos contratar um excelente indivíduo e deixar de fazê-lo por não ter um ni cho, uma cátedra ou os recursos.
46 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
O Pilar número 4: a busca agressiva por aplicações práticas. Somos um Instituto de pesquisa básica, não ambicionamos resolver os problemas práticos do mun do. Tentamos compreender a natureza, descobrir suas leis, estudar o começo do universo, decifrar a origem da vida, en contrar as propriedades dos organismos e inúmeros outros segredos da natureza. Somos impulsionados pela curiosidade e não pelo lucro, mas temos total cons ciência de que, ao fazermos pesquisa bá sica de alto nível, descobriremos coisas úteis. Aprendemos a fazer de tudo para explorar e ampliar nossas descobertas, lutando para conseguir ganhos financeiros a partir delas, o que nos per mite reinvestir em mais pesquisa básica.
A joia máxima dos produtos lucrativos do Instituto Weizmann, um medicamento para tratamento da esclerose múltipla, levou cerca de 25 anos desde o nascimento até gerar resultados financeiros compensadores.
talmente independentes. Há algo mais que fazemos com vistas ao futuro. Des tinamos a maior parte das respeitáveis quantias que nossas propriedades intelectuais rendem às nossas reservas para garantir o futuro econômico do Institu to. Isto é uma mistura de visão de longo prazo com precaução.
Eu tinha vinte e poucos anos quando esta teoria me era repetida interminavelmente. Eu ouvia, mas não acreditava nela, e me dizia: “Estes cientistas estão me contando isto porque na verdade eles ganham para fazer o que gostam, e se justificam dizendo que se fizerem um bom trabalho vai acabar sendo útil”. Mas agora que o Instituto Weizmann lidera o mundo científico acadêmico com recursos oriun dos de propriedade intelectual, ficou claro que, afinal de contas, a fórmula estava correta!
Na realidade esta atitude começou com Chaim Weiz mann, que, de certo modo, abriu caminho para a Decla ração Balfour ao fazer pesquisa científica que se demonstrou útil.1 Há 50 anos fundamos a Yeda2, nossa empresa de propriedade intelectual, muito antes do resto do mun do pensar seriamente em lucros fundamentados em pro priedade intelectual derivada de pesquisa básica. O pas so seguinte foi a primeira planta de produção comercial no campus do Instituto Weizmann, com base no méto do inventado por Israel Dostrovsky de produzir água pe sada, usada para finalidades médicas. Durante várias décadas nossa pequena fábrica foi o mais importante produ tor do mundo desta especialidade.
No final da década de 60 demos um passo importante com o estabelecimento do parque industrial Ki ryat Weizmann, um dos primeiros parques industriais do mundo fora dos Estados Unidos. Hoje ele já é mais extenso do que o Instituto e agrega muitas companhias, algumas 100% baseadas em nosso trabalho e outras to
Este é o momento de mencionar sobre a interação entre a pesquisa básica e a tec nologia avançada. Não temos um depar tamento de engenharia, mas temos muita pesquisa de engenharia no campus. Não temos um departamento médico, e nem temos um departamento de agricultura, mas todos estes assuntos, que derivam da pesquisa básica e contribuem para as nossas pesquisas, se integram em relevantes campos científicos. O que em outros lugares se faz em engenharia elétrica é parte da física no Instituto Weizmann; o que é usualmente feito no desenvolvimento da informática nós fazemos como parte da matemática, e o que normalmen te é feito em medicina para nós é parte da biologia e bio química. Acreditamos na completa integração entre ciên cia e tecnologia. Não pretendemos abrir escolas de enge nharia ou de medicina porque incorporamos estes tópicos nas ciências que os incluem.
Pilar número 5: projetos amplos e audaciosos. Somos a única instituição de pesquisa em Israel que teve a coragem e a estrutura de governança para embarcar em projetos científicos muito amplos. Começamos na década de 1950 com o lendário computador Weizac. Veio depois uma sequência de aceleradores culminando na década de 1970 com a torre Koffler, hoje obsoleta, mas tendo cumprido a sua missão. Seguimos em frente com o projeto de energia solar e depois com o projeto da nanofísica ou física de sub microns, que custou uma fortuna incrível e nos catapultou de maneira proeminente para dentro do mapa mundial deste cenário. O passo seguinte foi a recente inauguração de um extraordinário estabelecimento pré-clínico, acom panhando o desenvolvimento da neurobiologia.
Pilar número 6: ênfase nas novas gerações de cientistas. Insistimos em ter os nossos próprios cursos de pósgraduação, sem nos conformar com a alternativa de ter
Revista da Associação Religiosa Israelita-
ARI | devarim | 47
que confiar em cursos que não nos pertencem. Concedemos bolsas generosas aos nossos mestrandos e doutorandos. Ensinamos em inglês para podermos ter um ambiente internacional e aceitamos candidatos do mundo inteiro, incluin do da Índia, China, América e Euro pa. Existem hoje cientistas proeminen tes em muitos países que se pós-gradu aram ou completaram seus pós-douto rados no Instituto Weizmann. Sempre soubemos permitir aos jovens cientistas alçar seus próprios voos sem ficar presos sob as asas de algum professor mais ve lho que acabaria se transformando em seu eterno mentor.
