Devarim 25 (Ano 9 - Dezembro 2014)

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Revista da Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 9, n° 25, Dezembro de 2014 devarim devarim Histórias do Messias Rabino Dario Bialer Em busca de Rashid Bey Marcelo Treistman O Partido Trabalhista ainda tem relevância? Entrevista com o deputado Yechiel Bar A paz é perigosa? Paulo Geiger Mestres e Aprendizes Rabino Sérgio Margulies Talvez Chanucá não seja o que você pensa Annette Boeckler Os judeus do Azerbaijão Monique Sochaczewski Mãos estendidas sobre o Rio de Janeiro Rabino Joseph Edelheit Resenha do livro The Jew Is Not My Enemy, de Tarek Fatah Raul Cesar Gottlieb O abraço sufocante Joshua Holo O guia de um especialista através da mais importante história da Terra Matti Friedman O abraço sufocante Joshua Holo O guia de um especialista através da mais importante história da Terra Matti Friedman

Nas sinagogas comprometidas com o movimento refor mista é muito comum ouvir a afirmação: “Se vocês continuarem a mudar assim, em duzentos anos não se vai reconhecer mais nada do passado”. Normalmente ela é proferida num tom que mistura alarme e perplexidade por pessoas sinceramente preocupadas e cujo genuíno comprome timento exige uma resposta que, ao mesmo tempo, tranquilize e esclareça.

A meu ver, a tranquilidade se adquire a partir do entendi mento de que não houve um único momento na história em que o judaísmo deixou de evoluir. É provável que estejamos vi vendo atualmente um momento de mudanças sociais e cultu rais mais aceleradas que nos séculos passados, então, talvez o rit mo agora seja mais intenso, mas é inegável que o pensamento e a prática judaicas nunca ficaram parados no tempo e no espaço.

As evidências da nossa natureza evolutiva já se encontram no texto fundador do judaísmo, a Torá. Constatamos isto em di versas circunstâncias, sendo uma das mais fortes manifestações a questão dos dez mandamentos. A Torá exibe duas formulações não idênticas para este corpo legislativo central. O texto evolui entre o momento da entrega no Sinai e a repetição do evento do último livro, quando Moisés faz um resumo da caminhada des de a saída do Egito.

A natureza evolutiva do texto da Torá estabeleceu um padrão que se repete em todos os momentos de nossa longa história. O judaísmo dos quarenta anos no deserto era diferente do juda ísmo do tempo dos juízes. Os judeus da época do Templo não conseguiriam se reconhecer nos debates Rabínicos da era Talmú dica. A liturgia judaica foi cristalizada após um longo período de formação por volta do nono século da era comum (ou seja, há doze séculos, o que acarreta que mais da metade da nossa cami nhada tenha sido trilhada sem um Sidur). Até o século XVI, o serviço religioso de Kabalat Shabat (o nosso mais popular con junto de orações) simplesmente não existia.

As mudanças se manifestam mais claramente na liturgia por que ela é a parte mais aparente das religiões. Contudo, a liturgia meramente reflete um pensamento filosófico, sua mudança in dicando sempre a evolução deste.

A grande revolução judaica do nosso tempo ainda é a equa lização do status da mulher, que passou a ser considerada res ponsável pelas mitsvot da mesma forma que os homens. A Re forma, inserida nos movimentos da sociedade maior, deu este

passo já há muitas décadas e lentamente todas as demais verten tes judaicas passaram a adotar práticas igualitárias. Com certe za, o papel da mulher na ortodoxia não é o mesmo hoje que há cinquenta anos. As mulheres ortodoxas já estudam como os ho mens, existem minianim femininos ortodoxos e temos até mes mo ordenação de rabinas ortodoxas (que não são chamadas as sim, mas que cumprem este papel).

A Reforma já resolveu a questão da aceitação dos homosse xuais e se debruça hoje sobre as circunstâncias que cercam os casais inter-religiosos. É uma questão de tempo para que estes temas desembarquem também nos movimentos mais tradicio nalistas. Aliás, paradoxalmente, “apego à tradição” não é a me lhor forma para qualificar os movimentos tradicionalistas ju daicos. Numa cultura em constante evolução, ser tradicional significa ser evolutivo. O que realmente define a ortodoxia é o seu ritmo lento e a sua relutância em assumir a vanguarda. Tive esta percepção claríssima ao assistir há alguns anos uma cerimônia de bat mitsvá numa simpática escola ortodoxa que seguiu exatamente os moldes que a ARI adotava nos anos 60 do século passado.

E é evidente que todas as vertentes se influenciam umas às outras. Na ARI da minha infância emanava da bimá uma rigidez ao melhor estilo germânico (além de gélidos olhares paralisan tes para quem ousasse conversar durante as tefilot). Hoje a bimá é um espaço acolhedor onde famílias e amigos se confraterni zam, num estilo claramente inspirado pela abordagem chassídi ca da religião. Às vezes me surpreendo pensando como os meus muito formais avós da Europa Central veriam o novo clima da bimá de sua sinagoga. Converso com eles em meu coração e re cebo a garantia de que o fundamental é manter viva e atual a mensagem judaica, além de acolher a todos conforme o costu me do momento.

Desde o seu primeiro número, no começo de 2006, a Deva rim traz textos que refletem a beleza e demonstram a relevância da evolução no judaísmo. É uma das missões da revista e ten tamos ser fiéis a ela com todas as nossas forças. Continuamos nesta trilha em mais este número, esperando conseguir dissipar a preocupação dos que temem pelo futuro de nossas tradições. Em duzentos anos os judeus estarão muito ocupados com o seu judaísmo e (felizmente) não em olhar para trás em busca de for matos ultrapassados.

Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 1 editorial

Revista Devarim Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI Ano 9, n° 25, Dezembro de 2014

P R es ID ente DA ARI Ricardo Gorodovits

R A b I nos DA ARI sérgio R. Margulies, Dario e bialer

D IR eto R DA Rev I stA Raul Cesar Gottlieb

Conselho eDI to RIA l beatriz bach, breno Casiuch, Rabino Dario e bialer, evelyn Freier Milsztajn, Germano Fraifeld, henrique Costa Rzezinski, Jeanette erlich, Marina ventura Gottlieb, Mario Robert Mannheimer, Mônica herz, Paulo Geiger, Raphael Assayag, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio Margulies.

eDI ção editora narrativa Um eDI ção D e A Rte Ricardo Assis (negrito Produção editorial) tainá nunes Costa

F oto GRAFIA D e CAPA Yuri Arcurs (istockphoto.com)

t RADU ção Ana beatriz torres, Daniel Kovarski

Rev I são D e t exto Mariangela Paganini (libra Produção de textos)

Colaboraram neste número: Annette M. boeckler, Daniel Plattek, Rabino Dario e bialer, Felipe Kaufman Gorodovits, Rabino Joseph edelheit, Joshua holo, Marcelo treistman, Matti Friedman, Monique sochaczewski, Paulo Geiger, Raul Cesar Gottlieb, Ricardo Gorodovits, Rabino sérgio R. Margulies.

os artigos assinados são de responsabilidade intelectual de seus autores e não representam necessariamente a opinião da revista Devarim ou da ARI.

os critérios para grafar palavras em hebraico e transliterá-las para o português seguem as seguintes regras: (a) chet e chaf tornam-se ch; (b) tsadik é ts; (c) hei final acentua a vogal e desaparece; (d) kaf e kuf são k; (e) não usamos hífen ou apóstrofe em casos como ledor, em vez de le-dor, e beiachad, em vez de b’iachad e (f) palavras em hebraico de uso corrente na ARI não estão em itálico.

A revista Devarim é editada pela Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro www.arirj.com.br www.devarim.com.br

Administração e correspondência: Rua General severiano, 170 – botafogo 22290-040 – Rio de Janeiro – RJ telefone: 21 2156-0444

A contracapa de Devarim é uma criação baseada no slogan do Movimento Reformista de Israel – IMPJ

A distribuição de Devarim é gratuita, sendo proibida a sua comercialização.

devARIm [hebraico] Plural de davar, sm. 1 Coisas, todas as coisas, ou algumas coi sas, ou as que interessam. 2 Palavras, não só as palavras em si (seria então mi lim), mas os signos de coisas, ideias, conceitos, pensamentos. 3 O quinto e úl timo livro da Torá, sua recapitulação pós-mosaica, soma das palavras e das coi sas. 4 Revista da ari, onde as palavras recapitulam o judaísmo milenar em sua inserção planetária e contemporânea.

sumário

Mestres e Aprendizes Rabino Sérgio R. Margulies 3

Histórias do Messias Rabino Dario Ezequiel Bialer 9

Talvez Chanucá não seja o que você pensa Annette M. Boeckler 15

O abraço sufocante Joshua Holo 23

O guia de um especialista através da mais importante história da Terra Matti Friedman 31

Em busca de Rashid Bey Marcelo Treistman................................................................................ 41

O Partido Trabalhista ainda tem relevância? O deputado Yechiel (Hilik) Bar assegura que sim 46

Mãos estendidas sobre o Rio de Janeiro Rabino Joseph Edelheit ........................................................................ 54

Os judeus do Azerbaijão Monique Sochaczewski 59

Por que judeus e muçulmanos devem se respeitar mutuamente Resenha do livro The Jew Is Not My Enemy, de Tarek Fatah Raul Cesar Gottlieb 64

A paz é perigosa? Paulo Geiger......................................................................................... 68

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m estres e a prendizes

rabino sérgio r. margulies

“Aprendi muito de meus professores, mais de meus colegas e mais ainda de meus pupilos.” (Iehudá ha-nassi, século 2/3).

Idolatria

Idolatria é fanática devoção a uma pessoa ou objeto (inevitavelmente con trolado por alguém) isenta de reflexão. As decisões impostas por este ídolo são seguidas de modo automático. O fanático seguidor deste ídolo anula seu potencial, deixa de ser o que poderia ser. Ao seguir fanaticamente o ídolo, crê que se junta a um grupo. No entanto, não se junta; é arrastado. Tampouco é grupo, é seita. No grupo, o particular é valorizado, o todo se enri quece com cada elemento. Na seita, as partes evaporam e o todo é solidificado de modo congelante.

A idolatria dá mãos ao totalitarismo. O ídolo sabe tudo. Basta ouvi-lo. E se gui-lo. O totalitarismo tem todas as respostas. Antecipa todas as perguntas. Inó cuo trazer, portanto, as perguntas. Ídolo é a fonte do saber absoluto e das solu ções perfeitas. Não precisa, portanto, seu seguidor aprender. E ainda assim, se insistir em aprender, qualquer aprendizado que destoar do saber atribuído ao ídolo será falho. A falha é indesejável, compromete o funcionamento do todo. Deve ser eliminada. Quem falha é alijado do todo. Torna-se pária. No fundo, a ousadia de buscar o saber, diante da imposição do todo, traz o risco da exclu são. Mais prudente não ousar, não pensar e não criar. Murcha, de um lado, o potencial humano e infla, por outro lado, o fanatismo.

Torá

O judaísmo é insubmisso ao ídolo. Reconhecer o potencial de aprendiza do dos que ensinam é diferente de idolatrar quem ensina. Até porque, na me

Na metodologia de aprendizado judaico, o mestre instiga o discípulo a questioná-lo. A tarefa do mestre não se reduz a exigir do discípulo a absorção do conhecimento transmitido, busca potencializá-lo a transformar este conhecimento. Assim, a informação recebida pode tornar-se sabedoria.

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todologia de aprendizado judaico, o mestre instiga o discípulo a questioná-lo. As sim, a tarefa do mestre não se reduz a exi gir do discípulo a absorção do conheci mento transmitido, busca potencializá-lo a transformar esse conhecimento. Através desta transformação a informação recebi da pode tornar-se sabedoria.

A Torá é uma fonte inspiradora da sa bedoria. Um saber que emerge por meio do questionamento, da criatividade e do diálogo. Daí a perenidade da Torá. Se fos se exclusivamente reprodutora do conhe cimento, um ‘control- c’ / ‘control- v’ a ser copiada e colada nas mentes e almas, a Torá encontraria sua perpetuação nos museus e nas efemérides anuais. Como impulsionadora do saber – livre das amarras da imutabili dade dogmática – a Torá flui em sua vitalidade.

Orar é um ato de ousadia, intenciona possibilitar cada um a encontrar, sob o amparo dos valores espirituais, a sua resposta. É um ato de imersão da alma para que emerjam sentimentos e pensamentos que alarguem a capacidade de respondermos às vicissitudes da vida.

soluções artificiais. A oração rasga a ca muflagem das simplificações falsas. Orar é um desafio. Requer vontade, exige rom per com a inércia, convida para a busca da autenticidade do ser. O ser autêntico prescinde de ídolos. A oração aguça a per cepção das agonias e das partes internamente dilaceradas. Esta conscientização gera o fortalecimento que se antepõe aos ídolos que, como potentes aspiradores, podem sugar a alma humana.

Tefilá (oração)

Tal como o estudo da Torá, a tefilá convida para a am plitude da vida. Rompe a estreiteza que a idolatria impõe. Seres finitos oram para um Ser infinito. Dirigir-se ao Ser infinito é reverenciar a vida e seu surpreendente mistério. Reconhecer a finitude humana é um ato de humildade. Ninguém tem todas as respostas. Alguns têm algumas res postas que são válidas para outros alguns, não para todos. O saber absoluto não é domínio humano.

Orar é um ato de ousadia. Dirige-se a Deus pressupon do que Ele escutará. A oração não se restringe aos limi tes do óbvio. Expande as possibilidades. Porém, a oração não espera de Deus respostas. Se esperasse estaria moldan do Deus às necessidades humanas. A religião estaria, as sim, amparada sobre a satisfação humana e não na dimen são divina. Esperar de Deus soluções é criar um ídolo. É igualmente fazer da religião um sistema totalitário que des titui a singularidade de cada pessoa, como se uma respos ta fosse aplicável igualmente a todos. Deste modo, a ora ção intenciona possibilitar cada um a encontrar, sob o amparo dos valores espirituais, a sua resposta. Orar é um ato de imersão da alma para que emerjam sentimentos e pen samentos que alarguem a capacidade de respondermos às vicissitudes da vida.

Orar é abraçar o incômodo e quebrar o comodismo das

Orar é um múltiplo diálogo. Somos elos de uma conversa contínua que re monta a nossos ancestrais; eles não são nossos ídolos e sim referências. Há uma transcendência em oposição ao imediatis mo. Este diálogo prossegue através da in serção comunitária num compartilhar igualitário, que rejeita a superioridade de uns sobre outros. O diálogo inclui Deus. Tanto a Deus expressamos nossas orações quanto de Deus recebemos o convite para sermos Seu parceiro. Ídolos não querem parceiros e sim seguidores. Nos múltiplos diálogos das orações afirmamos o valor da parceria no des lumbrar da vida.

Tsedaká (ato de justiça)

O ego também pode tornar-se um ídolo ao cobiçar que tudo e todos o satisfaçam. O ego torna-se ídolo quando permite que o artificialismo prevaleça sobre a autenticida de e quando autoriza soterrar – na ânsia por soluções má gicas – o pensamento reflexivo e a ação transformadora.

Valorizar-se e desenvolver um ego consciente com au toestima é muito distinto da egolatria. Egolatria é o olhar cego aos demais e a exigência de que o olhar dos outros seja cego a eles próprios. Tsedaká é ato de justiça social que abre os olhos para os outros reconhecendo as várias pessoas que compõem um todo de convivência.

Um cego andava na rua com uma tocha. Perguntaram -lhe qual era o sentido da tocha se mesmo com o fogo ilu minando o caminho ele não poderia enxergar. Ele respondeu: ‘A luz do fogo é para os outros me verem’. Tsedaká é a resposta ao clamor dos que necessitam ser vistos, perce bidos e amparados.

Uma criança aprende a andar. Ao aprender, cai diver sas vezes, até que consegue se equilibrar sozinha e não cai

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mais. Muitos que já aprenderam a andar voltam a cair. Caem na fraqueza do cor po que não consegue se equilibrar. Tse daká é o ato que restitui aos que tombam a capacidade de andar com integridade e propicia a vida renascer – como uma pri mavera – após ser submetida ao parali sante frio de um tenebroso inverno. Tse daká não é caridade, tampouco esmola. Visa reparar a injustiça social e restaurar a dignidade perdida.

Tsedaká evita a idolatria da insensibi lidade, impede que a vida seja moldada ao sabor das circunstâncias nefastas e não permite que alguém, sobretudo nas condições mais difíceis, seja manipulado. A tsedaká vislumbra a transformação. Nesta tarefa não se res tringe a proclamar os ideais mais elevados do humanis mo e foca na efetiva atuação humana a fim de que nas

Tsedaká não é caridade, tampouco esmola. Visa reparar a injustiça social e restaurar a dignidade perdida. A tsedaká vislumbra a transformação. Nesta tarefa não se restringe a proclamar os ideais mais elevados do humanismo e foca na efetiva atuação humana.

grandes causas não seja esquecido o indi víduo, conforme a tradição judaica afir ma: “Quem salva uma vida, é como se ti vesse salvado o mundo inteiro”.

Missão

O judaísmo é vivência através do convívio. Estar com o outro é o cha mado judaico para em responsabilidade compartilhada aprendermos a Torá, re citarmos a tefilá e praticarmos tsedaká Assim construímos uma vida comunitá ria que valoriza a diversidade sem a su premacia postulada pela idolatria. Nesta missão, somos todos mestres e aprendizes uns dos outros.

Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

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Revista da Associação Religiosa Israelita- ARI | devarim | 7 E você? Você também pode estar sempre presente em Israel Através de uma FUNDAÇÃO OU LEGADO AO KEREN HAYESOD Consulte-nos E-mail: rosane@fcrj.org.br Tel: 21-2257-2556 Ramal: 26
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Histórias do m essias

O certo é que a redenção, o final dos dias e o Messias são tópicos recorrentes que cada geração se pergunta. O Cristianismo resolveu a questão com o dogma de Jesus. Contudo, o judaísmo não. Gosta do indefinido. Das discussões rabínicas nas quais tudo está aberto e tudo é possível.

As fotografias deste artigo são do relógio astronômico de Praga, República Tcheca.

rabino dario ezequiel Bialer

Conta o Talmud que Elihau Hanavi (o profeta Elias) gostava muito de ir estudar no Bet Midrash de Rabi Iehuda1, localizado em Tzipori. Um dia Elias não chegou para a aula e, como bom mestre, Rabi Iehu da lhe pergunta: O que houve?

– Me desculpe Rabi, não consegui chegar a tempo, pois tive que acordar Abrão Avinu do seu sono profundo, lavar suas mãos, esperar até que acabasse suas preces matinais para depois levá-lo de volta ao seu lugar de descanso. Em seguida, tive de fazer a mesma coisa com Isaac e, por último, com Jacó. Assim perdi o dia inteiro.

– E por que você não acorda os três ao mesmo tempo para rezarem juntos? Dessa forma você ganharia tempo e não chegaria tarde.

– Não podemos fazer isso! A força dos três juntos através da tefilá pode oca sionar a chegada do Messias antes do seu tempo.

– E, em nossos dias, temos outro exemplo de alguém capaz de conseguir o mesmo que os patriarcas no mundo vindouro?

– Há sim: Rabi Chia e os seus dois filhos.

Rabi Iehuda de imediato chamou Rabi Chia e o convidou – junto com seus filhos – para liderar a reza na sinagoga de frente ao Aron Hakodesh.

Quando chegaram no trecho da Amidá onde se diz “mashiv ha ruach” – que fazes soprar o vento – os ventos começaram a rugir. E quando recitaram “mo rid ha gashem” – que fazes cair as chuvas – começou a chover com uma força nunca antes vista.

Avançaram um pouco mais e na hora de rezar “mechaiê ha metim”, o trecho que corresponde ao retorno dos mortos à vida, o universo começou a tremer!

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Nesse instante se ouviu uma voz do Céu que perguntou: quem revelou o se gredo? Elias, o profeta – responderam.

De imediato Elias foi chamado às al turas celestiais e advertido por seu com portamento para, em seguida, ser envia do de regresso à terra na forma de um urso de fogo, com a finalidade de assus tar o Rabi Chia e seus filhos, confundir suas preces e evitar que os tempos messiâ nicos se adiantassem. (Baba Metsia 57b)

Quando perguntavam ao sempre instigante

Yeshayahu Leibowitz se o Messias estava para chegar, ele respondia com toda a sua devoção: “Ele virá! Ele virá! Ele virá! Mas todo Messias que vier será um Messias falso!”.

É uma história bonita – e também profunda! – se evitarmos a leitura super ficial. Não se trata da história de pessoas especiais que pro nunciam as palavras exatas na hora certa. Definitivamente não é a Mega Sena, na qual, se você acertar uma com binação bem improvável, ganha de prêmio um Messias!

Os sábios do Talmud sabiam isso muito bem. E ti nham também uma ironia bem aguçada.

Não é por acaso que perguntam ao profeta Elias por que ele está atrasado.

Não apenas porque chegou tarde aos estudos.

A verdadeira pergunta é: Por que tem se atrasado tantas gerações? A pergunta do relato é sobre a redenção.

Essa pergunta que inquietava aos sábios talmudistas ainda permanece aberta. E mesmo que eles recomendem “é melhor não ocupares a mente com pensamentos sobre o Messias, para não confundires teus pensamentos”, o certo é que a redenção, o final dos dias e o Messias são tópicos recorrentes que cada geração se pergunta. Outras religiões têm se aprofundado muito nessa doutrina, principalmen te o Cristianismo, que resolveu a questão com o dogma de Jesus. Eles já colocaram isso preto no branco.

Contudo, o judaísmo não. O judaísmo é cinzento. Gosta do indefinido. Das discussões rabínicas nas quais tudo está aberto e tudo é possível.

A visão dos profetas

A abertura judaica se expressa também em tudo o que tem a ver com a vinda do Salvador, e as próximas linhas tentaram organizar o que o judaísmo tem a dizer sobre isso.

A ideia de um ungido por Deus para salvar a huma nidade se encontra nas previsões dos profetas com olha res contrapostos. Um olhar amplamente difundido é o escatológico, que procura explicar o que acontecerá no

fim dos dias. O profeta Daniel até mesmo calcula quando será esse tempo: “Se tenta semanas foram decretadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade, para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos peca dos, para expiar a iniquidade, trazer a jus tiça eterna, selar a visão e a profecia e para ungir o santíssimo” (Daniel 9:24). Depois disso, o profeta detalha o que virá: um afastamento da ordem para coroar o un gido em tempos angustiantes, com des truição, inundações, guerra e devasta ções terríveis.

Em acréscimo, no Talmud tratado de Iomá2, está es crito que uma semana em Daniel 9 significa uma semana de anos. Assim, muitos vêm em Jesus a materialização da profecia, aproximadamente 490 anos depois. Mas a maio ria dos sábios não gosta da abordagem de Daniel, e desde o Talmud lhe respondem que “está proibido especular e calcular sobre quando serão ‘os últimos dias’”.

O outro olhar poderia ser sintetizado na profecia de Isaias. Ele fala que se reestabelecerá a soberania de Jerusa lém como centro espiritual e que o Messias, descendente do rei David, restituirá o esplendor de Israel, não no que concerne a riquezas e poderio físico, senão como um rei no de Deus no qual todos os recursos morais, intelectuais e espirituais seriam alocados para construir uma socieda de justa. Na visão de Isaías, o Messias será um homem de coração puro, sábio, justo, suave, porém invencível em seu poder espiritual, que, motivado por seu amor a toda a hu manidade, implantará a justiça e a paz eternas no mundo.

Temos também uma valiosíssima referência sobre a grande força messiânica no período do segundo templo, após a descoberta dos rolos do Mar Morto. Um dos prin cipais livros que documenta isso é Pesher Habacuque, um comentário ao profeta bíblico Habacuque escrito pela sei ta de Qumran no qual, além de interpretar ao profeta, in serem referências ao líder da seita o Mestre da Justiça:

“Deus ordenou Habacuque a escrever as coisas que acontecerão à última geração, mas não contou a ele sobre o fim dos últimos tempos”. Quanto à frase, “para que corra aquele que a leia”, refere-se ao Mestre da Justiça, a quem Deus revelou todos os segredos das palavras de seus servos, os profetas. “Porque a visão é para um tempo de terminado... Embora tarde, espere-o”... refere-se ao fato de

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que o final pode ser prolongado para além do que os pro fetas previram, posto que são maravilhosos os segredos de Deus” (lQpHab 7c).

A conjuntura histórica e a vinda de falsos messias

Essas sementes de redenção messiânica no judaísmo devem ser contextualizadas nos traumas nacionais sofri dos ao longo da história. O momento mais emblemáti co foi a destruição do templo de Jerusalém e a revolta de Bar Cochba que, para muitos (Rabi Akiva entre eles), não era outro senão o Messias que tinha chegado para trazer a redenção.

Posteriormente houve muitos outros episódios de per seguição contra os judeus e em todos se renovou a espe rança messiânica com um novo ímpeto. A maioria foi re tratada em literatura sobre o inexorável fim do mundo.

Assim aconteceu no período posterior às Cruza das (1096), à epidemia da peste negra na Europa (sécu lo XIV), à expulsão dos judeus da Espanha e de Portugal (1492 e 1496) e aos pogroms na Polônia e Ucrânia (1648). Essa escatologia no judaísmo foi terreno fértil para os su persticiosos e os cabalistas deixarem sua marca, com ideias de caráter utópico, posteriormente afirmadas pela apari ção do Zohar, e também pela influência cristã, acreditan

do fortemente em que a ordem natural se modificaria na era messiânica.

Segundo Paulo, Adão – o primeiro homem – correspon de a Jesus – o último homem – (Romanos 5:17), e, coin cidentemente, os cabalistas asseguram que a alma do Mes sias será a mesma do Adão que no passado já transmigrara para o Rei David (existe um conhecido notarikon do sécu lo XIII que ensina que as letras de Adão, alef, dalet, mem, correspondem a Adão, David e Messias). Essas ideias já es tavam presentes na época de Nahmanides; ele e seus discí pulos se centravam na concepção midráshica de que a re denção seria um retorno a essa perfeição que foi profanada pelo pecado de Adão e Eva. Dessa forma, a redenção assu miria a forma que foi planejada desde o início por Deus.

A combinação entre os pogroms contra a comunidade judaica na Polônia e na Rússia e a nova religiosidade mís tica deu origem ao maior movimento messiânico desde a época do segundo templo, o Shabatianismo, que começou no ano 1665 quando Shabetai Tsvi, um homem erudito, de conduta ascética e emocionalmente conturbado (o que a psiquiatria moderna chamaria de maníaco-depressivo) se autoproclamou o Messias, uma ideia que no início foi abraçado com entusiasmo por muitos, mas aos poucos foi perdendo força.

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O que seguiu foi a nova Cabala de Tsfat, impregnando de messianismo o antigo misticismo, e criou o conceito de que o caminho para a chegada do Messias deve ser prepa rado com o que eles chamavam de restauração, em hebrai co Tikun. Não era uma esperança abstrata num futuro dis tante. A Cabala de Luria transmitia um grande otimismo divulgando que quase todo o processo já tinha sido feito e que a redenção final estava logo ali adiante.3

A utopia messiânica e o pensamento judaico Quando perguntavam ao sempre instigante Yeshayahu Leibowitz se o Messias estava para chegar, ele respondia com toda a sua devoção: “Ele virá! Ele virá! Ele virá! Mas todo Messias que vier será um Messias falso!”

Ao ser questionado como poderia ter tanta devoção sobre o Messias e, ao mesmo tempo, negá-lo, Leibowitz di zia que a nossa liberdade está totalmente condicionada à liberdade dos outros seres humanos. Somente quando to dos os seres humanos forem livres poderá chegar a reden ção e o Messias.

Muito afastado das ideias escatológicas, Maimônides criticou essa doutrina ao mesmo tempo em que abraçou com fervor a causa messiânica (mesmo sendo um racio nalista). Não devemos esquecer que em seu famoso “Ani maamin”, os 13 princípios da fé, ele disse: “Creio firme mente na chegada do Messias. Esperarei sua chegada pelo tempo que tomar”.

Para Maimônides, Deus é revelado dentro da ordem natural do universo. No Mishnê Torá ele destaca que, quando o Messias chegar, o mundo “Ke minago noheg”4 , querendo dizer que o mundo continuará seu curso nor malmente. De acordo com essa escola de pensamento, não precisamos ver Deus como sobrenatural a fim de sentir que Ele está presente. O Rambam vai além, ao dizer que essas ideias não conduzem a Deus; nem ao temor a Deus, nem ao amor a Deus, portanto ele as desconsidera.

Todas essas tentativas recorrentes no percurso histórico do povo judeu de achar alguém e coroá-lo como o Mes sias foram formas de reeditar a redenção do Egito. A ins tauração da justiça, a liberação do sofrimento, mas sobretudo o sentimento de que Deus ainda está aqui, operando na história e cuidando de nós, como uma mãe que, quan do estamos com medo, nos acaricia o rosto e nos diz que não precisamos temer, que tudo estará bem.

Apos a expulsão dos judeus da Espanha lentamente

foi ganhando adeptos a concepção de que o surgimento do Messias seria um acontecimento simbólico. A reden ção dependeria dos feitos de Israel e do cumprimento do seu destino histórico. A vinda do redentor testemunharia a conclusão da restauração, mas não a causaria.5

Essa foi a grande reivindicação de um grande rabino contemporâneo, Mordechai Kaplan6, iniciado no movi mento conservador e fundador do Reconstrucionismo. Ele defende a tese (seguramente inspirado no próprio Maimônides, como em Spinoza) de que as leis da nature za são exatamente a vontade de Deus e que não faz senti do defender a ideia de que a expressão máxima de Deus na Terra seria uma quebra total desse paradigma.

Redenção não significa a salvação no além ao final dos tempos. Não é o Mundo Vindouro ou a Ressurreição dos Mortos. Para Kaplan, a redenção não é algo que vai acon tecer no final dos dias quando seremos instruídos a fazer as malas para ir a Jerusalém e acolher o Messias. Kaplan interpretou o judaísmo como algo tão real quanto uma ex periência e não como uma obsessão sobrenatural. Ele não acreditava que a revelação fosse o rompimento da histó ria por Deus.

Ele nem acreditava que o judaísmo é essencialmen te de Deus! É antes do povo judeu, dizia. Uma oração do povo judeu para Deus.

A redenção como potencial humano

O messianismo é uma esperança. Se acreditamos que a redenção não é um ponto na história, mas uma aspiração religiosa para refazer a história, deveria ser também espe rança do potencial do ser humano.

Assim chegamos a um dos capítulos mais significativos da história judaica contemporânea que o sionismo reli gioso chamou de “hatchalta de gueulá”, uma expressão em aramaico originada no Talmud e que ganhou notoriedade a partir do sionismo religioso. Será o início da redenção, os primórdios da vinda do Messias, quando assumirmos que o destino histórico do povo judeu está em nossas mãos.

David Hartman (grande exponente do sionismo reli gioso) acreditava que a aspiração messiânica, bem como qualquer outra esperança poderosa, deve agir como críti ca sistemática ao status quo da história.

O judaísmo olha para trás, de forma criativa, para se lançar ao futuro. A um tempo messiânico que ainda deve ser construído.

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A história do Talmud de Elihau e Rabi Iehuda nos lembra que a redenção não é coisa do passado. Não se trata de uma li nha uniforme e contínua de causas e efei tos perfeitamente anunciados nas sagra das escrituras de religião alguma. Tam bém não é o retorno ao paraíso perdido, não significando um olhar nostálgico a um passado que foi melhor.

Walter Benjamim, o genial filósofo alemão, dizia: “O passado é uma débil força messiânica”; tudo depende de como é utilizado, pois a vinda do profeta Elihau para anunciar a redenção não é uma coisa já garantida, que só resta saber quando acontecerá. Estamos falando de uma construção ética que pode acontecer ou não.

O messianismo é uma esperança. Se acreditamos que a redenção não é um ponto na história, mas uma aspiração religiosa para refazer a história, deveria ser também esperança do potencial do ser humano.

Notas

Quando Rabi Iehuda levanta sua voz e pergunta “por que demorou tanto?”, ele fala olhando a Elias, mas está interpelando a nós. Como estamos utilizando nossas po tencialidades para criar um mundo com espaço para o di vino? Nós recebemos em herança uma tradição que acre ditamos nos ajudar bastante nessa obra, mas, como toda herança, nos leva à problemática do que fazer com aquilo que nos foi legado. Como honrar o que recebemos? Como sermos dignos merecedores dessa herança?

Redimir é uma ação muito poderosa que começa com

uma intuição interior e se transforma num crescimento do indivíduo que vai em direção a se tornar um ser humano completo. Redenção não é uma construção filosófica ou teológica abstrata, mas um ajuste fino da alma humana que nos ajuda a amar mais e sermos mais sensíveis e criativos para perseguir as utopias e ser artífices das transformações que acredi tamos necessárias para alcançar um tem po nesse mundo que expresse tudo o que tem de humano e de divino.

1. O grande sábio que no século III compilou a Mishná.

2. Talmud da Babilônia, Iomá 54 a.

3. Scholem, Guershon “Cabala”, em Judaica, ed. A. Koogan, Rio de Janeiro, 1989 (p. 221).

4. Ver Mishne Tora, Hilchot Melachim 12:1.

5. Scholem, Guershon “Cabala”, em Judaica, ed. A. Koogan, Rio de Janeiro, 1989 (p. 302) .

6. Nascido na Lituânia em 1881 e falecido em Nova Iorque em 1983.

O Rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religio sa Israelita do Rio de Janeiro – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Latino-Americano Marshall T. Mayer, em Buenos Ai res, Argentina, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Je rusalém, Israel.

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talvez C H anu C á não seja o que vo C ê pensa

Estando agora a muitos quilômetros do Rio de Janeiro, sinto saudades, relembrando com gratidão a minha semana muito especial na cida de em setembro passado. As Grandes Festas já passaram e o próximo evento do calendário judaico é Chanucá, em dezembro. Atualmente Chanucá é um grande evento, mas isto não foi sempre assim. As velas nas noites, os presentes, os bolos doces fritos, as canções populares, os jogos de crianças... tudo isso é muito conhecido. No hemisfério norte é um festival quente e feliz no meio do inverno gelado.