Eu cresci sob a proteção de Amos de Shalit, o maior mentor que tivemos na física. Não aprendi muita física com ele, porque sua especialidade era completa mente diferente, mas aprendi quase todo o resto: como lidar com a geração mais jovem, como tra balhar em novos campos de pesquisa, como lidar com políticas de gerenciamento científico, como pensar no futuro distante e porque é importante contribuir para a educação. Eu ainda não tinha 25 anos e ele estava me ensinando tudo isto, porque tinha a convicção de que as lideranças do amanhã tinham que ser treinadas des de muito cedo.
A mesma atitude de planejar o futuro distante levou o Instituto, na década de 1950, a construir um campus com jardins maravilhosos em um país sem água, sem pão, sem dinheiro, sem nada. Graças a este pensamento de longo prazo cada funcionário do Instituto Weizmann, ao chegar ao trabalho pela manhã, tem a sensação de estar entrando em um paraíso.
Fundamos Perach há 35 anos e o projeto vem funcionando desde então em todas as universidades israelenses. Hoje contamos com 25 mil universitários tra balhando como mentores ou “irmãos ou irmãs mais velhos” para um igual número de crianças das camadas menos privilegia das da sociedade. Estes universitários re cebem uma bolsa como remuneração por esta atividade. Perach é o maior projeto de seu tipo no mundo e já tocou as vidas de mais de um milhão de israelenses4!
A mais recente realização de monta na saga educacional do nosso Instituto é o Instituto Davidson de Educação Científica, que engloba, há dez anos, programas para os superdotados, os interessados, os que deixaram de estudar, os adultos e os professores. Acontece na escola, fora da escola, no verão, nas férias escolares, de tarde, no nosso museu de ciências ao ar livre, e nos nossos campi no país inteiro.
Pilar número 7, o último mas definitivamente não o me nos importante, é educação científica para crianças em idade escolar e para o público em geral. Há 45 anos te mos feito o que nenhum outro instituto de pesquisa al cança com a mesma magnitude: temos um grande núme ro de operações que contribuem para a educação cientí fica no sistema escolar em Israel e para o esclarecimento científico do público em geral. Educação científica para crianças superdotadas, para crianças que gostam de ciên cia, para crianças das camadas menos privilegiadas da so ciedade, para os que não estão na escola, para capacitação de professores da rede escolar, para o desenvolvimento de novos currículos de ciências e, finalmente, nossa joia mais preciosa, Perach3, o projeto de acompanhamento escolar passo a passo.
Nossa atividade educacional é uma contribuição im portante para o Estado de Israel, e é necessária por várias razões: ajuda a criar a nossa própria próxima geração de cientistas; ajuda a melhorar cada vez mais a imagem da ciência no país; contribui para o bem-estar da população em uma era em que a ciência e a tecnologia são os traços dominantes da economia; e contribui indiretamente para a economia, a indústria, a defesa, a saúde, o meioambien te e numerosos outros campos.
Assim, estes são os sete pilares: pensamento e visão de muito longo prazo; interdisciplinaridade; mudança e fle xibilidade; busca agressiva de aplicações práticas; projetos amplos e audaciosos; promoção dos jovens cientistas; ên fase na educação científica.
Tudo isto foi feito por um grupo incrível de pessoas fantásticas, grande demais para nomear individualmen te. Mas, mesmo correndo o risco de fazer centenas de inimigos, eu vou mencionar nove nomes da maior importância:
Chaim Weizmann, o fundador e primeiro presidente do Instituto. Naquele tempo não devia ser uma tarefa tão difícil assim, visto que ele mantinha um outro emprego paralelo, como o primeiro presidente do Estado de Israel.
48 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Meyer Weisgal, o primeiro e maior empreendedor, quem, com a sua incrível personalidade, realmente fez do Instituto o que ele é. É provável que eu tenha sido convi dado para falar aqui hoje por ser a pessoa mais jovem que conheceu Weisgal muito bem e gostaria de compartilhar com vocês três historinhas a respeito de meus encontros com ele: o primeiro de todos, o primeiro como cientista, e o último. Cada um deles foi extraordinário.
O primeiro foi em 1958, décimo aniversário do Es tado de Israel. Meu pai, que era membro do Parlamen to, tinha sido nomeado presidente do comitê responsável pela celebração. Abaixo dele estava Meyer Weisgal, que era quem na verdade fazia as coisas acontecerem. Ele veio vi sitar meu pai, eu tinha 17 anos, eu abri a porta, Weisgal veio entrando, mal disse alô, me empurrou para um lado e grunhiu: “Onde está o seu pai?” Ele avançou para den tro da sala, viu um telefone, levantou o fone e ligou para os Estados Unidos. Lembrem-se do que significava ligar para os Estados Unidos em 1958: supondo-se que nós tivésse mos diamantes, se ele tivesse saído correndo com um teria sido mais barato para nós do que aquele telefonema. Fi quei olhando para ele enquanto ele gritava aos berros com alguém do outro lado do oceano, comportando-se como se a casa fosse dele.