Mas nenhuma destas sensações agradáveis transmite com exatidão qual a mensagem original de Chanucá. Na verdade, não nos ensina quase nada so bre esta mensagem, assim que para buscar este conhecimento temos que estu dar as rezas de Chanucá em nosso Sidur. E esta busca contém muitas surpresas.

Do ponto de vista litúrgico, Chanucá não é uma festa (chag); é um dia útil normal, com a exceção de que cantamos o halel e fazemos pequenas inserções específicas nas rezas. Durante os dias de Chanucá, inserimos na Grande Oração (Amidá) e na Benção de Agradecimento Pela Refeição (Bircát Hamazón) uma fórmula de agradecimento pelos milagres de Chanucá. Se chama “al hanissim”: “pelos milagres”. Agradecemos “pelos milagres, pela redenção, pelo heroísmo, pelos salvamentos e pelas lutas que Tu [Deus] fizeste por nossos antepassados naqueles dias, nesta época, nos dias de Matitiáhu Ben Iochanán, Chashmonaí, o Cohen gadol (Sumo Sacerdote)”. Nos Sidurim da ARI vocês encontram essa reza na página 15f do Sidur Shavua Tov e na página 78 do Sidur Shabat Sha lom (a tradução é um pouco diferente lá).

O judaísmo liberal postulou desde o início no século XIX que as rezas tinham que se adequar aos nossos sentimentos e pensamentos. E assim, o que fazer com uma reza que não exprime o que nós conhecemos?

Reproduções dos livros: Annette M. Boeckler.

dra. annette m. Boeckler
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E aqui nós temos o primeiro problema: Matitiáhu Ben Iochanán não foi um “Cohen gadol” (Sumo Sacerdote), ele foi apenas um Cohen, sem maior hierarquia. Talvez vo cês digam: E qual o problema disso? Não faça tanto baru lho sobre esta bagatelinha! Mas não é uma bagatela. Um Sumo Sacerdote tem que ser filho da família de Arão. Ele era a única pessoa autorizada a entrar no Santo dos San tos e isto apenas num único dia do ano, no dia de Iom Kipur. Ele era a pessoa mais sagrada do judaísmo antigo. Ele tinha o poder de purificar, de decretar os julgamentos de Deus e de liberar pessoas criminosas; ele tinha funções e responsabilidades muito especiais. Por isso, usava roupas especiais, como descrito na Torá na Parashat Terumá (She mot / Êxodo 28).

Teria sido emocionante se Matatiáhu tivesse sido o Sumo Sacerdote, que ressantificou o nosso templo na épo

ca da invasão grega, no evento que comemoramos em Cha nucá. Mas não foi assim, ele não era da família de Arão. A família de Matitiáhu era de sacerdotes normais, pessoas que faziam as tarefas diárias menores – sabemos isto gra ças a fontes históricas gregas. O que me intriga não é que Matitiáhu tenha sido ou não um Sumo Sacerdote, mas sim que uma reza diga que ele o foi, sem ser verdade. En tão a pergunta é: O que é que as nossas rezas transmitem?

O judaísmo liberal postulou desde o início no século XIX que as rezas tinham que se adequar aos nossos senti mentos e pensamentos. E assim, o que fazer com uma reza que não exprime o que nós conhecemos?

O pai da liturgia acadêmica, o rabino Dr. Abraham Geiger (1810-1874), disse que as rezas que não exprimem os nossos pensamentos e o nosso conhecimento têm que ser mudadas ou mesmo eliminadas da liturgia congrega

1. Einheitsgebetbuch, 1933, p. 506-507.
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cional. Então o Dr. Geiger mudou a reza “Al hanissim” e explicou em 1870: “Nem Matitiáhu nem o pai dele, Iochanán, fo ram Sumo Sacerdotes; somente Jônatas, o filho dele, o foi; um erro histórico não deve ser perpetuado na oração”.2

O Dr. Geiger tinha autoridade! Seu pensamento influenciou decisivamente o desenvolvimento da liturgia progressista durante o período da Reforma clássica, in clusive o primeiro livro de rezas usado na ARI, que foi uma tradução em português do Einheitsgebetbuch, o último livro liberal alemão de re zas, lançado em 1929 com edições em 1931, 1933 e 1938.

Do ponto de vista litúrgico, Chanucá não é uma festa (chag), é um dia útil normal, com a exceção de que cantamos o halel e fazemos pequenas inserções específicas nas rezas.

monaí... “Nos dias de Matitiáhu, filho de Iochanán, o sacerdote, da família dos Chasmonaim”. (Figura 1)

O Einheitsgebetbuch oferece o seguinte novo texto: Al hanissim... bimé Matitiáhu ben Iochanán hacohen Chash

O primeiro livro de rezas usado na ARI e na CIP foi uma adaptação deste Einheitsgebetbuch para o português, feito pelos rabinos Dr. F. Pinkuss e H. Lemle. Mas para Chanucá, a primeira edição des te sidur, lançado em 1953, não usa o tex to do Einheitsgebetbuch, mas o tradicio nal, com Sumo Sacerdote em hebraico e em tradução: Al hanisim ... bimé Matiti áhu ben Iochanán Cohen gadol, Chashmonaí... “Nos dias de Matitiáhu, da família do sumo pontífice Yochanan o Hashmonaí...” (p. 89). (Figura 2)

Já a segunda edição oferece o texto hebraico do

2. Livro de Rezas para todo o ano israelita, 1953, p. 88-89.
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Einheitsgebetbuch (é uma cópia do texto hebraico – com pare as fotos do Einheitsgebetbuch e do Sidur da ARI de 1966) com a correção histórica do judaísmo liberal clás sico alemão, porém a tradução para o português não foi mudada para acompanhar a renovação do texto em hebrai co. A tradução é exatamente a mesma de 1953. (Figura 3)

O mesmo continuou no Sidur seguinte O nosso Shabat, lançado em 1976, ainda usando o texto hebraico fotográ fico do Einheitsgebetbuch. (Figura 4)

Felizmente no Sidur usado hoje, a tradução coincide com o hebraico, porém, o erro histórico voltou, no texto hebraico e na tradução: “Nos dias de Matitiáhu, da família do sumo pontífice” (Shabat Shalom, 1997, p. 78). A con gregação, fundada na liturgia alemã, não preservou o tex to mudado de acordo com a liturgia liberal alemã clássi ca! É como se a relação entre os feitos históricos e as nos sas rezas não importasse.

E vocês vão ficar ainda mais surpresos: mesmo os rabi nos do Talmud não ensinam os feitos históricos de Cha nucá, mas deliberadamente apenas as mensagens teológi cas. A nossa liturgia é baseada nestes pensamentos não his tóricos dos rabinos antigos.

No judaísmo universal, não só na ARI ou no judaís mo progressista, nós abençoamos sobre as velas de Cha nucá dizendo: “Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que fizeste milagres para os nossos antepassados, naqueles dias, nesta época.” Segundo o Talmude (Sha bat 21b), os milagres são os seguintes: os Macabeus entra ram no Templo que tinha sido profanado pelos gregos. Os Macabeus descobriram uma única garrafa pequena de óleo purificado para acender a Menorá sagrada e a usaram para reiluminar o Templo. O óleo, que era suficiente ape nas para um único dia milagrosamente queimou ao lon go dos oito dias. Por isso nós acendemos uma vela a cada

3. Livro de Rezas para todo o ano israelita, 1966, p. 80-81.
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noite do festival como forma de gratidão. Mas a verdade histórica é diferente. Ela nos é transmitida pelas fontes gre gas (como nos livros do historiador Jo sephus) e especialmente pelos dois livros de Macabeus, escritos em grego (Septu aginta), que não foram incluídos na tra dição judaica e já teriam sido esquecidos se a Igreja Católica não os tivesse preservado. Segundo os livros de Macabeus, a história de Chanucá é sobre uma vio lenta revolta militar dos judeus de Jerusalém contra os poderosos daquela épo ca. Os gregos ordenaram a construção de um altar para o deus Zeus no Templo de Jerusalém e passaram a fazer sacrifícios de animais não kasher so bre esse altar, ordenando a todos que adorassem a Zeus.

Mesmo os rabinos do Talmude não ensinam os feitos históricos de Chanucá, mas deliberadamente

apenas as mensagens teológicas. A nossa liturgia é baseada nestes pensamentos não históricos dos rabinos antigos.

Então, ao sul de Jerusalém, na cidade de Modiín, começa, no ano de 164 antes da era comum, uma ofensiva militar judai ca contra os gregos. Os líderes foram Matitiáhu e seus cin co filhos. Após a morte de Matitiáhu em 166 BCE, o filho dele, Yehudá, toma a frente da batalha. Yehudá acabou conhe cido como Judas Macabeu (Judas, o Mar telo). Depois de rededicar o Templo, eles celebraram o que tinha sido a última fes ta judaica que eles não puderam celebrar no Templo a seu tempo. Então, um pou co atrasados, no mês de Kislev, eles cele braram no Templo os oito dias de Sukot que eles não puderam celebrar no mês do Tishrei. Por isso, Chanucá dura oito dias e nós cantamos o Halél. Não há menção ao óleo

4. O nosso Shabat, 1976, p. 164-165.
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para iluminação da Menorá na história dos livros de Macabeus.

Simon Macabeu, filho de Yehudá, fundou em 142 antes da era comum um Estado Judeu autônomo, teocrata, onde o Sumo Sacerdote também era o líder mili tar e político, com muitas guerras e com uma política por vezes muito cruel. Na quela época, o grupo dos fariseus foi fun dado (os antepassados dos rabinos do Tal mude) separando assim a religião das ba talhas e das políticas do Templo e cons truindo uma religião praticada em geral nas famílias de todo o país. O último rei Hasmoneu foi Herodes o Grande (marido de uma filha da família Chashmonaí), bem conhecido por suas crueldades. Os romanos terminaram assim esse período de 126 anos de independência judaica nesse território (Jo sephus, Antiquitates 14:490f). E os rabinos do Talmude deduziram de tudo isso que grupos militares judaicos po dem ser perigosos.

A religião judaica não é só uma lembrança do passado. É uma mensagem para hoje e para o futuro. E os textos litúrgicos são arte, são poesia, expressando também valores ademais de fatos. O mais importante são as mensagens e os valores que eles transmitiram para nós.

é só uma lembrança do passado. É uma mensagem para hoje e para o futuro. E os textos litúrgicos são arte, são poesia, ex pressando também valores ademais de fa tos. Às vezes nós usamos lembranças dos nossos antepassados, aprendemos da sa bedoria deles sobre a vida e sobre o mundo. Mas o mais importante não são os fa tos históricos, mas sim as mensagens e os valores que eles transmitiram para nós.

Esses oito aspectos são para mim o que podemos aprender como conto rabí nico de Chanucá:

Nunca desistir da esperança;

Perseverar em nossas obrigações, mes mo em tempos difíceis;

Acender luzes, trazer claridade e orien tação ao mundo por ensinar e ser um bom exemplo;

Nunca perder a coragem, mesmo quando nos sentimos sozinhos, pequenos e fracos;

As coisas no tempo dos romanos ficaram piores por causa dos grupos militares – como os Zelotas – e, depois da revolta de Bar Kochba, os romanos proibiram todas as práticas judaicas em Israel. Então, os rabinos do Talmude não gostam de relembrar as batalhas dos Macabeus, apesar de que acham bom manter sempre acesa a lembrança da ajuda divina e dos valores judaicos. Então, eles inventaram uma história inspirada numa história do profeta Elias, que uma vez multiplicou óleo para uma mulher (1 Reis 17:716). Eles preservaram os dias de Chanucá como dias me moriais, mas os rabinos lhes deram uma mensagem nova e espiritual: esperança. Só hoje em dia, quando nós temos de novo um Estado Judeu, recomeçamos a nos interessar pela histórica segundo os dois livros de Macabeus e pelos fatos históricos da época grega. Então, hoje em dia Cha nucá evoca para muitos mais sobre Judas Macabeus, he roísmo, batalhas, coragem, antiassimilação do que sobre milagres divinos.

E nós? Ficamos com uma reza que diz que Matitiáhu foi Sumo Sacerdote quando não o foi, e outra que agrade ce por um milagre de multiplicação do tempo de duração de uma chama de óleo, que não aconteceu.

Eu acho que tudo isso mostra que a religião judaica não

Verificar quando é bom se adaptar à cultura da socie dade e quando é bom ser diferente;

Ser grato pelo que tem;

Nunca desvalorizar uma coisa pequena, porque mesmo uma luz pequena tem grande força na escuridão e porque uma única luz tem o potencial de se multiplicar [por oito];

Prezar a alegria, a comunidade e realizar tarefas em gru po.

Notas

1. Agradeço aos meus grandes amigos Eddy Grossenstein e Silvia Gray por lerem as primeiras versões deste texto e por corrigir os erros do meu português, que apren di de forma autodidata.

2. “Weder Mattathias noch sein Vater Jochanan war Hohepriester, erst sein Sohn Jo nathan ward es; ein historischer Irrthum darf aber nicht im Gebete verewigt wer den.” (A. Geiger, Plan zu einem neuen Gebetbuche nebst Begründungen, Breslau 1870, p. 32.)

A doutora Annette M. Boeckler cresceu na Alemanha e vive atual mente na Inglaterra. É professora de Liturgia e Bíblia no Leo Baeck College em Londres. É autora de vários artigos sobre a Liturgia Ju daica, por exemplo, nos livros da série “Prayers of Awe” por Lawren ce A. Hoffman. Tem interesse especial em história e teologia da Li turgia Liberal Alemã e sua recepção. Esteve em visita ao Rio de Ja neiro em setembro deste ano, onde travou conhecimento com a li turgia praticada na ARI e com a revista.

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o a B raço sufo C ante

Nos EUA o judaísmo se encontra num contexto religioso que, embora verdadeiramente livre e aberto, não é aquilo que mais queríamos que fosse: indiferente. É justamente a persistente relevância do judaísmo para com os outros que reflete as profundas tensões culturais e religiosas.

Vinte anos atrás, um querido amigo meu surtou numa crise de identi dade. Sem avisar, foi ao aeroporto de Los Angeles e pulou para den tro de um voo destinado ao primeiro lugar que aparecia no painel de partidas.

Meu amigo de classe média, talvez um típico judeu americano, se encontrou, no sentido de se localizar, mas também no sentido de se autodescobrir, em Belfast, Irlanda. Especificamente, num bar, num momento decisivo.

Ao se aproximar da entrada, meu amigo topou com o segurança, que, blo queando a porta com seu corpanzil, o interrogou: “Proddy [protestante] ou ca tólico?” O meu amigo receou em responder a este interrogatório, repleto de as sociações desagradáveis. Porém, algo o compeliu a responder.

“Judeu,” disse.

O segurança, despreocupado com as batalhas e preconceitos para além do seu próprio horizonte religioso, desinteressadamente permitiu que o meu amigo entrasse. Deste momento em diante, o meu amigo se apaixonou pela chamada “Ilha Esmeralda,” achando-se em casa e gozando da indiferença dos irlandeses.

Nos Estados Unidos nada do gênero existe. O judaísmo se encontra num contexto religioso que, embora verdadeiramente livre e aberto, não é aquilo que mais queríamos que fosse: indiferente. É justamente a persistente relevância do judaísmo para com os outros que reflete as profundas (e mais ou menos igno radas) tensões culturais e religiosas, as quais são, apesar de ignoradas, intuídas.

Aqui (nos EUA), o diálogo judaico-cristão atual tomou forma durante a campanha presidencial de 1980. Os republicanos exibiam cartazes com o nome de Ronald Reagan escrito em caracteres hebraicos. Desde então, um diálogo

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inter-religioso peculiar tem borbulhado, em que os cristãos conservadores, prin cipalmente evangélicos, nos enfrentam com um paradoxo a respeito a dois te mas políticos muito próximos ao coração da comunidade judaica. Por um lado, os evangélicos querem minar a separação en tre Igreja e Estado, coisa que, ao contrá rio deles, os judeus querem fortalecer. E, por outro lado, defendem zelosamente o sionismo, coisa que, junto com eles, nós queremos defender. Politicamente, esta mos dançando uma dança delicada, com alguns sobretons religiosos.

Uma sondagem do Pew Research Center

chamou os judeus de o grupo religioso mais popular do país. O êxito representa a plenitude da cidadania, que inclui não só participação democrática como também promoção dos nossos interesses sem pedir desculpas – como faz quem pertence assumidamente.

Ao longo do desenvolvimento da política evangélica americana, um espec tro político mais amplo também evoluiu no diálogo inter-religioso. Universidades pelo país afora criaram programas acadêmicos de estudos judaicos, enquanto igrejas e seminários cristãos procura ram interlocutores judeus e rabínicos.

Então, o sucesso da integração judaica na sociedade americana reflete um sentimento bastante positivo (uma sondagem do Pew Research Center chamou os judeus de o grupo religioso mais popular do país). O nosso êxito re presenta a plenitude da cidadania, que inclui não só parti cipação democrática como também promoção dos nossos interesses sem pedir desculpas – como faz quem pertence assumidamente. E vale reconhecer que este diálogo complexo e bem sucedido surgiu de um contexto também reli gioso: ao desaparecerem antigos conflitos teológicos e cul turais (em grande parte, graças ao Concílio Vaticano II).

Mas a história tem dimensões ambivalentes. O exem plo mais claro e bem conhecido na política judaica cristã é o apoio dos EUA ao Estado de Israel. George W. Bush (como Reagan e outros) se esforçou em prol de Israel. Mas, sob Bush a aliança com Israel assumiu, explicitamente, um tom religioso, enquanto outros presidentes tratavam da questão sob uma motivação democrática e de valores cul turais. Michael Cook, professor de Novo Testamento no Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion em Cincinnati – observa que, mesmo entre os cristãos conser vadores, o apoio americano para Israel representa, antes de mais nada, a defesa de valores americanos. No entanto, nin guém pode negar que a retórica de valores religiosos cris

tãos assumiu nova proeminência no deba te público sobre a ideologia e a política, com implicações diretas na guerra contra o terror e o conflito árabe-israelense. Na than Guttman, do Daily Forward, ilustra este fato no seu artigo de 2012, “Jews Cast Wary Eye on Evangelicals”.

A maioria dos judeus burgueses, ur banos e do partido democrata se assusta, pelo menos à primeira vista, com o apoio cristão – de caráter religioso – ao Estado judeu. Mesmo assim, ao longo dos anos, a surpresa vem dando lugar à curiosida de cautelosa, que por sua vez tornou-se uma compreensão mais diferenciada da posição cristã.

Este apoio evangélico a Israel está en raizado na esperança apocalíptica do re torno de todos os judeus à Terra Santa para cumprir o fim dos dias. Este retorno anteciparia a última chance de se converter ao cristianismo antes do fim. Então, no Juízo Final, aqueles que se converteram serão salvos; os que não, irão para o inferno.

Ao captarem esta visão cristã, os judeus americanos viram-se divididos em termos de aceitar ou rejeitar o apoio evangélico de Israel. Uns aceitam ajuda de onde vier. Estes ignoram, menosprezam, ou simplesmente descartam um teórico conflito messiânico.

O segundo campo bate de frente com o aspecto hostil desta visão cristã e rejeita a assistência evangélica. Estes ju deus argumentam que a inimizade implícita supera qual quer benefício para Israel. A jornalista americana Linda Gradstein entrevistou uma vereadora religiosa de Jerusa lém que se irrita com a presença evangélica em Israel: “... após o apoio econômico e político — [os evangélicos] explicam sem pudor seu verdadeiro objetivo: o povo judeu precisa se converter.”

Enquanto isso, o debate interno judeu continua fervilhando, e Israel goza do apoio, direto e indireto, do lobby evangélico e até do seu turismo.

Ambas as reações judaicas seguem uma certa lógica. Por um lado, os judeus americanos defendem o direito bási co de Israel existir como um Estado democrático, seguro e judaico. Eles também se identificam com a narrativa do Davi contra Golias, e dão valor ao apoio americano a Is

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rael. Por outro lado, o cristianismo evangélico estridente abraça uma visão apocalíptica e antagônica a nós. Mais problemático, ele coloca essa escatologia no centro de sua fé e visão de mundo e – mais importante ainda – em pra ça pública, como afirma David Saperstein, o ex-diretor do Religious Action Center, da Union for Reform Judaism.

E é precisamente em praça pública que os judeus, acei tando ou não o apoio político-econômico evangélico, re ceiam a conversa explicitamente religiosa. Volta-se à con tradição interna na relação evangélico-judaica: acordo par cial sobre Israel por um lado e total discordância sobre a separação entre Estado e Igreja por outro. Os judeus ame ricanos sonham com uma visão americana, em que judeus e cristãos se definam pelo belonging (pertencimento) cívi co, pela realização, não importa quão imperfeito, do Estado-nação laico.

Ao entrar na conversa explicitamente religiosa, os ju deus se manifestam assustadiços. Perante uma maioria cris tã, carregam bagagem particular em relação ao universalis mo cristão. A história marcou a psique judaica e, machuca dos, vemos nos EUA a promessa de uma pomada. Portan to, qualquer expressão pública da religiosidade cristã, mes mo quando ao nosso favor, é vista com suspeita.

Os judeus tendem a ter uma reação instintiva, não ra cional, ao cristianismo público. Entretanto, os cristãos, ao perceberem este efeito, respondem com perplexidade ou até com mágoa. Na verdade, a maioria dos próprios judeus, assim como os cristãos, não consegue explicar por que a sensibilidade judaica é tão rude, tão resistente ao diá logo. Noutras palavras, tanto os judeus quanto os cristãos nunca pararam para meditar sobre a lição do pub irlandês.

Superficialmente se imagina que este receio seja fruto do sofrimento do nosso passado recente e distante. Porém, a causa do mal-estar é mais profunda e quase imperceptí vel porque, em primeiro lugar, tem origem na história an tiga, distante da nossa consciência. Em segundo lugar, o verdadeiro motivo se esconde por trás do mais óbvio e su perficial antijudaísmo. Enfim, os judeus sentem esse mal -estar com o cristianismo, mas acham difícil discerni-lo, muito menos explicá-lo.

O que, então, motiva a rejeição judaica a esse diálogo religioso-político?

Historicamente, o problema começa com a autoafir mação do cristianismo e sua ruptura do judaísmo – ou, mais precisamente, com o caráter imperfeito do divórcio. Daniel Boyarin, professor de judaísmo rabínico na uni

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versidade de Berkeley, argumenta que as duas religiões “continuaram ‘a se empur rar... em seu ventre’ pelo menos até bem próximo ao final da antiguidade...” Em bora evoluísse como uma religião distinta e própria, o cristianismo entende-se como fruto, filho ou consequência de uma reli gião-mãe específica: o judaísmo.

Além do mais, o cristianismo não ape nas nasceu do judaísmo como também continua a significativamente definir-se em relação à sua mãe. Jon Levenson, pro fessor de estudos judaicos em Harvard, explica que “no pensamento de Pau lo, Abraão serve como um modelo não só para gentios ou cristãos, mas para to dos que desejam pertencer a Israel.” Cris tianismo se apropria do judaísmo, englo bando-o, na sua autodefinição.

Para David Novak, os cristãos devem conversar com judeus porque os judeus legitimam “promessas feitas por meio de Jesus”; mas os judeus devem conversar com os cristãos porque “a existência comunal judaica funciona melhor em um estado liberaldemocrático, alimentado por uma cultura religiosa”.

Sob a liderança de Paulo, os cristãos ofereceram uma visão redentora que abandonou as trabalhosas práticas de circuncisão e shabat. Adotaram, em seu lugar, uma visão mais abstrata das coisas. Assim, por exemplo, Paulo fa mosamente prometeu à sua plateia romana que “Judeu é quem o é interiormente, e circuncisão é a operada no co ração, pelo Espírito, e não pela lei escrita”. O cristianismo desenvolveu uma nova versão da promessa redentora ju daica, cancelando a adesão étnica e quebrando a fidelida de aos estatutos da Torá. Para Paulo, a simples fé garante associação ao pacto, mas, ao mesmo tempo, ela exclui dele os judeus.

Tendo em vista estes pontos básicos de divergência, a ruptura fundamental entre cristãos e judeus deixa de ser simplesmente uma diferença de opinião. Pelo contrário, os cristãos e judeus encontraram-se com interpretações opos tas – e irreconciliáveis – do mesmo texto. O Novo Testa mento prometeu aos seus adeptos uma Nova Lei, simulta neamente nascida da Torá e tornando-a obsoleta. A Nova Lei, ou seja, o cristianismo, só consegue apoderar-se da le gitimidade divina da Antiga Lei, ou seja, do judaísmo, na medida em que reconhece aquela legitimidade em primei ro lugar. O Cristianismo se vê na necessidade de simulta neamente creditar e desmerecer a Torá.

À primeira vista, o conflito milenar nasce dai. Por cer to, os judeus se ofenderam veementemente com a apro

priação de sua história, valores e identi dade por um grupo cismático. Até hoje, Nicholas de Lange, um eminente estu dioso do judaísmo, da Universidade de Cambridge, insiste que “a teologia cris tã de substituição deve ser deslocada se vai haver um verdadeiro encontro entre cristãos e judeus. Caso contrário simples mente não há suficiente terreno em co mum para uma discussão”.

Sim, este conflito persiste, mas esse antagonismo não reflete o problema atu al nos EUA. Afinal, nos vemos receosos diante duma política favorável, a de apoiar Israel. Há de ter, então, outro fenômeno que explique estarmos com pé atrás com relação ao nossos concidadãos.

Este fenômeno é a falta de reciproci dade entre as duas religiões.

Por sua vez, o judaísmo se vê fundamentalmente alheio ao cristianismo. A partir já da época de Paulo e do divórcio original, o judaísmo percebia no cristianismo uma re ligião totalmente distinta. Desde que o cristianismo alijou a estrutura jurídica do monoteísmo judaico e quebrou os laços étnicos que definem o povo judeu, rompeu definiti vamente qualquer ligação orgânica com o judaísmo.

Maimônides, o grande filósofo, legista, médico e lí der comunitário do século XII, reconheceu o status judeu de Jesus. Mas dele distingue a religião que nasceu em seu nome: “... Uma religião, atribuída a ele pelos descenden tes de Esaú [Roma pagã], ganhou popularidade. Embora isto fosse o objetivo dele [Jesus], não teve nenhum impac to sobre Israel, nem indivíduos nem grupos vacilaram na sua fé [judaica].” Para Maimônides, o cristianismo, a mi noria vizinha que ele conhecia na Cairo islâmica, não era nada mais do que o paganismo romano anexado à figura de Jesus. Não tinha nada a dizer ao judaísmo. O cristia nismo não refletia, nem era mesmo capaz de refletir, uma conexão religiosa ao judaísmo.

O olhar cristão parte de um princípio nitidamen te oposto. Ao entender que a legitimidade da sua própria mensagem depende do judaísmo bíblico, que alega ter her dado, o cristianismo não goza do luxo da indiferença ao ju daísmo – seja histórico ou atual. Sentimentos cristãos so bre o judaísmo podem vacilar entre admiração e hostili

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dade, mas esses sentimentos são sintomas do princípio, a priori, de que o cristianismo se preocupa com o judaísmo. O judaísmo é um elemento constituinte do núcleo da pró pria identidade cristã. Papa Benedito XVI escreveu, como Joseph Ratzinger, que “a fé testemunhada pela Bíblia ju daica não é meramente uma outra religião para nós, mas é o fundamento de nossa fé”.

Frente à indiferença existencial judaica para com o cris tianismo, o investimento cristão para com o judaísmo indica o esquivo princípio que rege as relações judaico-cris tãs: a assimetria. Antissemitismo, disputas teológicas, e es tereótipos negativos não esclarecem o paradoxo. Em gran de medida porque não são prevalentes atualmente nos EUA. Apenas a assimetria explica o paradoxo da aversão judaica ao diálogo religioso: Judeus gozam da melhoria das relações devida a esse diálogo, mas se sentem pouco à von tade engajando-se nele.

Para os judeus, o cristianismo é basicamente irrelevan te para sua autocompreensão como judeus. Além do mais, a persistente apropriação cristã da nossa história nos dei xa com o sentimento de sermos objeto de atenção e escru tínio não desejados.

Não é, então, razoável que os cristãos esperem uma atitude acolhedora, ou mesmo neutra, com respeito à sua teo logia por nossa parte. O divórcio das duas religiões surgiu precisamente porque os judeus não se identificavam com a orientação da fé cristã. Teologicamente, o cristianismo é posseiro narrativo da nossa história. Essa posse, mesmo

com espírito harmonioso, faz violência à necessidade do judaísmo manter sua coerência interna e, nisso, distinguir -se da sua religião filha. A teologia evangélica só agrava a situação ao propor a nossa aniquilação – não por um ho locausto sangrento, mas por uma linha doutrinal em que o judaísmo se renderá ao cristianismo por conversão ou pelo destino apocalíptico.

Enfim, não é tão surpreendente que os judeus se res sintam da situação: Lavamos as mãos do cristianismo, para depois encontrar o abraço sufocante dele.

Mas se o nosso ressentimento é compreensível, é tam bém verdade que os judeus não podem esperar que os cristãos renunciem à sua teologia. Mesmo os judeus jamais ce dendo a sua cumplicidade na história redentora cristã, não é razoável obrigar os cristãos a abandonar essa história, que é a base da sua fé.

Se os cristãos têm de aprender a aceitar o ressentimen to judaico como sendo apropriado e fetichizado, os judeus têm que considerar que o elemento judaico na identidade cristã não representa uma fetichização dos fiéis e sim algo edificante e verdadeiro.

David Novak, uma figura de destaque no diálogo ju daico-cristão, coautor da declaração judaica conciliatória “Dabru Emet”, descreve como esta diferença de perspec tiva se traduz nas motivações divergentes no diálogo in ter-religioso. Os cristãos devem conversar com judeus, ele argumenta, porque os judeus legitimam “promessas feitas por meio de Jesus”; mas os judeus devem conversar com

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os cristãos, porque “a existência comunal judaica funciona melhor em um estado liberal-democrático, alimentado por uma cultura religiosa”. Eis, então, a essência da assimetria: Os cristãos buscam nos judeus uma realização espiritual e de autoconhe cimento, enquanto os judeus buscam nos cristãos harmonia cívica.

Face a esta disparidade de propósi to, “Dabru Emet” tenta destacar as se melhanças das duas religiões. O professor Jon Levenson responde que são “precisa mente as características em comum que tornam a dispu ta sobre as diferenças mais inevitável”. Porém, ao criticar a premissa de “Dabru Emet,” Levenson lhe dá crédito demais. A falha mais básica de “Dabru Emet” é a de tentar, em vão, adotar uma voz judaica no diálogo inter-religio so. Cristãos podem querer falar com os judeus para vali dar as “promessas feitas por meio de Jesus”, mas os judeus não estão interessados em retribuir.

Michael Cook, professor de Novo Testamento, observa que, mesmo entre os cristãos conservadores, o apoio americano para Israel representa, antes de mais nada, a defesa de valores americanos.

te (esquerdista) da UC Davis, David Bia le, criticou A Ira de Jonas, uma denúncia esquerdista ao sionismo por dois teólo gos católicos, Rosemary e Herman Rue ther. Biale conclui que a política dos Rue thers é “uma versão liberal do velho triun falismo cristão, esse colonialismo espiritual que presume contar aos judeus quem eles realmente são”.

Por tudo isso, o diálogo religioso pressupõe uma relação que os judeus acham invasiva, só que a atitude judaica conti nua mais ou menos imponderável, porque ninguém cap tou que os judeus simplesmente não têm nada a dizer ao cristianismo. Cristãos querem encontrar judaísmo (e ju deus) para que forneçamos insight ao cristianismo, coisa que não temos para dar. Nossas identidade e teologia pro cedem sem referências ao cristianismo; e quando forçado a ponderá-la, o judaísmo simplesmente a nega. A busca cris tã procura coisas que o judaísmo não pode providenciar.

Embora inconscientes desta assimetria, judeus descon fiam que cristãos motivados por religião, mesmo quando politicamente aliados aos judeus, inevitavelmente percebe rão judeus e judaísmo em sua própria imagem cristã. Dois motivos encorajam esta suspeita.

Em primeiro lugar, a perspectiva cristã do judaísmo se apodera da identidade judaica para seus próprios fins – fins que são, por definição, contrários aos princípios ju daicos. Em março de 2008, a Aliança Evangélica Mundial fez um anúncio de página inteira no New York Times: “Rejeitamos a noção que é enganoso aos seguidores de Je sus Cristo que nasceram judeus continuem a se identifi car como judeus”. Substituindo a dupla negativa (rejeita mos-enganoso) por afirmativas, a frase se lê assim: “Afir mamos a noção que é legítimo seguidores de Jesus Cris to nascidos judeus [isto é: judeus convertidos ao cristia nismo] continuarem a se identificar como judeus”. Des conheço a comunidade judaica que entreteria, muito me nos aceitaria, esta proposição.

Em segundo lugar, os judeus desconfiam que a bene volência cristã se esgotará quando os judeus se recusarem a assumir os valores atribuídos a eles pelos cristãos. A polí tica evangélica pró-Israel só esconde e protela (até o Apocalipse) esta quebra básica, que vai desmascarada com os críticos do sionismo. Em 1989, um historiador eminen

Portanto, apesar de uma breve e passageira controvérsia em torno de sua publicação, em 2000, “Dabru Emet” foi basicamente ignorada pela comunidade judaica. Como de praxe, os cristãos estão mais interessados no documento do que os judeus. Bem ou mal, currículos nos seminá rios rabínicos mal tocam em temas cristãos, segundo um artigo de 2006 pela correspondente de religião da AP, Ra chel Zoll. E iniciativas inter-religiosas rotineiramente en contram a indiferença judaica.

A confusão – bem como a oportunidade – decorre do fato de que, embora os judeus geralmente não participem de bom grado na busca religiosa dos cristãos, eles estão sin ceramente dispostos a se comunicar com a população cris tã. Judeus ativamente procuram caminhos para coalizões sociais e cívicas, alianças para a promoção de justiça social e oportunidades para minimizar o antissemitismo e o pre conceito em geral.

Como o judeu americano no pub em Belfast, os judeus encontram alívio profundo na ausência da discussão religiosa, mas querem mesmo assim partilhar uma bebida com os fregueses.