Segundo encontro, outono de 1967. Eu tinha me tor nado o mais jovem professor do Instituto Weizmann. Weisgal tinha ouvido falar deste geniozinho e dissera: “Que venha ver-me”. Vou até o escritório dele, ele me olha
de cima abaixo e pergunta: “Rapaz, você fala iídiche?” Eu, sendo um israelense de quinta geração, respondi que não. Ao que ele retrucou: “Então você não é judeu”. Então eu olhei para ele e com a chutzpá5 dos meus 26 anos pergun tei: “Senhor presidente, o senhor fala hebraico?” Ele res pondeu que não, e eu lhe disse: “Então o senhor não é ju deu”. A partir daí ele realmente passou a gostar de mim. Quem se lembra bem dele sabe que ele gostava de verda de de gente com chutzpá.
E o nosso último encontro também foi notável. Ele nunca tinha falado hebraico, parecia saber apenas algumas palavras soltas que usava de vez em quando. Ele sempre fa lava em inglês ou em iídiche. Ele já estava muito mal, com câncer terminal, e eu o visitava com frequência. Eu esta va sentado perto dele, ele já não conseguia falar alto. Sem que eu dissesse coisa alguma ele começou a conversar em hebraico, e não em inglês como sempre. O hebraico era surpreendentemente bom, e eu perguntei: “Meyer, porque você nunca falou em hebraico comigo nestes anos todos?” E, com a tristeza de um idoso moribundo, ele me respon deu: “Bem, é que para mim as palavras são tão importan tes, em inglês e em iídiche eu me sinto tão confortável –eu consigo fazer compras em hebraico, mas é só”. Foi a pri meira e última vez que nos falamos em hebraico e o hebrai co dele era incrivelmente bom, fiquei completamente sur preso. Weisgal era assim, uma pessoa muito especial.
Temos ainda os fundadores dos cinco primeiros depar tamentos em 1949, cada um deles um gigante à sua ma
neira. Já os mencionei todos: Isaac Bernblum, Israel Dostrovsky, Ephraim Kat zir, Aharon Katzir e Chaim Pekeris. Cada um deles foi o primeiro em Israel a fazer o que fez e vários deles fizeram contribui ções muito significativas além do Institu to. Ephraim foi o quarto presidente do Estado de Israel. Israel Dostrovsky foi o mais importante e ilustre diretor-geral da Comissão de Energia Atômica de Israel e o quinto presidente do Instituto Weiz mann; Aharon Katzir foi assassinado por terroristas japoneses patrocinados pelos palestinos no aeroporto Ben-Gu rion. Todos eles são ou foram pessoas incríveis.
O tamanho do Instituto Weizmann nunca foi determinado pelo seu executivo ou pela sua diretoria e sim pelo número de profissionais extraordinários com quem pudéssemos contar.
sua família. Estas são as pessoas que veem trabalhar todos os dias com o sentimen to de que, ao entrarem no campus, estão cruzando uma fronteira para um mundo melhor. Levei muitos anos para aprender a apreciar estas pessoas até mais do que eu aprecio os cientistas. Os cientistas são profundamente devotados ao Instituto, mas também são devotados ao seu traba lho e a si próprios, ao passo que estas pes soas são devotadas quase que exclusiva mente ao Instituto, e já demonstraram isto mais de uma vez em momentos difíceis.
Os últimos dois nomes a serem mencionados nesta minha lista de nove fazem parte da geração seguinte. Um de les é Michael Sela, que está aqui conosco hoje e que talvez seja o cientista mais importante da geração a que me refi ro e a quem devemos tanto invenções práticas como ciên cia básica e que foi o sexto presidente do Instituto.
O último é Amos de Shalit, que faleceu aos 43 anos e mesmo tão jovem conseguiu criar um número significati vo de pedras fundamentais do Instituto, inclusive alguns dos sete pilares, e que até hoje serve de modelo para mui tos de nós.
Estes foram os nove nomes que eu escolhi mencionar, mas existem milhares de outros, e eu quero citar especial mente os encanadores, os eletricistas, os técnicos, todas as pessoas que exercem diferentes funções na administra ção, as secretárias, os jardineiros, e todos os funcionários que consideram o Instituto a sua casa e sabem que esta é a
A história do sucesso do Instituto Weizmann é feita deste requintado bordado humano: uma coleção de pes soas sem par, feita de colaboradores no campus e man tenedores do mundo inteiro, heróis famosos e soldados desconhecidos. Deixo ao nosso décimo presidente, Daniel Zaifman, que nos dirigirá a palavra na sessão de ama nhã, a descrição dos planos para os próximos 60 anos. Muito obrigado.
Traduzido por Teresa Roth
Notas
1. Nota da revista: Chaim Weizmann, químico, ganhou proeminência ao descobrir um método de fabricação da acetona por fermentação, que foi importante para a o esforço britânico na Primeira Guerra Mundial.
2. Nota da revista: “Yeda” em hebraico quer dizer “conhecimento”.
3. Nota da revista: “Perach” é uma sigla que remete a “Projeto de Ensino” e significa “flor” em hebraico.
4. Nota da revista: a população de Israel é de cerca de sete milhões de habitantes.
5. Nota da revista:”chutzpá” significa “atrevimento”, é um termo muito usado para definir a forma direta e pouco formal dos israelenses.
50 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Franck Boston / iStockphoto.com
d evarim oN -li N e: virtual e ta N gível
Um equívoco comum nos nossos dias, tão mais frequente quanto se torna parte do nosso cotidiano, reside no uso corrente do termo “vir tual” quando associado à tecnologia. Hoje chamamos de virtual tudo aquilo que emula a realidade, em tese algo intangível e que guarda funções ou características da realidade que se propõe reproduzir. Porém, nem sempre este conceito é adequado, já que em geral este mundo “virtual” é bas tante concreto e não se limita apenas a espelhar a realidade. Na verdade, na maioria das vezes, amplifica seu alcance e possibilidades.
Uma vez que em sua acepção original virtual é algo potencialmente realizá vel, ou seja, que pode vir a ser, mas ainda não é, percebe-se que, por exemplo, denominar de biblioteca virtual a coleção organizada de documentos eletrôni cos gera uma dificuldade para o entendimento do seu significado efetivo.
Uma biblioteca virtual possui, de fato, muitas das características das biblio tecas tradicionais, bem como atende a muitas das suas funções. Porém, trata-se de algo concreto e disponível, algo que “já é”, e amplia em muito as possibili dades existentes no universo das coleções organizadas de livros impressos.
O uso da palavra “virtual” acaba por dar a impressão de algo que, na realida de, não existe. Livros virtuais, portanto, existiriam apenas em nossa imaginação, quando na verdade correspondem a um conjunto de dados gravados de forma binária sobre mídia magnética ou eletrônica, cujo conteúdo pode ser o mesmo dos livros impressos aos quais correspondem ou dos quais se originam.
Independentemente da validade de usarmos a realidade conhecida como ponto de partida para entendermos novas tecnologias, o que se propõe é en tendermos o universo “virtual” como algo 100% tangível, uma realidade tão
De certa forma, se considerarmos a produção literária judaica e sua catalogação, perceberemos uma preocupação contínua com a ampliação dos recursos a serem colocados à disposição para a disseminação do conhecimento.
ricardo gorodovits
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 53
www.docpro.com.br/devarim
concreta quanto tudo o mais à nossa volta. E que, por isso mesmo, deverá conviver conosco, crescer conosco, à me dida que nos oferece ganhos significativos na nossa capa cidade de armazenar e recuperar conteúdos.
Avançando um pouco sobre a tecnologia da informa ção, a primeira ideia associada ao “livro digital” é a inser ção de um texto num editor adequado, ou, talvez, a repro dução digital, página por página, do livro original. Nesta última opção, para permitir-se a busca de palavras ou te mas, é preciso existir um software que transforme a “ima gem” de uma página escrita num texto inteligível para fa cilitar buscas e identificar similaridades. Este processo se torna mais complexo à medida que textos e imagens se misturam e tipos (formatos de letras) diferentes são utilizados. Outro agravante é o volume de dados a ser pesqui sado, uma vez que uma pesquisa de qualidade pode exigir um tempo excessivo.
Portanto, o desafio de oferecer-se bibliotecas virtuais com qualidade e facilidade para criação das imagens (tex
tos) digitais, leitura dos mesmos (em geral, emulando-se o manuseio dos documentos ou livros de origem, permitin do o avanço página a página) e pesquisa sobre o conjunto de informações armazenada, exige o aprimoramento cons tante dos mecanismos de busca.
Nossa revista, Devarim, está agora disponível também como biblioteca virtual, ou seja, todos os números já edi tados podem ser lidos ou consultados via web, ampliando seu alcance como fonte de pesquisa e conhecimento para um grupo de leitores que não poderíamos alcançar de ou tra forma. A revista pode ser acessada através do site da ARI (www.arirj.com.br), clicando-se em “Devarim On-li ne” ou no link www.docpro.com.br/devarim Logo nesta primeira página, encontra-se o botão “Orien tador”, que leva a um tutorial que ensina como fazer o me lhor uso do ambiente disponível. É importante passar por este treinamento no primeiro acesso e tomar conhecimento de todas as ferramentas da biblioteca. Sem isto se corre o risco de utilizar apenas as ferramentas mais simples.
54 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
Em seguida, pode-se definir que edição se deseja ler ou pesquisar e acessar di retamente por meio do botão “Busca Do cpro”. A navegação é quase intuitiva, per mitindo acessar as revistas uma a uma a partir da escolha por meio da visualiza ção de suas capas e, posteriormente, len do-se as mesmas página após página. No caso de pesquisas, pode-se fazer pesquisas sobre um número em particular ou sobre a biblioteca como um todo, buscando-se, a partir de qualquer palavra ou conjunto de palavras, o tema desejado.
A tecnologia utilizada, totalmente de senvolvida no Brasil, otimiza a comunicação, mesmo quando utilizadas soluções de conexão à web mais lentas. Mas o mais interessante neste processo é que, ao contrário do modelo tradicional de re conhecimento ótico de caracteres (OCR), a Docpro, em presa que desenvolveu a tecnologia e cria bibliotecas virtu ais como a Devarim On-line optou por um caminho ori ginal, que vai desde a técnica, forma, programas e qualida de na captura das imagens até o uso de algoritmos comple xos, que garantem um nível de reconhecimento de caracte res extremamente veloz e eficaz. Estes algoritmos são basea dos na observação e experiência de muitos milhões de do cumentos, a forma humana de ler e inteligência artificial.