O Dr. Joshua Holo é Reitor e Professor Associado de História Ju daica no Hebrew Union College – Jewish Institute of Religion, Jack H. Skirball Campus, Los Angeles.
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o guia de um espe C ialista através da mais importante

H istória da t erra ex-correspondente da Associated Press explica como e porque repórteres erram tanto sobre Israel e qual a importância disto

A matéria jornalística “Israel”1

A inda há algo mais a ser dito sobre Israel e Gaza? Os jornais, ultima mente, trouxeram pouca coisa original. Os telespectadores evocam escombros e nuvens de fumaça em seus sonhos. Um artigo recente da revista The New Yorker dedicou um único parágrafo aos horrores na Nigéria, outro aos horrores da Ucrânia, quatro aos genocidas enlouquecidos do ISIS e os cerca de 30 parágrafos restantes a Israel e Gaza.2

Quando a histeria diminuir, acredito que os eventos em Gaza não serão lem brados pelo mundo como particularmente importantes. Eu gostaria de poder dizer que a tragédia das mortes dos palestinos, incluindo os muitos civis, e as dos soldados de Israel mudará algo na história, configurando um ponto de in flexão. Mas isto não ocorrerá.

Esta rodada não foi a primeira nas guerras entre árabes e Israel e não será a última. Ela também pouco diferiu de qualquer outra guerra travada nos últi mos anos por um exército ocidental contra um inimigo semelhante.

A importância duradoura da guerra deste verão não reside, creio eu, na guer ra propriamente dita, mas em como ela foi descrita e a forma como este relato trouxe à tona o velho e deformado padrão de obsessão com os judeus no pensa

Os órgãos de imprensa decidiram que este conflito é mais importante do que os massacres no Congo, mais de 5 milhões de mortos a partir de 2012, ou na República Centro-Africana; ou as guerras por drogas no México, 60 mil mortes entre 2006 e 2012.

Na página anterior, refugiados sírios em um campo em Atmeh, Síria, próximo à fronteira com a Turquia.

matti friedman
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mento ocidental. A chave para entender este ressurgimen to não está entre os webmasters da jihad ou entre os teóri cos das conspirações, nem mesmo entre ativistas radicais. Ela é encontrada entre pessoas educadas e respeitáveis que povoam a indústria internacional de notícias, muitas de las pessoas decentes, alguns ex-colegas meus.

A visão mundial sobre as ações de Israel é o resulta do das decisões tomadas por indivíduos em posições de responsabilidade – neste caso, jornalistas e editores. O mundo não está reagindo aos eventos deste país, mas sim à descrição deles por agências de notícias. A chave para entender a estranha natureza dessa reação encontra -se na prática do jornalismo e, especificamente, em uma falha grave que ocorre nessa profissão – a minha profissão – aqui em Israel.

Neste ensaio vou tentar fornecer alguns instrumentos para extrair o verdadeiro sentido das notícias de Israel. Eu os adquiri na prática. Entre 2006 e o final de 2011 fui repórter e editor da Associated Press (AP), uma das duas

maiores agências de notícias do mundo, em Jerusalém. Vivo em Israel desde 1995 e escrevo sobre ele desde 1997.

Este ensaio não é um levantamento exaustivo dos pecados da mídia internacional, nem uma polêmica tradiciona lista, nem uma defesa das políticas israelenses (eu acredito na importância da “grande” mídia e sou um liberal e um crítico de muitas das políticas do meu país). Vou delinear em primeiro lugar as principais tendências usadas pela mí dia internacional na “história” Israel, que é uma construção narrativa em grande parte ficcional. Em seguida, observa rei o contexto histórico mais amplo da forma como Israel tem sido discutido e explico porque acredito que seja mo tivo de preocupação não apenas para as pessoas preocupa das com assuntos judaicos.

Qual a importância da história Israel?

A melhor medida da importância que uma matéria jor nalística tem para uma determinada organização de notí cias é o quadro do pessoal envolvido. Quando eu era cor

Crianças refugiadas sírias em um campo em Begaa, no Líbano. Ahmad Sabra /
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respondente da AP, a agência tinha mais de quarenta funcionários cobrindo Israel e os territórios palestinos, um número sig nificativamente maior do que a equipe de notícias da AP na China, Rússia ou Índia. Era maior do que o número somado de jornalistas em todos os países onde irrom peram os levantes da “Primavera Árabe”.

Antes da eclosão da guerra civil na Sí ria, a presença permanente da AP naque le país consistia de um único repórter. Ou seja, os editores da AP (e das demais agên cias de notícias – que usualmente mantêm as mesmas tendências) acreditavam que a importância da Síria era quarenta vezes inferior a de Israel. Quando Israel entra em ebulição, como aconteceu em meados de 2014, jornalistas alocados em outros conflitos são trazidos para cá, fazendo com que Israel supere quase todo o resto.

Quem acompanha a cobertura na grande mídia sabe que não há quase nenhuma análise real da sociedade palestina ou de suas ideologias, nem do perfil dos grupos armados palestinos. Os palestinos não são levados a sério como agentes do seu próprio destino.

O que é e o que não é importante sobre a história Israel

O volume de material jornalístico resultante, mes mo quando existe pouco a relatar, dá a este conflito um grande destaque, mesmo quando o custo humano é com parativamente pequeno. Em todo o ano de 2013, por exemplo, o conflito palestino-israelense atingiu 42 vi das, aproximadamente o número mensal de homicídios na cidade de Chicago. Jerusalém, reconhecida interna cionalmente como uma cidade em conflito, teve menos mortes violentas per capita no ano passado do que Port land, Oregon, uma das cidades mais seguras da América. Em contraste, em três anos, o conflito sírio já custou cerca de 190 mil vidas, ou cerca de 70 mil mais do que o número total de mortes desde o início do conflito ára be-israelense, há um século.

Os órgãos de imprensa, no entanto, decidiram que este conflito é mais importante do que, por exemplo, as mais de 1.600 mulheres assassinadas no Paquistão3 em 2013 (sendo 271 após estupro e 193 queimadas vivas), o esfacelamento no Tibete4 pelo partido comunista chinês, os massacres no Congo5 (mais de 5 milhões de mortos a par tir de 2012) ou na República Centro-Africana6, as guerras por drogas no México (60 mil mortes entre 2006 e 20127), além de conflitos que nunca ninguém ouviu falar em lo cais obscuros da Índia8 ou da Tailândia9. Os órgãos de im prensa acreditam que Israel seja a matéria jornalística mais importante da Terra, ou quase isso.

Um repórter que trabalha na impren sa internacional compreende rapidamen te que o principal agente da história Isra el-Palestina é Israel. Quem acompanha a cobertura na grande mídia sabe que não há quase nenhuma análise real da socie dade palestina ou de suas ideologias, nem do perfil dos grupos armados palestinos, nem há investigação do governo palesti no. Os palestinos não são levados a sé rio como agentes do seu próprio destino. O Ocidente decidiu que os palestinos de fato querem um Estado ao lado de Israel, embora qualquer um que tenha passado algum tempo entre os palestinos entende que as coisas são bem mais complexas. Quem são eles e o que eles querem não é importante: a história Israel postula que eles existem apenas como vítimas passivas.

A corrupção, por exemplo, é uma preocupação pre mente para muitos palestinos, mas quando eu e outro re pórter sugerimos um artigo sobre o assunto, fomos infor mados pelo chefe do escritório que a corrupção palestina “não era matéria”, mas a corrupção em Israel sim era, e as sim cobrimo-la extensivamente.

Ações israelenses são analisadas e criticadas, sendo cada falha na sociedade israelense relatada de forma agressiva. Decidi contar num período aleatório de sete semanas (entre 8/11 e 16/12 de 2011) as matérias que saiam de nosso departamento sobre as várias falhas morais da sociedade is raelense, tais como uma legislação proposta para conter os meios de comunicação, a crescente influência dos judeus ortodoxos, as novas colônias não autorizadas, a segregação de sexos e assim por diante. Contei 27 artigos, uma média de um a cada dois dias. Em uma estimativa muito conser vadora, a contagem destas sete semanas foi maior do que o número de matérias críticas sobre o governo e a sociedade palestina, incluindo os totalitários do Hamas, que o nosso departamento publicou nos últimos três anos.

O estatuto do Hamas, por exemplo, exige não apenas a destruição de Israel, mas o assassinato dos judeus, conside rando-os culpados pelas revoluções francesa e russa e pelas duas guerras mundiais; esse estatuto nunca foi menciona do na imprensa, enquanto eu estava na AP, embora o Ha

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mas tenha vencido uma eleição nacional palestina e se tornado um dos atores mais importantes da região.

Um observador poderia imaginar que a decisão do Ha mas de construir uma infraestrutura militar sob as estru turas civis de Gaza é uma matéria jornalística importan te, pois ela indica como o próximo conflito seria travado e a qual custo em vidas. Mas este não foi o caso. Os posi cionamentos do Hamas não são considerados importan tes e foram, portanto, ignorados. Importante foi a decisão de Israel de atacá-los.

Tem havido recentemente muita discussão sobre as tentativas do Hamas em intimidar jornalistas. Aqui qual quer veterano da imprensa sabe que a intimidação é real, e eu a testemunhei enquanto editor de notícias da AP. Durante os combates de 2008-2009 em Gaza, eu pessoalmente suprimi um detalhe importante – de que com batentes do Hamas trajavam roupas civis e estavam sen do considerados como civis na lista de baixas – por cau

sa de uma ameaça ao nosso repórter em Gaza (a políti ca era então, e continua sendo, de não informar aos lei tores de que a matéria é censurada, a menos que a censu ra seja israelense).

Mas não imaginem que os jornalistas tentam cobrir o Hamas e são impedidos por fortes ameaças, pois geralmen te não é assim. Há muitas maneiras de baixo risco para re latar as ações do Hamas, se houver vontade: sob assinatu ra israelense, sem assinatura, citando fontes israelenses. Re pórteres são engenhosos quando querem ser.

O fato é que a intimidação pelo Hamas é considera da irrelevante, porque as ações dos palestinos são irrele vantes: a maioria dos jornalistas em Gaza acredita que seu trabalho é documentar a violência dirigida por Israel con tra civis palestinos. Esta é a essência da matéria jornalística que escrevem sobre Israel. Além disso, muitos jornalistas não falam a língua e têm apenas leve conhecimento sobre o que está acontecendo. Eles são dependentes de colegas

Campo de refugiados próximo a Goma, Kivu, no Congo, onde estão também refugiados sobreviventes no genocídio de Ruanda em 1994. Robert Ford
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palestinos e informantes que ou temem o Hamas ou apoiam o Hamas, ou ambos.

Não é coincidência que, neste confli to, os poucos jornalistas que documen taram os combatentes do Hamas lan çando foguetes de áreas civis não vieram das agências de notícias que contam com operações bem estabelecidas em Gaza.

Eles eram em sua maioria atores avulsos, periféricos: um finlandês recém-chegado, o correspondente de um grupo indiano, alguns outros.10 Pessoas que não haviam recebido o memorando da redação.

O que mais não é importante?

Esta definição permite também que o projeto dos assentamentos, que eu acredito ser um erro moral e estratégico sério da parte de Israel, seja descrito não como o que é – mais um sintoma destrutivo do conflito –, mas sim como a sua causa.

O fato de que recentemente os israelenses elegeram go vernos moderados que buscaram a reconciliação com os palestinos e que foram prejudicados pelos palestinos é con siderado sem importância e raramente mencionado. Isto, muitas vezes, não é descuido e sim uma questão política. No início de 2009, por exemplo, dois colegas meus obti veram informações de que o primeiro-ministro israelense, Ehud Olmert, havia feito uma oferta de paz significativa para a Autoridade Palestina, que os palestinos considera ram insuficiente. Isso não havia sido ainda relatado e teria sido uma das maiores histórias do ano. Os repórteres obtiveram confirmação de ambos os lados e um deles viu um mapa, mas os principais editores do departamento decidi ram não publicar a matéria.

Alguns repórteres ficaram furiosos, mas sem efeito. Nossa narrativa dizia que os palestinos eram moderados e os israelenses cada vez mais extremados. Relatar a ofer ta de Olmert – assim como entrar muito profundamente no assunto Hamas – faria essa narrativa parecer sem sen tido. Fomos instruídos a ignorá-la, e assim se fez por mais de um ano e meio.

Esta decisão me ensinou algo que deve ficar claro para os consumidores da história Israel: muitas das pessoas que decidem o que você vai ver e ler percebem o seu papel não como explicativo, mas como político. A cobertura é uma arma para ser colocada à disposição do lado que quiserem.

Como é modelada a história Israel?

A história Israel está enquadrada nos termos utilizados desde o início da década de 1990: a busca de uma “so

lução de dois Estados”. Aceita-se que o conflito é “entre israelenses e palestinos”, significando que ele tem lugar em terras sob controle israelense – dois décimos por cento do mundo árabe – onde os judeus são maioria, e os árabes, minoria.

O conflito seria mais bem descrito como “árabe-israelense”, ou “judeu-ára be”, isto é, um conflito entre os seis mi lhões de judeus de Israel e os trezentos milhões de árabes em países vizinhos (tal vez “israelense-muçulmano” seria uma descrição ainda mais precisa por levar em conta a inimizade de Estados não árabes, como o Irã e a Turquia, e de 1 bilhão de muçulmanos em todo o mundo).

O rótulo “israelenses e palestinos” permite que os ju deus, uma pequena minoria no Oriente Médio, sejam descritos como o lado mais forte. Ele também inclui o pressuposto de que se o problema palestino for resolvi do de alguma forma o conflito acabará, embora nenhu ma pessoa bem informada acredite que isso seja verdade. Esta definição permite também que o projeto dos assen tamentos, que eu acredito ser um erro moral e estratégi co sério da parte de Israel, seja descrito não como o que é – mais um sintoma destrutivo do conflito – mas sim como a sua causa.

Um observador atento do Oriente Médio não pode deixar de entender que a região é um vulcão e que sua lava é o Islã radical, uma ideologia cujas várias encarna ções moldam esta parte do mundo. Israel, porém, é ape nas uma pequena aldeia nas encostas do vulcão. O Ha mas é o representante local do islamismo radical aber tamente dedicado à erradicação da minoria judaica no mundo muçulmano, assim como o Hezbollah é o repre sentante dominante do islamismo radical no Líbano, o Estado Islâmico, ISIS, é o representante na Síria e no Ira que, o Taliban é o representante no Afeganistão e Paquis tão, e assim por diante.

O Hamas não é, como ele mesmo admite, parte do esforço para criar um Estado palestino ao lado de Israel. Tem outros objetivos abertamente declarados, semelhan tes aos dos grupos listados acima. Desde meados de 1990, mais do que qualquer outro ator, o Hamas destruiu a es querda israelense, subverteu a opinião de israelenses quan

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to a retiradas territoriais, e enterrou as chances de um acor do de dois Estados. Essa é uma maneira precisa de visua lizar a história.

Um observador pode também legitimamente enqua drar a história através da lente das minorias no Oriente Médio, que estão sob intensa pressão do Islã. E perceber que quando as minorias são impotentes, o destino delas é o dos yazidis ou o dos cristãos do norte do Iraque, como acabamos de ver, e quando elas estão armadas e organiza das podem lutar e sobreviver, como no caso dos judeus e (esperamos) dos curdos.

Há, em outras palavras, muitas maneiras diferentes de ver o que acontece aqui. É claro para todos que a paz é ine xistente no Oriente Médio, mesmo em lugares onde os ju deus estão ausentes. Mas os repórteres em geral não con

seguem ver a história de Israel em sua verdadeira perspec tiva. Em vez de descrever Israel como uma das aldeias ad jacentes ao vulcão, eles o descrevem como sendo o vulcão.

A história de Israel é construída de forma a não ter rela ção com os eventos da proximidade, pois o “Israel” do jor nalismo internacional não existe no mesmo universo geo político do Iraque, da Síria ou do Egito. A história de Is rael não é uma história sobre eventos atuais. É algo diverso.

A velha tela em branco

Durante séculos, os judeus apátridas desempenharam o papel de para-raios para o mal entre a maioria da po pulação. Eles eram um símbolo das coisas que estavam erradas. A ganância era ruim? Então os judeus eram ga nanciosos. A covardia? Judeus eram covardes. O comu

Um barco superlotado transporta refugiados do Congo para a Tanzânia.
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nismo é correto? Os judeus eram capitalistas. Você era um capitalista? Neste caso, os judeus eram comunistas. Fracas so moral era o traço essencial do judeu. Foi o seu papel na tradição cristã a prin cipal e única razão pela qual a socieda de europeia tomava conhecimento ou se preocupava com eles.

Como muitos judeus que cresceram no final do século XX em cidades oci dentais amistosas, eu neguei estas ideias como sendo as memórias doentias de meus avós. Uma coisa que eu apren di, e não me sinto sozinho, é que eu fui tolo por isso. Hoje em dia, os ocidentais tendem a acreditar que o racismo, o colonialismo e o militarismo são os ma les atuais. O único país judaico fez me nos mal e mais bem do que a maioria dos países do mundo, e mesmo assim, quando se procura um país que simboli ze os pecados da nossa era pós-colonial, pós-militarista, pós-sonho étnico, o país escolhido é ele.