Os cuidados historicamente associados à confecção de nossos livros devem ser entendidos não como uma demanda por perpetuar um modo de apresentação, mas como orientação para buscarmos sempre o que há de mais moderno à nossa disposição.
A compreensão desta demanda permi te lembrar que, independentemente do valor atribuído ao uso de tintas e perga minhos tradicionais, como elo de ligação com nossa história, o valor “per si” en contra-se no conteúdo, que por isso deve ser preservado e distribuído pelo melhor processo existente. Os cuidados histori camente associados à confecção de nos sos livros devem ser entendidos não como uma demanda por perpetuar um modo de apresentação, mas como orientação para buscarmos sempre o que há de mais moderno à nossa disposição. Desta for ma, podemos entender que a criação da Devarim On-line é um imperativo halá chico! Porque há sempre o risco de, à medida que se sacrali zam os métodos de reprodução, diluir o conteúdo da men sagem, oposto ao que desejamos.
Não é por acaso, portanto, que a Devarim passa a usu fruir também de uma versão disponível via internet, estruturada sob a forma de biblioteca virtual, na qual não ape nas a leitura, mas também todo o tipo de pesquisa pode ser feita, identificando-se rapidamente os conteúdos pertinen tes associados a um termo ou tema desejado.
De certa forma, se considerarmos a produção literária judaica e sua catalogação, perceberemos uma preocupação contínua com a ampliação dos recursos a serem colo cados à disposição para a disseminação do conhecimento. Da tradição oral à escrita, dos manuscritos ao uso da im prensa, a comunidade judaica sempre identificou e se uti lizou do que havia de mais moderno em cada época para preservar e para renovar seus conteúdos.
Sugerimos o acesso à Devarim On-line e o uso desta ferramenta, como meio de aprofundar nosso objetivo de levar conhecimento sobre o judaísmo progressista que vi venciamos na ARI e nossa visão do mundo judaico, a to dos aqueles que se sintam motivados.
O convite está feito, sejam bem-vindos à nossa biblio teca virtual Devarim On-line.
Ricardo Gorodovits é engenheiro, ativista comunitário, boguer na Chazit Hanoar e integrante do Conselho Editorial de Devarim.
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 55
e m p oucas palavras
Amos Oz em árabe
Omaravilhoso livro De Amor e Tre vas do escritor israelense Amos Oz já foi traduzido para 15 idiomas em 27 países. Mais de um milhão de exemplares da obra foram vendidos nos quatro cantos do mundo. O livro ganhou em 2004 o “Prêmio Goethe” e o “Prêmio France Culture”, além de fazer com que Amos Oz supostamen te (pois a lista não é pública) resida na lista de indicados ao Prêmio Nobel de Literatura.
E agora De Amor e Trevas está ga nhando sua versão em nada mais nada menos que o árabe! O árabe-israelen se Jamal Gnaim terminou a tradução
do livro, num projeto patrocinado pela família Khoury de Jerusalém, em me mória de seu filho George Khoury, um promissor estudante de Direito da Uni versidade Hebraica, assassinado num atentado em 2004, depois de ter sido erradamente identificado pelo terroris ta como sendo judeu.
A intenção da família com o pro jeto é promover a coexistência, expli cou Amos Oz. O prefácio inclui de clarações do pai de George. O livro será lançado no primeiro semestre de 2010 em Beirute, Líbano. Não será o primeiro livro de Amos Oz traduzi do para o árabe. Meu Michel foi lança
do no Egito, em 1994, e Soumchi, em 1997, na Jordânia. Em 2003 um rela tório da ONU apontou o baixíssimo nú mero de livros estrangeiros traduzidos para o árabe. O estudo revelou que, a cada ano, a Espanha traduz o equiva lente ao número total de livros traduzi dos para o árabe nos últimos mil anos. Este pano de fundo amplifica ainda mais a relevância das traduções de li teratura israelense para o árabe. Espe ramos que a família Khoury esteja cer ta e que o belo memorial que oferece ram ao filho contribua para um melhor entendimento entre os israelenses de todas as religiões e seus vizinhos.
Paul Cowan
/ iStockphoto.com
Recentemente foi publicado o li vro Rituais Crepusculares: Jose ph Roth e a Nostalgia Austro-judaica, de Luis S. Krausz (Edusp, 2008), que focaliza o contexto histórico e social do Império Austro-húngaro, no fim do sé culo XIX e início do século XX, através da obra do escritor e brilhante jornalis ta judeu Joseph Roth.
Joseph Roth nasceu em 1894 em Brody, antiga Galícia nos confins do desaparecido Império Austro-húnga ro (hoje Ucrânia ocidental). Muito an tes, Brody foi Polônia e voltou a sê-lo depois de 1918. Lá viviam ucranianos, poloneses e judeus, os quais falavam principalmente o iídiche. Estima-se que nesta época 10% da população des ta província eram judeus e a maioria que ali vivia ocupava-se com o peque no comércio ou trabalhava como arte são, que incluía alfaiates, carpinteiros e chapeleiros.