Entender o que aconteceu em Gaza no último conflito significa compreender o Hezbollah no Líbano, o progresso dos jihadistas sunitas na Síria e no Iraque e os longos tentáculos do Irã. Obriga-nos a entender o que está claro para quase todos no Oriente Médio: a força ascendente nessa parte do mundo não é democracia nem modernidade.

chamados “Manhattan” ou “Seattle” con denam judeus por expulsar o povo nativo da Palestina. Repórteres russos condenam táticas militares brutais de Israel. Jorna listas belgas condenam o tratamento dos africanos em Israel. Quando Israel inau gurou um serviço de transporte para trabalhadores palestinos nos territórios ocu pados da Cisjordânia, há alguns anos, os americanos leram sobre “os ônibus segregados” em Israel. E há muitas pessoas na Europa, e não só na Alemanha, que gos tam de ouvir sobre os judeus acusados de genocídio.

Quando as pessoas responsáveis por explicar o mun do ao mundo, os jornalistas, consideram a guerra dos ju deus como a mais digna de atenção do que qualquer ou tra, quando eles retratam os judeus de Israel como o lado obviamente errado, quando omitem todas as justificati vas possíveis para ações dos judeus e obscurecem a verdadeira face de seus inimigos, o que eles estão dizendo a seus leitores – quer queiram, quer não – é que os judeus são as piores pessoas do mundo. Os judeus são um símbo lo dos males que as pessoas civilizadas são ensinadas des de cedo a abominar. A cobertura da imprensa internacio nal tornou-se um jogo de moralidade, estrelado por um vilão familiar.

Alguns leitores devem se lembrar de que os britânicos participaram da invasão do Iraque em 2003, cujas conse quências já mataram mais de três vezes o número de pes soas que morreram em todos os conflitos árabe-israelenses, e que mesmo assim, na Grã-Bretanha, os manifestantes fu riosamente condenam o militarismo judeu. Pessoas bran cas em Londres e Paris, cujos pais não muito tempo atrás foram expulsos de Rangun ou de Argel, condenam o “co lonialismo” judaico. Os americanos que vivem em lugares

Você não precisa ser um professor de história ou um psiquiatra para entender o que está acontecendo. Tendo se reabili tado com consideráveis dificuldades num minúsculo canto da terra, os descenden tes das pessoas indefesas que foram escor raçadas da Europa e do Oriente Médio Islâmico tornaram a ser o que seus avós eram – o poço no qual o mundo cospe. Os judeus de Israel são a tela em que as pessoas projetam as coisas que odeiam em si mesmas e em seu próprio país. E o instrumento atra vés do qual esta projeção psicológica é executada é a im prensa internacional.

Quem se importa se o mundo recebe uma história errada de Israel?

Porque se abriu uma lacuna entre a forma como as coi sas são e a forma como elas são descritas, formam-se opi niões erradas, adotam-se políticas equivocadas, e os ob servadores são regularmente surpreendidos pelos aconte cimentos. Isto já aconteceu antes. O especialista em assun tos russos Leon Aron escreveu para a revista Foreign Po licy em 2011 que nos anos anteriores à falência do comunismo soviético em 1991 quase nenhum analista ociden tal previu o iminente colapso da União Soviética.11 O im pério havia apodrecido, mas as pessoas que deveriam estar cientes falharam e quando a superpotência implodiu todo mundo ficou surpreso.

E houve também a guerra civil espanhola: “Cedo na vida eu notei que nenhum evento é corretamente relata do num jornal, mas na Espanha eu vi pela primeira vez

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reportagens que não possuíam nenhuma relação com os fatos, nem mesmo a rela ção implícita de uma mentira... Eu vi a história sendo escrita, não em termos do que tinha acontecido, mas do que deve ria ter acontecido de acordo com as dife rentes ‘linhas partidárias’”. Isso foi escrito por George Orwell, em 1942.

Orwell não desceu de um avião na Ca talunha, não posou ao lado de um canhão Republicano, ou foi filmado enquanto re petia com confiança o que todo mundo estava dizendo. Ele não descreveu o que qualquer idiota podia ver: armamentos, escombros, cor pos. Ele mirou além das fantasias ideológicas de seus pares e entendeu que o importante não é necessariamente visí vel. O que ele viu na Espanha não era realmente a Espanha, mas sim um choque dos sistemas totalitários alemão e rus so. Ele sabia que estava testemunhando uma ameaça para a civilização europeia, e ele escreveu isso, e ele estava certo.

Desde meados de 1990, mais do que qualquer outro ator, o Hamas destruiu a esquerda israelense, subverteu a opinião de israelenses quanto a retiradas territoriais e enterrou as chances de um acordo de dois Estados.

nota de rodapé – que, contudo, carrega uma carga emocional fora do comum.

Muitos no Ocidente preferem clara mente o velho conforto de analisar as fa lhas morais dos judeus e o sentimento fa miliar de superioridade que isso lhes traz do que enfrentar uma realidade infeliz e confusa. Eles se convenceram de que tudo isso é problema dos judeus e que deles é a culpa. Mas os jornalistas se envolvem nessas fantasias ao custo de sua credibilida de e da credibilidade de sua profissão. E, como Orwell nos diria, o mundo entre tém fantasias por sua conta e risco.

Entender o que aconteceu em Gaza no último con flito significa compreender o Hezbollah no Líbano, o progresso dos jihadistas sunitas na Síria e no Iraque e os longos tentáculos do Irã. Exige descobrir por que países como Egito e Arábia Saudita agora se percebem mais per to de Israel do que do Hamas. Acima de tudo, obriga-nos a entender o que está claro para quase todos no Orien te Médio: a força ascendente nessa parte do mundo não é democracia nem modernidade. É uma ramificação do Islã, que assume formas diferentes e por vezes conflitan tes, disposta a empregar violência extrema visando unir a região sob seu controle e confrontar o Ocidente. Aque les que compreenderem este fato serão capazes de olhar em volta e ligar os pontos.

Israel não é uma ideia, nem um símbolo do bem ou do mal, nem ainda um pretexto para parecer liberal em dis cussões. É um país pequeno numa parte assustadora de um mundo que se torna cada vez mais assustador.

Sua situação deve ser tida como preocupante e com preendida em seu contexto e na devida proporção. Israel não é uma das matérias jornalísticas mais importantes do mundo ou até mesmo do Oriente Médio; qualquer que seja a situação na região na próxima década, ela terá tanto a ver com Israel como a Segunda Guerra Mundial teve a ver com a Espanha. Israel é um pontinho no mapa – uma

Matti Friedman é jornalista e escritor. Já trabalhou como repórter no Líbano, Marrocos, Cairo, em Moscou e Washington, além de cobrir os conflitos em Israel e no Cáucaso. Foi correspondente da Asso ciated Press, especializado em religião e arqueologia, e contribui com o Jerusalem Report e o Times of Israel. É autor do livro The Aleppo Codex (2012). Ele cresceu em Toronto e vive em Jerusalém. Traduzido por Daniel Kovarski.

Este texto foi publicado orginalmente em 26 de agosto deste ano na revista eletrônica Tablet12, que gentilmente autorizou sua tradu ção e publicação em Devarim.

Notas

1. Nota do tradutor: no restante do texto a expressão “matéria jornalística ‘Israel’” será referida como história Israel em itálico, que é mais fiel ao original em inglês, “the Israel story”, significando o tema, a matéria, o assunto jornalístico sobre Isra el.

2. http://www.newyorker.com/magazine/2014/08/04/aflame-2

3. http://nation.com.pk/national/07-Mar-2014/1600-pakistani-women-murde red-370-raped-in-2013

4. http://www.washingtonpost.com/world/asia_pacific/china-promotes-mixed-mar riages-in-tibet-as-way-to-achieve-unity/2014/08/16/94409ca6-238e-11e4-86ca -6f03cbd15c1a_story.html

5. http://www.theguardian.com/commentisfree/2014/aug/17/congo-reporting-me dia-war-anjan-sundaram

6. http://www.newrepublic.com/article/117519/central-african-republic-conflict -africas-bloodiest-fight

7. http://edition.cnn.com/2013/09/02/world/americas/mexico-drug-war-fast-facts/

8. http://www.geneva-academy.ch/RULAC/current_conflict.php?id_state=107

9. http://www.geneva-academy.ch/RULAC/current_conflict.php?id_state=218

10. http://www.tabletmag.com/scroll/181454/video-shows-hamas-firing-rocket -from-residential-area

11. http://www.foreignpolicy.com/articles/2011/06/20/everything_you_think_you_ know_about_the_collapse_of_the_soviet_union_is_wrong

12. http://www.tabletmag.com/jewish-news-and-politics/183033/israel-insider-guide

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Ken Brown
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e m Bus C a de r as H id Bey

O Estado judeu de Herzl estava fundado no conceito de que todos os seus habitantes desfrutavam de igualdade de direitos, inclusive o direito ao voto. Esses direitos eram estendidos não apenas aos árabes, mas também às mulheres, que ainda não tinham direitos iguais nas democracias liberais.

Na literatura judaica do fim do século 19 e início do século 20 é possí vel verificar um olhar romântico e de fascínio que o Ocidente exercia sobre o Oriente, exemplificado pela imagem do árabe e do mundo islâmico nos textos de seus principais autores.

O conto “New Year for Trees” (Ano Novo das Árvores), de 1891, escrito por Ze’ev Yavetz, inaugura um novo tipo de jovem judeu em nossa literatura. Dis solve a imagem tradicional do pálido e frágil menino de Yeshivá, simbolizan do a transição da passividade e resignação da diáspora para a assertividade sio nista. Esta nova juventude judaica, impulsionada pelo desejo de retorno ao seu “lar espiritual”, estava preparada para qualquer tipo de batalha.

Nesta nova terra, além de lidar com a poderosa força da natureza, o clima e as doenças, deveriam se relacionar com outros povos que ali residiam. Havia um perigo iminente, tema que integra todos os livros que narram a luta do judeu na construção de seu lar nacional. As descrições de emboscadas árabes contra via jantes e a explosão de conflitos que havia na região permearam a literatura ju daica da época. Isso era muito mais do que um reflexo do conflito nacional: era a realidade da vida em uma terra menos refinada que a dos Estados Nacionais da Europa, sob o corrupto domínio do Império Otomano, onde os habitantes de qualquer nação ou religião nunca estavam a salvo de um ataque repentino.

Em 1902, Theodor Herzl escreve uma novela em alemão chamada Altneu land (A Velha Nova Terra). Esta leitura é indispensável para compreender a vi são e o desejo do sionismo político no que tange as populações árabes e a rela ção entre os povos no local de estabelecimento do futuro Estado judeu.

marcelo treistman
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A história descreve uma utópica sociedade em Israel no ano de 1923. A Pa lestina floresce graças às riquezas econô micas e culturais trazidas pelos imigran tes judeus. É criada uma sociedade mo delo, onde há cooperação entre todos os habitantes que desfrutam de plena igual dade: judeus e árabes, nativos e novos imigrantes.

Herzl estava convencido de que o cres cimento econômico transformaria a so ciedade árabe de modo que possíveis pro blemas advindos de um desejo nacional deste povo sobre a região seria algo im pensável. Os árabes venderiam suas terras de bom grado à “nova sociedade” e se riam aceitos como cidadãos de pleno di reito. Eles seriam gratos aos judeus pela melhoria do seu padrão de vida.

Trilhando o caminho de Herzl, Chaim Weizmann, então representante do movimento sionista, viaja a Londres para assinar um acordo com Emir Faisal, com o objetivo de regular as relações entre o movimento sionista e o reino árabe que se organizavam após a Primeira Guerra

Mundial.

banas de barro surrado impróprias para um chiqueiro. Os bebês não tinham roupas, esta vam sem cuidados e cresciam como animais selvagens. Agora, tudo isto mudou. Os judeus drenaram os pântanos, construíram sa neamento e plantaram eucaliptos restauran do a terra, tudo com a ajuda de fortes ope rários locais que receberam salários justos”. Em seguida, Rashid Bey leva alguns visitantes a um passeio por uma aldeia árabe, onde avistam um minarete de uma pequena mesquita que rasga o horizon te, e explica: “ Essas pessoas estão muito mais feli zes agora. Elas possuem uma vida honesta, seus filhos são saudáveis e eles estão indo à escola. Nem a religião nem os costumes an tigos estão prejudicados, ao contrário, eles só foram beneficiados”.

Um dos protagonistas árabes do romance, Rashid Bey, é um engenheiro nascido em uma família rica que havia lucrado com vendas de terras ao establishment judaico. Em um dos capítulos, quando perguntado: “O que vai aconte cer com todos os fallahs (agricultores) que não têm terra para vender?”, ele responde: “Quem não tem nada a perder, cla ramente só tem a ganhar. Veja tudo o que eles ganharam: emprego, bons salários, uma vida melhor. Não havia nada mais patético e miserável como a visão de uma aldeia árabe na Pa lestina no final do século XIX. Os agricultores viviam em ca

Um dos aspectos mais fascinantes do livro é a descri ção da campanha eleitoral que ocorria em 1923. A campanha estava centrada no futuro dos direitos civis dos ha bitantes não judeus do país. Ao contrário do que erronea mente se diz do sionismo – que este havia ignorado a exis tência de árabes no país –, o livro revela não apenas uma consciência da existência da população árabe; o Estado ju deu de Herzl estava fundado no conceito de que todos os seus habitantes, independentemente de religião, raça ou gênero, desfrutavam de igualdade de direitos, inclusive o

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direito ao voto. Esses direitos eram estendidos não apenas aos árabes, mas também às mulheres; é sempre bom lembrar que, mesmo na democracia liberal onde vivia o autor, não lhes era permitido o voto.

No livro, não apenas os árabes do país têm o direito de votar como alguns ocu pam posições-chave dentro de partidos políticos. Um novo partido surgido na campanha de 1923 é dirigido pelo an ti-herói da trama, um homem que ha via chegado recentemente ao país e que ria anular a cidadania e rescindir o direi to de voto dos não judeus. Herzl brinda o fundador deste partido com o significativo nome Geyer (que em alemão signifi ca abutre). O argumento dele era simples: este é um Esta do judeu, e só os judeus devem ter o direito à cidadania. Outros podem permanecer e serão tolerados como me ros residentes, mas não merecem direitos políticos iguais.

Em 1925, Martin Buber em conjunto com diversos intelectuais judeus criou um movimento denominado

“Brit Hashalom”, que defendia a criação de um Estado binacional em que judeus e árabes gozassem de plenos direitos sob o Mandato Britânico.

Bey” – ou seja – a busca por uma lide rança árabe que compreenda como bené fica a chegada dos judeus à terra de seus ancestrais e, pautando-se nos valores de mocráticos e liberais, se comprometam a desenvolver a região em conjunto com o nosso povo.

“Em busca de Rashid Bey” – O acordo Weizmann-Faisal

Trilhando o caminho de Herzl, Chaim Weizmann – então representante do movimento sionista – viaja a Londres para assinar um acordo com Emir Faisal, filho do Grande Sharif de Meca Hussein bin-Ali, com o objetivo de regular as relações entre o movimento sionista e o reino árabe que se organi zavam após a Primeira Guerra Mundial.

Enquanto Geyer reivindica a exclusividade dos direitos civis para os judeus, os liberais justificam a necessidade da igualdade de direitos para os habitantes árabes, com base em princípios universais, liberais e principalmente nas fon tes judaicas. Depois de uma eleição bem disputada, os li berais sagram-se vencedores. Geyer, derrotado e com ver gonha, acaba deixando o país.

Em Altneuland, Herzl combina uma sociedade ide al com um realismo político inigualável. Como alguém que tinha visto de perto o racismo antissemita, ele com preendia muito bem que os judeus também poderiam se tornar racistas em seu Estado. Entretanto, em contraste com a Europa, onde o racismo foi vitorioso, na Israel dos sonhos de Herzl os princípios da igualdade e do liberalis mo ganharam o cenário político. Suas crenças foram en raizadas na ideia histórica de “progresso”, que significa va o avanço da humanidade em direção a um futuro me lhor através da sabedoria e inteligência. Em termos prá ticos, Herzl acreditava que a construção de pilares demo cráticos e do desenvolvimento proporcionado pela tecno logia nos ajudaria a convencer os árabes a receber o sio nismo de braços abertos.

No capítulo da longa história do povo judeu em que reconquistamos o direito à nossa autonomia judaica e ao seu autogoverno, Herzl inaugura a nossa “busca por Rashid

As circunstâncias do acordo, citado por alguns his toriadores, era a liderança que o rei possuía dentro do mundo árabe em decorrência da promessa britânica de que uma vasta porção de terra seria concedida ao seu rei nado após a guerra. Ao mesmo tempo em que a Declara ção Balfour havia sido divulgada e existia a promessa de que os britânicos “viam com bons olhos o estabelecimen to do lar judaico na Palestina” também crescia o entendimento de que a terra pertencente aos ingleses seria divi dida entre judeus e árabes.

As principais cláusulas do acordo pareciam saídas do romance de Herzl: ficava determinado que as futuras rela ções seriam baseadas na compreensão e cooperação mútua entre árabes e judeus. A imigração judaica para a Palesti na seria incentivada devendo-se manter o status de agricul tores árabes e suas propriedades nas fronteiras israelenses. Garantia a liberdade de religião e controle muçulmano dos lugares santos para o Islã. Consentia com o envio de uma delegação sionista à Palestina para a realização de um estu do acerca das possibilidades econômicas do país com reco mendações que ajudariam o seu desenvolvimento.

Faisal anexou ao documento uma declaração escrita a mão condicionando a validade do acordo ao cumprimen to das promessas inglesas. Ao final da guerra, uma decisão na conferência de paz negou a independência e o controle do Emir sobre a vasta região que ele desejava. O acordo Faisal-Weizmann sobreviveu apenas alguns meses.