O Imperador Franz Joseph (18481916), com seus súditos de diferentes línguas, religiões e etnias, era evoca do como o pai protetor, especialmen te pelos súditos judeus, aos quais con cedeu os mesmos direitos de todos os demais súditos. Durante seu longo rei nado, mudanças econômicas e sociais afetaram a estabilidade do Império. Mu danças tecnológicas aceleraram a in dustrialização e a urbanização. O modo
capitalista de produção durante os 50 anos de sua existência fez desaparecer as velhas instituições do feudalismo e movimentos nacionalistas surgiram no rastro dessas mudanças.
Viena, a capital do Império, apesar do caldeamento étnico ocorrido por ser a capital, é uma cidade essencialmen te germânica, pela língua e pelas tra dições, e tornou-se palco de lutas no âmbito das nacionalidades e das lutas de classe. Em 1890 inicia-se a época brilhante de Viena, que coincide com o declínio da monarquia.
A renascença judaica em Viena co meçou em 1848 e durou até o início da Primeira Guerra Mundial. Em 1869 foi concedida a emancipação dos judeus, que puderam formar sua comunidade religiosa autônoma, e conduziu à inte gração econômica e social. Viena tor nou-se um centro da Haskalah, o mo vimento do iluminismo secular. Para os judeus a emancipação significava abra çar a língua e cultura alemãs. Isto signi ficava abandonar a língua materna e as tradições judaicas.
Para a completa emancipação havia como alternativas a assimilação, em al guns casos pela conversão ao catoli cismo, a adesão aos movimentos so ciais e o sionismo. A assimilação, quan do adotada, esbarrava com o vírus mu tante do antissemitismo, uma forma
moderna de judeofobia medieval. Roth conseguiu descrever a transição entre a tradição judaica e o mundo moderno e emancipado, que era o ideal a ser al cançado. Mas no lugar da tradição her dada com todos os seus valores éticos havia um mundo que valorizava apenas o progresso material, onde o homem era apenas um instrumento para alcan çá-lo. O autor voltou-se então para o judaísmo que, em sua visão, poderia se contrapor à nova sociedade que esta va se estabelecendo.
Em seu livro Jó, Romance de um Homem Simples (Companhia das Le tras, 2008, tradução de Laura Barre to), publicado em 1931, Roth descre ve a vida e as vicissitudes de uma fa mília em um shtetl pouco antes da Pri meira Guerra Mundial que parte para os Estados Unidos. Devido a várias cir cunstâncias, eles deixam para trás um filho doente, símbolo das tradições que abandonam. O novo universo que en contram torna-se um exílio e o perso nagem principal do livro, tal como o Jó bíblico, perde sua mulher e seus filhos e sua fé e o reencontro posterior com o filho abandonado, que pode ser vis to como um redentor, o salvador do va zio onde mergulhou. Roth não pode ver os desdobramentos do que ele, de cer ta forma, antecipou em suas obras. Ele morreu no exílio, em Paris, em 1939.
O passado e o futuro F RI d A eI del MA n
Karina Tischlinger
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 57
/ iStockphoto.com
Santidade ou exagero?
Provavelmente a maior parte da humanidade valoriza a modéstia como um valor positivo a ser persegui do. O dicionário Aurélio define o adje tivo com alguns termos que soam bem aos ouvidos: “moderado nos desejos, ações ou aspirações”, “sem vaidade”, “que tem pudor, decência, recatado”.
Resulta a partir desta valorização que a maior parte dos grupos sociais estabelecem regras de conduta para conduzir seus membros ao convívio pautado nestes parâmetros. A comu nidade ortodoxa não é uma exceção, muito pelo contrário, a modéstia (tzi niut em hebraico) é um dos valores mais fortemente perseguidos por esta comunidade. Segmentos da camada ultraortodoxa têm adotado a estraté gia de alcançar a modéstia através da remoção total dos elementos que sus citem qualquer tipo de excitação, en tre os quais figura em primeiro plano o contato físico e até mesmo visual com o sexo oposto.
Um primeiro exemplo desta estraté gia é a campanha para forçar a separa ção entre homens e mulheres no trans
porte público em Israel, obrigando as mulheres a se sentar no terço traseiro dos ônibus que servem os locais habi tados pela comunidade. Este concei to está sendo ferozmente disputado na Suprema Corte por aqueles que, como o movimento reformista em Israel, en tendem ser ilegal a segregação em lo cal público, uma vez que, dentre outras coisas, afeta pessoas que não querem ser segregadas.
A tentativa de impor a separação nos ônibus criou filhotes e agora se se param também as calçadas. Na Rua Malchei Israel, em Jerusalém, foram pin tados sinais dizendo “homens” e “mu lheres” de cada lado do asfalto e afixa dos cartazes pedindo a compreensão das transeuntes para o fato de que os homens estão tendo dificuldade de an dar em ruas movimentadas sem esbar rar nas senhoras e senhoritas.
O cartaz recomenda que as mulhe res usem apenas o lado direito da rua e termina afirmando que “graças a isto, teremos homens mais santos e ilumina dos pela Torá, com abundância de ben ção e sucesso em todos os assuntos”.