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Em 1925, Martin Buber em conjunto com diversos in telectuais judeus criou um movimento denominado “Brit Hashalom” que defendia a criação de um Estado binacio nal em que judeus e árabes gozassem de plenos direitos sob o Mandato Britânico. Os integrantes do movimento com preendiam a importância nacional para o desenvolvimen to e preservação da cultura hebraica ao mesmo tempo em que almejavam criar um entendimento histórico baseado em um denominador comum entre as culturas que ocu pavam a região.

O objetivo do movimento era muito claro: pavimentar um caminho de entendimento entre judeus e árabes para uma vida em comum na Terra de Israel, com base em direitos políticos plenos aos dois povos e na cooperação mú tua em prol do desenvolvimento do país.

O grupo sustentava que eram os únicos a seguir a ver dadeira corrente sionista, uma vez que a literatura de Herzl falava explicitamente sobre a coexistência entre judeus e árabes em Israel. O grupo sugeriu que o sionismo deve ria retornar à sua verdadeira fonte ao acusar os líderes do Yishuv da época de utilizar-se das palavras de Herzl para estabelecer um lar nacional judaico, ignorando o restan te de sua visão em relação ao contexto local e os distintos povos que viviam na região.

Após a decisão do Congresso Sionista que rejeitou a possibilidade de um Estado binacional, declarando o seu desejo de estabelecer um Estado judaico soberano e independente, que preservaria direitos políticos plenos a todos os seus cidadãos, o movimento foi lentamente dissolven do-se e acabou por desintegrar-se no início dos anos 30. Ainda hoje é possível ouvir vozes isoladas advogando em prol deste ideal.

“Em busca de Rashid Bey” – Os encontros de Golda Meir com o Rei Abdullah

Em 1947 os britânicos anunciaram sua intenção de deixar a Palestina, delegando o futuro do país para a Or ganização das Nações Unidas. Como a Assembleia-Geral da ONU se preparava para votar a partilha da Palestina em dois Estados: árabe e judeu, Golda Meir foi enviada em uma missão clandestina para negociar pessoalmente com o rei Abdullah da Transjordânia. Em uma reunião em no vembro de 1947, o rei declarou-se um aliado dos sionistas

e prometeu abster-se de hostilidades contra o Estado judeu. No entanto, seis meses depois, rumores chegaram à liderança do Yshuv que Abdullah havia se integrado à Liga Árabe que planejava um iminente ataque a Israel.

Quatro dias antes da Declaração de Independência de Israel, em maio de 1948, Golda Meir partiu novamente ao encontro de Abdullah, para uma reunião em Amã. Ela viajou disfarçada como uma autêntica mulher árabe. Gol da insistiu para que o rei não se juntasse a outros países árabes no ataque planejado ao futuro Estado judaico, ten tando convencê-lo das enormes potencialidades entre os dois países. Desta vez, o rei foi menos caloroso. Ele admi tiu que os judeus eram seus únicos aliados na região, mas disse que suas mãos estavam atadas. Abdullah pediu a ela para não se apressar para proclamar um Estado. Meir respondeu: “Nós estivemos esperando por 2.000 anos. Será que estamos muito apressados?”.

Ao final do encontro, o rei ofereceu aos judeus o status de uma minoria protegida em uma região na Jordânia. Meir, sem surpresa, rejeitou a oferta.

“Em busca de Rashid Bey” – Rabin e Arafat no acordo de Oslo

Itzhak Rabin chegou ao poder nas eleições realizadas em junho de 1992, depois de haver prometido um acor do com os palestinos dentro de seis a nove meses após a sua vitória. No final de 1992 e em 1993 o chanceler Yos si Beilin iniciou conversações secretas, primeiro em Lon dres e depois em Oslo, realizadas diretamente com a lide rança da OLP. As conversações avançaram de forma pro gressiva até a sua cristalização no acordo assinado entre o primeiro-ministro israelense e o líder da Autoridade Pales tina Yasser Arafat.

O acordo compreendia o reconhecimento mútuo das narrativas históricas de cada povo sobre a região e estabe lecia uma divisão do território. Incluía ainda cooperação econômica e tecnológica para o progresso da região.

A aceitação dos acordos de Oslo, incluindo conversa ções diretas com a liderança da OLP, foi uma mudança im portante da política israelense, que até então havia se recusado a sentar para dialogar com organizações conside radas terroristas que clamavam pela destruição de Israel.

A possibilidade de um processo de paz definitivo com os palestinos criou uma profunda ruptura na sociedade is raelense. Manifestações agressivas contra Rabin foram rea

“Em busca de Rashid Bey” – Martin Buber e o Brit Hashalom
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lizadas por políticos de direita, mas o primeiro-ministro, com muito jogo de cin tura, conseguiu aprovar o acordo peran te o Knesset. A sociedade israelense apro vava o gesto de Rabin em direção a paz e tentava reconhecer em Arafat a personifi cação do herói árabe de Altneuland.

No dia que o acordo foi assinado, foi transmitida pela TV jordaniana a men sagem em que Arafat se dirigia em árabe para o povo palestino. Ele declarava o su cesso de seu encontro com Rabin: Yasser Arafat afirmou então que os Acordos de Oslo eram apenas uma parte do “progra ma de etapas” da OLP para a eliminação do sionismo. Seis meses após a assinatura do acordo, Arafat discursou em Johanesburgo clamando para que as nações islâmicas se unissem em uma “jihad” para libertar Jerusalém. O herói se revelava então o perfei to anti-herói do romance de Herzl.

Os acordos de Oslo compreendiam o reconhecimento mútuo das narrativas históricas de cada povo sobre a região e estabelecia uma divisão do território.

Incluía ainda cooperação econômica e tecnológica para o progresso da região.

rava que o sionismo se constituísse como “uma força pioneira contra a barbárie”. Em nossos dias, tal declaração seria facil mente taxada de “politicamente incorre ta”. Mas definitivamente este não é o caso. Trata-se de uma percepção comum para o contexto vivido pelo autor, que enxer gava o progresso que o iluminismo euro peu poderia trazer aos Estados governa dos pelo Islã.

Nos texto acima, tentou-se destrin char apenas alguns exemplos e momen tos em que a liderança e a sociedade ju daicas buscavam o “Rashid Bey” na so ciedade árabe. Infelizmente, até o presente momento, o realismo político da região tem se mostrado uma barreira intransponível ao futuro do Estado judeu desejado por Herzl.

O final da história todos conhecemos. Rabin foi assas sinado por um extremista judeu, mas seus sucessores con tinuaram comprometidos com o processo de paz. Do lado árabe, as posições de Arafat e seus sucessores também se mantiveram inalteradas – uma face pacífica em inglês e uma beligerante em árabe. O processo não logrou a paz.

Conclusão

Herzl acreditava que a força oculta por trás da ideia sionista era servir como uma ferramenta de evolução que levaria os avanços e liberdades do mundo ocidental para todo o Oriente Médio. Em suas próprias palavras, ele espe

Em Altneuland, Herzl cria um lema que seria repetido por muitos e muitos anos: “Se quiseres, não será uma len da”. Como o livro foi escrito originalmente em alemão, não sabemos até os dias de hoje se o autor direcionou esta frase aos leitores judeus ou se incluiu os árabes em sua exortação. Tenho a percepção de que no dia em que a so ciedade árabe aderir aos valores iluministas e democráticos o desejo de paz na região deixará de ser uma antiga lenda para se transformar na “Velha Nova Terra” de progresso, cooperação e igualdade perante a lei.

Marcelo Treistman é advogado e trabalha com tecnologia em Is rael, onde vive desde 2007. É ex-boger da Chazit Hanoar do Rio de Janeiro.

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o partido t ra B al H ista ainda tem relevân C ia?

o deputado Yechiel (hilik) bar assegura que sim

Nós, do Partido Trabalhista, promovemos a solução com dois Estados, estamos buscando a única solução possível. Aquela que mantém vivo o Estado Sionista, sem concomitantemente aniquilar o Estado Palestino.

Hilik Bar é o Secretário-Geral do Partido Trabalhista de Israel (Avo dá) e foi eleito deputado nas eleições de 2013, sendo um dos Vice -Presidentes do Parlamento de Israel (Knesset). Na Knesset, ele está à frente do grupo para a promoção de uma solução para o conflito israelense-palestino, além de fazer parte do Comitê sobre o Status da Mu lher e Igualdade de Gênero, entre outros. Bar esteve em visita ao Brasil, onde conheceu comunidades judaicas no Rio e em São Paulo, e manteve contato com políticos e membros do Congresso brasileiro. Nesta visita, concedeu uma entrevista exclusiva para a Devarim, que foi representada por Daniel Plattek, Felipe Kaufman Gorodovits e Ricardo Gorodovits.

Devarim – Primeiro, gostaríamos que contasse um pouco de sua biografia, e em especial de sua trajetória política.

Hilik Bar – Eu me envolvi na política desde muito cedo. Nasci em Tsfat, numa casa onde se respirava política, meu pai encabeçava o Partido Trabalhis ta na cidade. Fui chanich (educando) e madrich (monitor) no movimento ju venil Hanoar Haoved Vehalomed (equivalente ao Habonim Dror em Israel) e, ao sair do Exército, ingressei na vida política estudantil na Universidade Hebraica, dentro do diretório acadêmico, onde fui eleito presidente após um ano de militância. Um ano depois fui eleito presidente da organização estudantil na cional do Partido Trabalhista, e fui sucessivamente me candidatando e ocupan do várias posições dentro do Partido – vereador em Jerusalém, presidente de comitês na Câmara de Vereadores em Jerusalém (Turismo e Relações Exterio

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res), presidente da bancada do Partido Trabalhista naque la Câmara por cinco anos, e Secretário de Turismo de Je rusalém. Em 2010 fui eleito Secretário-Geral do Partido Trabalhista nacional e, dois anos depois, fui eleito para o Knesset, onde estou e continuo também como Secretário -Geral do Partido Trabalhista.

Devarim – O que o trouxe ao Brasil? Quais foram os re sultados desta viagem?

Hilik Bar – Duas coisas me motivaram a vir até a América do Sul: primeiro, o desejo de conhecer o Rio de Janeiro, São Paulo e Buenos Aires. Além disto, o desejo de conhecer o nível de consciência política dos membros não judeus das comunidades parlamentares a que tive acesso para poder levar a elas a nossa visão da realidade israelen se, explicar que há mais de uma voz em Israel, mostrar de que maneira nós, do Partido Trabalhista, encaramos o con flito israelense-palestino, e trazer a eles a voz da esquerda e centro-esquerda israelenses, mostrando que, ao promo

vermos a solução com dois Estados, estamos buscando a única solução possível. Aquela que mantém vivo o Estado Sionista, sem concomitantemente aniquilar o Estado Palestino. Não nos cabe controlar o destino de outro povo, e se viermos a ter um único Estado, e se todos os palestinos vierem a ser cidadãos israelenses, será o fim do sonho sio nista. Esta solução nos permitirá mais investimentos em educação e na nossa economia, não apenas em segurança. Esta é a visão estratégica do Partido Trabalhista para a paz e é importante trazer esta visão para o universo político do Brasil e da Argentina.

Devarim – A partir da solução de dois Estados, como vê o papel das minorias em Israel? E ainda, também, de eventuais minorias judaicas no futuro Estado Palestino?

Hilik Bar – As minorias que vivem em Israel têm uma vida muito boa e muito igualitária. Beduínos, drusos, ára bes-israelenses e outros correspondem a 20% de nossa po pulação e estão totalmente inseridos em todas as esferas da

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sociedade e em todas as profissões – medicina, engenharia, magistério, high-tech e por aí vai, têm acesso a tudo o que a po pulação judaica também tem. Temos ára bes no Parlamento e isto muito nos en vaidece, apesar de muitas vezes batalhar mos com eles quanto às decisões a serem tomadas. Há 1.600.000 árabes vivendo democraticamente em Israel, com mui to mais liberdade de dizer o que pensam do que em outros lugares do Oriente Mé dio, o que é um grande motivo de orgu lho para nós. Na solução dos dois Esta dos, aqueles que já são cidadãos israelen ses continuarão como tal. A questão é o que fazer com os que não são! Advogamos que venham a ser cidadãos pales tinos. Sobre a questão quanto aos judeus como minoria, fui o primeiro político a pleitear que os judeus que vives sem no futuro Estado Palestino passassem a ser uma mi noria reconhecida como parte da solução, já que estes ju deus em minoria deveriam ter o direito de escolher onde viver. Deveriam poder escolher uma cidadania, ou ate po der optar pela dupla cidadania após termos um acordo. Não é aceitável que o futuro Estado Palestino não tenha residentes ou cidadãos judeus se o vice-versa é verdadeiro. Com isso, os colonos poderiam manter os investimentos e esforços que fizeram em termos econômicos, e ser par te da sociedade local. Veja que, na saída de Gaza, não ape nas não ficaram colonos, como a maior parte da infra-estrutura existente foi destruída, o que não gerou qualquer ganho para nenhum dos lados. Se os judeus podem viver como minoria no Brasil ou na Argentina, porque não po deriam viver da mesma forma num Estado vizinho a Isra el? Aqueles que optarem por viver em Israel poderão ser compensados pelo que deixaram para trás, mas os que pre ferirem ficar devem poder fazê-lo com segurança de que ali poderão ter vidas normais como qualquer outro cidadão.

Fui o primeiro político a pleitear que os judeus que vivessem no futuro Estado Palestino passassem a ser uma minoria reconhecida como parte da solução, já que estes judeus em minoria deveriam ter o direito de escolher onde viver.

o episódio da morte de três jovens isra elenses sequestrados e da retaliação que matou um jovem árabe de forma igual mente brutal.

Hilik Bar – Lamento a decisão e a partida dele. Não concordo, mas é uma decisão pessoal. Quem grita “morte aos árabes” é igual a quem grita “morte aos ju deus”. Racismo existe em toda parte, nós o encontramos em Israel, na Palestina e o Sr. Kashua também vai encontrá-lo nos Estados Unidos. São pessoas de mentali dade estreita, que amam odiar o diferente. É odioso em toda parte e deve ser comba tido de todas as maneiras. O racismo me envergonha, mas é preciso ter em mente que ele não permeia todos os seg mentos da sociedade israelense como não permeia todos os segmentos de nenhuma sociedade, e sim existe em fo cos extremistas. Exemplo disto é o grupo extremista ISIS, que não representa toda a sociedade árabe e vem sendo combatido por países árabes moderados. Temos que fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para combater o racis mo, onde quer que floresça, e nós, no Oriente Médio, ára bes e judeus, deveríamos fazê-lo em conjunto. Mas acredi to que o israelense médio tem o hábito da tolerância e pro vavelmente o sr. Kashua poderia combater o racismo per cebido por ele estando em Israel, como todo cidadão isra elense deve fazer. Vejo, por exemplo, o trabalho educacio nal do Habonim Dror, de educação para a paz, como algo importante de ser feito.

Devarim – Quando entrevistamos Mira Awad (Devarim 13 – dezembro de 2010) perguntamos a ela se se sentia segura em Israel e ela respondeu que, como cidadã, conta com a polícia israelense para protegê-la. Você concorda?

Devarim – Sayed Kashua, famoso escritor israelense de origem árabe, que escreve em hebraico, muito popular em Israel e que residia em Jerusalém, decidiu deixar para sempre o país e foi para os Estados Unidos, onde havia recebido um convite para lecionar durante um período. Afirma não poder viver em um país onde ouviu as pessoas gritarem “morte aos árabes” nas ruas de Jerusalém, após

Hilik Bar – Certamente. Lembre-se que, quando pela primeira vez em nossa história, ocorreu o assassina to de um primeiro-ministro, quem matou Itzhak Rabin foi um terrorista israelense, e não um terrorista árabe. Não estou menosprezando o terrorismo árabe, não me entenda mal! Mas o terror deve ser combatido com to dos os meios ao nosso alcance, qualquer que seja sua ori gem. Precisamos investir na educação para a paz se qui sermos acabar com o terror. Esse é o único caminho para a convivência pacífica.

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Devarim – Mudando de assunto, vamos falar um pou co de política israelense. O Avodá esteve no poder por 30 anos e agora está reduzido a 15 cadeiras no Parlamento de 120. Muitas de suas bandeiras parecem ter sido toma das por outros partidos, como por exemplo a Halutziut, que hoje se identifica mais com o Habait Haihudi (partido nacionalista religioso), ou a luta no campo da paz, que parece ter passado às mãos do Meretz (partido à esquer da do Avodá). O que houve? Você vê o Avodá ocupando um papel de destaque no futuro de Israel? E como alcan çar este lugar de influência efetiva no país?