Parece que conforto econômico e espi ritual da comunidade depende da san tidade dos homens, o que, por sua vez, depende da submissão das mulheres.
O Jerusalem Post noticiou em fe vereiro o lançamento de uma pequena tenda de nylon que, ao ser afixada entre os assentos dos aviões, cria um espa ço exclusivo onde a pessoa fica a sal vo dos olhares e do contato do vizinho, além de não correr o risco de inadver tidamente olhar de esguelha um filme “impróprio” que esteja sendo assistido na cadeira ao lado.
A impressão que fica para quem não pertence à comunidade é que ela con vive com uma extrema fragilidade espi ritual. A exacerbação da proteção con tra contatos fortuitos parece demons trar uma preocupante fraqueza. O rabi no ortodoxo do século 19 S.R. Hirsch significou “inocência” como sendo a qualidade conquistada pelos que ven ceram a luta para colocar a sensuali dade e a paixão em proporções razo áveis. A separação total dos sexos se guramente não fortalece as pessoas na luta pela modéstia.
Katarzyna
Kaszuba / iStockphoto.com
Cooperação estratégica
Emsetembro passado as três princi pais instituições norte-americanas de formação de profissionais comuni tários (rabinos, chazanim, professores e outros) das mais importantes e popu losas denominações judaicas – o refor mista Hebrew Union College, o conser vador Jewish Teological Seminar e o a ortodoxa Yeshiva University – anuncia ram ter recebido um donativo de 12 mi lhões de dólares da Jim Joseph Foun
dation. A verba é destinada a bolsas de estudo, a atividades de planejamento e, o que foi a maior surpresa, para fomen tar a cooperação estratégica entre as três instituições.
Este anúncio deixou todos os que acreditam que não existe apenas uma forma de ser judeu – como é o caso da revista Devarim – extremamente otimis tas com o futuro. É inegável que nenhu ma instituição judaica pode se preocu
par apenas com os seus afiliados e que o interesse maior de todas tem que for çosamente apontar para todos os ju deus do mundo.
Espera-se que o exemplo de coope ração que está sendo inaugurado nos Estados Unidos seja imitado em Israel e nos demais centros judaicos do mun do, onde a relação entre as correntes judaicas é muitas vezes tolamente ina mistosa.
Entender para cooperar
Também
em setembro passado uma campanha publicitária veiculada na televisão israelense pela Agência Ju daica foi retirada do ar prematuramente depois de ter recebido muitas críticas.
A campanha mostrava uma série de fotografias de jovens adultos com olha res tristonhos e com a legenda “Desa parecido” (Lost, em inglês) em cima, imitando os anúncios usados para an gariar informações sobre pessoas com as quais se perdeu contato. Enquanto os anúncios eram mostrados uma mú sica sombria tocava ao fundo da voz de um narrador que dizia: “Mais de 50% dos jovens judeus do exterior estão se assimilando. Você conhece um jovem judeu do exterior? Então ligue para o Projeto Masa e juntos vamos fortalecer seus laços com Israel para que ele não seja perdido. Masa – um ano em Israel e um amor eterno”.
As críticas foram centradas nos 50% de assimilação informados pelo anúncio. Não existe nenhuma compro
vação estatística para o número, que parece ser inspirado por um estudo de 1990 que fixou a taxa de casamentos inter-religiosos entre os judeus norteamericanos em 52%.
No entanto, algumas importantes considerações precisam ser feitas. Em primeiro lugar não há comprovação al guma de que o casamento inter-religio so cause fatalmente perda de identida de judaica. Muitos são os casais inter-religiosos nos quais os filhos são edu cados como judeus ou o cônjuge não judeu se converte (deixando o casa mento de ser interreligioso) ou ainda em que não ocorre perda de identida de pela metade judia do casal.
A ARI mantém uma sólida tradição de trazer para o judaísmo casais interreligiosos, tradição esta que é compar tilhada com todas as demais congre gações liberais do Brasil. A experiên cia das comunidades liberais brasilei ras desmente o número veiculado pela campanha da Agência Judaica.
Um segundo e muito importante fa tor a ser levado em consideração é que o amor entre dois jovens de reli giões diferentes não pode ser lamen tado como se fosse um óbito ou uma viagem sem regresso para o desco nhecido. Há muito tempo que não es tamos mais no shtetl do “Violinista do Telhado”. Não fazemos shivá para o fi lho que se apaixonou por uma não ju dia ou pela filha que namora um não judeu. Mesmo que eventualmente ele (ela) se afaste do judaísmo, continua rá a ser uma pessoa muito querida. Não é preciso ser judeu para ser amado e para ser um valioso membro da hu manidade.
O episódio reforça a necessidade de maior entendimento entre Israel e as comunidades judaicas da disper são. Uma colaboração valiosa entre elas é do maior interesse do povo ju deu e o ponto de partida para a cola boração é um maior entendimento do que se passa em cada lado.
S. Gursozlu / iStockphoto.com
Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 59
pediatras, urge N te! Bulent Ince / iStockphoto.com
Há90 anos, em 1920, Lênin escrevia um ensaio chamado “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”, no qual, pas me-se, condenava o excesso de esquerdis mo de algumas facções da Terceira Inter nacional. O superzelo (chamemo-lo pelos nomes com que hoje é chamado: extremis mo, fundamentalismo, fanatismo etc.) ideo lógico, estratégico e tático, na visão de Lê nin, subtraía da ideia original, no caso o co munismo, o senso de realidade, a visão das coisas como eram e como poderiam evoluir, em favor de objetivos e métodos que, dian te dessa realidade, por mais ‘revolucioná rios’ que fossem, não conseguiriam sair do papel e ainda prejudicariam a causa. Como certas receitas de comida com as quais não se consegue preparar comida alguma, e só se podem comer no papel, embora papel seja indigesto.
A genialidade de Lênin é ainda mais ad mirável por ter sido ele mesmo um ideólogo da extrema-esquerda (mas já não se fazem mais ideólogos da extrema-esquerda como antigamente...). E, no caso, ser da ‘extrema’ seria mais doentio – para usar a terminolo gia de Lênin – do que ser da ‘esquerda’, ou da ‘direita’. A doença, parece, vem das extre midades mais do que das lateralidades. Por que o que se assiste hoje no mundo é uma enorme epidemia de doenças infantis, não importa de que lado, esquerda ou direita.
Parece que muitos supostos líderes, po líticos, ideólogos, não tomaram as vacinas de democracia, tolerância e pluralidade que praticamente acabaram com essas doenças infantis, e, doentes, não conseguem enxer gar o mundo a não ser através de uma retí cula formada por sua própria ideologia, ou seja, suas intenções; só enxergam o que a grade deixa passar, o que frequentemente está muito longe da realidade, se não for o contrário dela. Parece que esses vírus ou bactérias patogênicas destroem as células do centro, como lugares de convívios, diver
sidades e pluralidades, e os doentes ten dem cada vez mais para uma extremidade, lugar de preconceito, intolerância, exclusão dos diferentes e dos moderados.
Mas será que Lênin chamaria candida mente de ‘infantis’ as doenças do extremis mo de esquerda, de direita, de cima (fé reli giosa) ou de baixo (tramas diabólicas de do mínio e subjugação) como manifestadas em Stalin, Hitler, Pol Pot, Mao, por exemplo, no passado recente, e ainda hoje em Ahmadi nejad, Al Qaeda, Nasralah, talvez Chavez e outros infantes sul-americanos?
Esse vírus de infantilidade teve efeitos devastadores, não importa de que lado ata caram, da direita, da esquerda, do céu ou do inferno, e nos caso dos primeiros aci ma citados, só foi debelado com a morte de seus portadores. Como fazer, então, para que consequências similares não sejam o preço a pagar pela extinção dos vírus atual mente em ação? Até este momento, nenhu ma resposta alvissareira, ou ao menos espe rançosa, parece ter surgido.
No caso específico do conflito do Orien te Médio, é preciso cuidado para não con fundir com doença infantil os casos incu ráveis, as enfermidades terminais do extre mismo religioso ou político, o antissemitis mo visceral, as visões medievais de domínio despótico de uma religião, a exclusão do di ferente, as saudades de um Holocausto ne gado, a subjugação política como desejo e mandamento divinos, a recusa da partilha e da convivência. Esses vírus resistem a tra tamento convencional, e têm de ser radical
p aulo g eiger
mente erradicados (para quem não perce beu, erradicar radicalmente é um paradoxo semântico que expressa muito bem o para doxo existencial do extremismo).
Mas nem sempre a doença se apresen ta em sua trágica e nada infantil versão de fundamentalismo, ódio, ameaças de exter mínio, recusa da convivência. Em sua for ma branda (mas muitas vezes paralisante) ela se parece com o que Lênin detectou no comunismo do início do século XX: um su perzelo que redunda na perda de perspecti va da realidade e de oportunidades de avan ço. Já é lendária a capacidade palestina de perder oportunidades, quase sempre inten cionalmente. Do nosso lado, alimentado por cem anos de intransigência, terrorismo, ne gação e ódio, o superzelo se infiltra insidio samente em organismos maduros e equili brados: muitos deles elogiavelmente paci fistas e moderados, mas que, em nome da muito desejável paz e convivência, conta giados pela doença infantil, deixam de en xergar os perigos da não reciprocidade de suas boas intenções, sem falar nas explíci tas más intenções de quem continua ten do como objetivo estratégico nossa destrui ção; por outro lado, os salvacionistas, de fensores patriotas e devotados da legitimi dade e preservação de uma nação judaica, o que é uma causa de inquestionável jus tiça, deixam de enxergar que será preciso correr riscos para assegurar o único futuro viável dessa nação judaica dentro dos prin cípios que a fazem judaica: a convivência com as aspirações nacionais de seus inimi gos de hoje, contanto que seja recíproca.
O que constatamos ao observar os ex tremismos é que o extremista de esquerda é mais perigoso para o moderado de esquer da do que o moderado de direita. E vice-ver sa. Mas enquanto a doença for infantil, seja qual for o lado que ataque, talvez seja pos sível curá-la.
Pediatras, urgente!
Lênin, que condenou o excesso de “esquerdismo”.
60 | devarim | Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI
cócegas no raciocínio