Hilik Bar – Foi o Avodá quem estabeleceu a Halut ziut, não esqueça! Depois, o Partido Trabalhista já provou ser o único Partido realmente eficiente quando se fala em fazer a paz acontecer – desde Golda Meir, com o Egito, mesmo considerando Begin, com a Jordânia, Oslo. Mui tos falaram, nós fizemos. Nós perdemos nosso principal lí der à época buscando alcançar a Paz! O nosso maior erro, entretanto, foi que, após o assassinato de Rabin, fizemos alianças com a direita, em governos liderados pela direita. Pensamos que ao fazer esta aliança estaríamos caminhando em direção ao centro, traríamos justiça social à nossa eco nomia, mas estávamos errados, deveríamos ter continua do como oposição. Por isto, antes desta última eleição nos comprometemos a continuar como oposição. Hoje, Avo

dá é oposição e vai continuar sendo a liderança dessa opo sição até que possa liderar o país. Netaniahu literalmente implorou por uma coalizão e dissemos não. Nós podemos apoiar o governo sempre que ele trouxer à tona propostas com as quais concordamos, mas seguiremos na oposição. Você disse que perdemos bandeiras mas não é verdade, isso apenas parece verdade porque essas bandeiras estavam es condidas pela nossa participação nas coalizões à direita nas quais participamos no passado. E estarão mais à mostra em nossa atuação independente. Não se pode misturar obje tivos como não se pode misturar carne e leite na mesma refeição [aludindo metaforicamente às regras da cashrut], vem daí a indigestão política que nos aflige há duas déca das. Estou seguro de que a geração jovem do Avodá, na qual me incluo, não vai desistir e repetir os erros do passa do, nem que o processo leve dez ou vinte anos, mas vamos levar o Avodá novamente à liderança do país, ao governo, com as nossas próprias bandeiras mais uma vez.

Devarim – Já que trouxe o tópico da religião, qual é a ligação entre o Avodá e o movimento Reformista?

Hilik Bar – Talvez o partido com a melhor possibili dade de ligação com o movimento Reformista seja mesmo o Avodá. Membros do movimento reformista são atuantes dentro do Partido Trabalhista e vice-versa, como Gilad Ka

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riv, que vocês conhecem bem. Me parece claro que temos a mesma visão de que o judaísmo não é monopólio de um grupo e que existe mais de uma forma de ser ju deu, e de seguir a religião judaica. O Avo dá está trabalhando e pretende seguir tra balhando para que a legislação seja mais igualitária quanto aos aspectos religiosos, o que fazemos em conjunto com o Me retz, com o Yesh Atid e outros, ainda que não pareça certo que teremos sucesso na presente legislatura, ainda dominada pe los partidos de direita. O Likud não vê o movimento Reformista com olhos amis tosos. Como eu disse ontem na sinagoga (na ARI), para o judeu secular em Is rael as alternativas parecem ser a seculari dade ou a ultraortodoxia, e a Reforma se ria uma ótima alternativa. Se eu tivesse conhecido o juda ísmo reformista quando era criança em Tsfat, eu provavel mente seria hoje mais religioso do que me tornei. Mas o movimento Reformista erra ao investir muito na diáspo ra e ainda menos do que deveria em Israel – o judeu isra elense secular ainda sabe muito pouco sobre o movimen to Reformista. Este crescimento permitiria a um grande grupo de judeus, hoje seculares, se identificarem com a re ligião, tornar este modelo parte da cultura nacional. Po rém, muitas das dificuldades existentes derivam do po der político que ortodoxos e ultraortodoxos têm. O movimento Reformista também precisa aumentar o seu poder político. Hoje, casamentos e bnei-mitsvot pelo movimen to Reformista não têm peso legal em Israel, só são consi derados legalmente válidos os do movimento ortodoxo. Este foi um dos motivos que levaram o rabino Gilad Ka riv, líder da WUPJ israelense [World Union for Progressi ve Judaism, entidade que congrega sinagogas reformistas de todo o mundo e tem sua sede mundial em Israel], a fi liar-se ao Avodá e candidatar-se ao Knesset. Não foi elei to, mas vai continuar tentando, eu mesmo o tenho enco rajado a isso. E é preciso que outros sigam o exemplo dele. Assim evitaremos que casais cuja opção não é a ortodoxia viajem para se casar em Chipre ou qualquer outro lugar.

Quem grita “morte aos árabes” é igual a quem grita “morte aos judeus”. Racismo existe em toda parte, nós o encontramos em Israel, na Palestina e nos Estados Unidos. O racismo me envergonha, mas ele não permeia todos os segmentos da sociedade israelense nem de nenhuma sociedade.

laico, por outro, não se mudará o status quo sem entrarmos na política...

Hilik Bar – Só se pode mudar a polí tica com política e legislação, assim como só se pode cortar um diamante com ou tro diamante. Isso não vai ocorrer em um ano ou dois, mas é preciso persistir nessa direção. Há a separação entre Estado e religião e há a separação da religião e da política. Os ortodoxos entraram na po lítica para assegurar que a religião faria parte do Estado. Pessoas como eu, que sou secular, e aquele que é um judeu re ligioso reformista devem buscar na polí tica os meios de assegurar esta separação. Ter atuação política neste caso é uma ne cessidade para assegurar os limites do que pode ou não ser imposto a toda a popu lação em termos religiosos. Os seculares hoje na Knesset não têm dado a este tema suficiente relevância e por isso precisamos de mais gente ali que levante estas bandeiras, que tenha total motivação quanto a este tema. Eu, particu larmente, sou otimista e acredito que estas mudanças po dem ser alcançadas.

Devarim – Como deveria ser o relacionamento entre as comunidades judaicas em todo o mundo em relação a Is rael quanto ao que se passa em Israel?

Devarim – Há nisso, portanto, certa contradição. Se por um lado a visão da WUPJ é de que deve-se ter um Estado

Hilik Bar – Israel precisa entender, antes de tudo, que somos todos parte da mesma família, o que nem sempre fica claro para os israelenses. Devemos entender que o que acontece em Israel tem efeito sobre os judeus de fora de Israel. Nossas atitudes podem gerar ou ampliar antissemi tismo, ou mesmo apenas oferecer uma desculpa para que estes sentimentos aflorem. Não vejo porque estas comunidades deveriam dizer “amém” a tudo o que o governo israelense faz, e Israel deve se abrir para os argumentos e comentários, positivos ou negativos, que vêm de fora. Tal como existem partidos legítimos que estão na oposição e que, ao exporem seus pontos de vista, não deveriam ver o governo rapidamente responder aos gritos de “anti-israe lense” ou “antissemita” para aquele que discorda das posi ções oficiais do governo. Ser judeu e ser democrático nos impõe a necessidade de buscar o que entendemos ser o me lhor e nem sempre veremos o mesmo caminho para isso.

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Eu particularmente fico feliz em ver que hoje, nos Esta dos Unidos, organizações como JStreet têm força e se fa zem respeitar, não vejo necessária a uniformidade de opi niões. Tal como, a meu ver, é errado o alinhamento au tomático contra Israel ou seu governo, judeus da diáspo ra devem poder se manifestar em dissonância com o go verno de Israel sem serem automaticamente classificados de “anti-Israel”.

Devarim – Algumas coisas mudaram. Por exemplo, o Habonim Dror era oficialmente ligado ao Avodá e não é mais. O que nós, dos movimentos juvenis, podemos fa zer para apoiar Israel, além de eventualmente fazer aliá?

Hilik Bar – Fazer aliá é da maior importância, quer você seja de esquerda ou de direita, não faz diferença, o compromisso com Israel é uma situação em que todos ga nham. Mas os movimentos juvenis têm como funções re passar nossos valores de geração em geração, se isso não ocorrer, não teremos comunidades judaicas, ou, se es

tas existirem, não terão conexão com o Estado de Israel. Esta educação também deve investir no aprofundamen to dos valores democráticos e no diálogo, inclusive dentro da própria comunidade judaica. Viabilizar o diálogo entre os mais velhos e os mais jovens e entre a comunidade da diáspora com Israel. Se esta corrente se fortalecer, estare mos combatendo a assimilação, estaremos protegendo Is rael e a diáspora do antissemitismo, seguiremos educando nos valores judaicos e sionistas e isso é o mais importante.

Devarim – Você disse antes, fora desta entrevista, que o Hamas é o nosso inimigo, são terroristas, e não podemos dialogar com eles; mas disse também que o Fatah é nos so inimigo, mas com eles, ao contrário, sim, precisamos dialogar. Nossa pergunta é: temos mesmo este inimigo? O Fatah não assinou os acordos de Oslo e deseja a paz?

Hilik Bar – O que eu quis dizer, e talvez tenha fi cado confuso, é que hoje não temos paz com os palesti nos, o que temos é um estado de inimizade. A autorida

Yula
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Andrey Krav
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de palestina de Abbas (e o Fatah inclusive) têm e mantêm este status. Mas o que digo sempre é que existem dois tipos de inimigos: um que quer viver ao seu lado e reconhece que você esta aí e não vai em bora e, portanto, não quer destrui-lo, pre tende construir acordos por meio do di álogo para permitir esta vida lado a lado, ou seja, não usa o terror como arma. Com este inimigo chegaremos a um acordo al gum dia. O outro tipo é o que quer viver não ao nosso lado, mas nos substituir no espaço que ocupamos, quer estar ali em vez de você, e para isto destrói, mata, ani quila. O primeiro tipo é Abbas, o segundo é o Hamas, que tem em sua ideolo gia, como escrito no artigo 22 de seu estatuto, a intenção de destruir e ocupar toda a terra de Israel. O Hamas pre fere falar com Israel via mísseis e por meio de seus túneis feitos para o terrorismo. Devemos dialogar com o primei ro e lutar contra o segundo. É fundamental que o gover no israelense faça sempre esta diferenciação. Por isso, mes mo Abbas sendo considerado como inimigo, nos irritan do com observações que às vezes são bastante estúpidas ou sem sentido, ainda assim, enquanto Abbas quiser dialogar por meio da diplomacia, Israel deve fazer o mesmo, consi derando-o como parceiro para a paz.

Se eu tivesse conhecido o judaísmo reformista quando era criança em Tsfat, eu provavelmente seria hoje mais religioso do que me tornei. Mas o movimento Reformista erra ao investir muito na diáspora e ainda menos do que deveria em Israel.

deixou muito surpresos. Acho que foram encontros muito positivos. Convidei al guns a virem a Israel e aceitaram o convi te. Assim, verão Israel com seus próprios olhos, vou poder levá-los para entende rem o que o Hamas está fazendo à popu lação local, ver a convivência das minorias em Israel e os benefícios trazidos por grupos que visam estabelecer a solução de dois Estados. Tudo isso sempre dentro de uma visão sionista e totalmente adequada ao interesse maior de Israel. Nosso inte resse não é agir para sermos mais ou me nos simpáticos, nosso interesse maior é e sempre será apoiar Israel e seu crescimen to seguro. Entendemos um acordo de paz como uma necessidade estratégica para esta segurança e uma demanda social e econômica da nossa sociedade. Os encontros foram bons para evidenciar que Israel é um país altamente ético, desenvolvido, democrático e ouviram de um deputado israelense que, em sua opinião, a melhor forma, talvez a única forma para seguirmos assim, é persistir no caminho da solução de dois Estados.

Devarim – Há algo que ainda não perguntamos e que você gostaria de acrescentar?

Devarim – Que impressão teve dos políticos brasileiros que conheceu?

Hilik Bar – Sem citar nomes, tive a impressão de que estavam bastante frustrados por serem acusados de antis semitismo pela comunidade judaica ao emitirem opiniões sobre o que ocorre em Israel. O que me disseram é que se sentem capazes de conciliar sua visão crítica com o enten dimento de que Israel tem e deve ter seu espaço. As pes soas com quem conversei não criticaram, aliás, Israel por conta do último conflito com Gaza, mas sim pela condu ção das negociações com os palestinos. Muitos me disse ram claramente entender o direito de Israel à defesa no que se refere ao Hamas. Pediram-me que trouxesse mais vozes de esquerda e centro-esquerda como a minha. Co mentei com eles que, apesar do governo de Israel ser de direita, há praticamente uma divisão na metade da popula ção quanto à necessidade das negociações de paz, o que os

Hilik Bar – Preciso acrescentar que, nesta minha pri meira viagem ao Brasil, encontrei aqui pessoas, judeus e não judeus, ansiosas para aprender mais sobre Israel e para ouvir informações. Mas o mais importante é que encon trei aqui uma comunidade muito comprometida com Is rael, talvez a mais sionista que conheci de todos os luga res que já visitei, e já estive em muitos! Pude verificar isto no Cabalat Shabat na ARI, entre os jovens da Chazit e do Dror, e também entre os menos jovens com quem estive, e isto é importantíssimo. Peço que não abram mão desta ligação com Israel, que está profundamente arraigada nas vivências e nas emoções de todos nós. Se somos talvez o coração do mundo judaico, certamente os judeus de todo o mundo são o corpo e um não pode viver sem o outro. Muito obrigado!

Daniel Plattek e Felipe Kaufman Gorodovits são bogrim do mo vimento juvenil Habonim Dror. Ricardo Gorodovits é o presiden te da ARI.

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m ãos estendidas so B re o r io de j aneiro

rabino joseph edelheit

Ele está literalmente em todo lugar para onde se olha na Zona Sul. Às vezes no escuro, ou entre nuvens, ele parece estar flutuando, outras vezes ele exibe as cores da seleção brasileira, ou as cores da bandeira, ou um branco celestial incrível. Seja de dia, seja de noite, sempre que se olha para os morros que permeiam a cidade do Rio de Janeiro se vislumbra a estátua do Cristo Redentor sobre a montanha do Corcovado, no Parque Nacional da Floresta da Tijuca.

Desde 1931, quando foi inaugurada, até 2010, ela foi a estátua de Jesus mais alta do mundo. Em 2007 foi eleita uma das Sete Novas Maravilhas do Mundo, quando mais de 10 milhões de brasileiros foram instruídos a ligar para “4916” e votar pelo Cristo Redentor. As outras seis maravilhas modernas incluem dois sítios famosos de povos indígenas antigos no México e no Peru, assim três das sete maravilhas estão no nosso hemisfério; as demais incluem a Grande Mura lha da China, a antiga cidade arqueológica de Petra, na Jordânia, o Coliseu de Roma e o Taj Mahal em Agra, na Índia. Assim que a única das sete maravilhas modernas considerada um símbolo ativo do Cristianismo Ocidental é o Cris to Redentor.

Construído pela Igreja Católica do Rio, a um custo de US$ 250.000 (atu ais US$ 3.300.000), algumas pessoas o consideram o símbolo da cristandade brasileira. Apesar do Cristo Redentor estar situado no topo de um morro que faz parte de um parque nacional brasileiro, a Igreja Católica consagrou o local, de modo que batizados e casamentos podem ser ali celebrados.

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Neste último verão durante a Copa do Mundo, auto ridades da igreja local provocaram um alvoroço quando proibiram o uso de filmagens usando a imagem da estátua, alegando que ela é sagrada. A mídia imediatamente protestou, temendo que esta famosa atração turística estives se subitamente sendo usada para obrigar o Rio secular a se curvar diante da autoridade da Igreja Católica.

Em 2013, o New York Times escreveu: Apesar da icôni ca estátua do Cristo Redentor se erguer sobre a cidade, há uma profunda ansiedade entre os católicos quanto ao fu turo da sua fé, já que há uma crescente secularização e in diferença à religião aqui. Somente 65% dos brasileiros atu almente declaram ser católicos, uma redução em relação aos mais de 90 por cento em 1970, conforme o censo de 2010. O declínio foi tão brusco e contínuo, especialmente no Rio de Janeiro, que um dos principais líderes católicos do Brasil, o Cardeal Cláudio Hummes, enfatizou: “Per guntamo-nos com ansiedade: por quanto tempo o Brasil vai continuar sendo um país católico?”

Mais tarde a arquidiocese admitiu o que parecia ób vio: o Cristo Redentor não é uma imagem sagrada, mas não obstante é, conforme dito acima, um ícone. A palavra passou a significar muitas ideias: notável, celebrada, pro

movida com todo zelo, reverenciada, consolidada, oculta, autêntica, invejável, facilmente reconhecida, memorável, importante, querida, estereotipada e atípica, representati va e incomum, chique e popular.

Você pode encontrar a imagem da estátua em todos os lugares do Rio: como lembranças para turistas nas lojas e mercados públicos, na forma de joia, em madeira e pedra, em cartazes na traseira de táxis, na televisão, em bol sas usadas para compras de supermercado, camisetas e pla cas de boas-vindas para milhões de visitantes no aeropor to. Como é possível que uma imagem supostamente sa grada seja reproduzida de forma banal na Feira Hippie da Praça General Osório?

Desde minha primeira visita ao local em novembro de 2011, eu me pergunto como os judeus no Rio se relacio nam com a estátua. O nome, Cristo Redentor, usa a tra dução para o grego da palavra hebraica, Mashiach, Mes sias. Os judeus normalmente não usam essa palavra, sim plesmente chamam Jesus pelo nome, não pelo seu título – o Salvador.

Nas quatro oportunidades em que levei amigos que visitavam o Rio ao Corcovado, eu fiquei surpreso por esta cidade católica ter uma estátua de um Jesus em pé e não

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Vejam

a seguir o resultado da reflexão proposta pelo Rabi no Edelheit, por alguns membros da comunidade judaica do Rio (em ordem alfabética do último sobrenome).

Rafael Azamor – professor

Viver no Rio de Janeiro e olhar esta estátua de braços abertos demonstra o espírito carioca, segundo o qual esta mos de braços, mentes e corações abertos para a diversida de cultural e social em que vivemos. Lembra-nos ainda da im portância da coexistência.

Oren Boljover – chazan

É só ir lá para comprovar que se trata somente de um pon to turístico. Na hora da visita nada se percebe, além disso, mesmo tendo ciência que a Igreja administra o local e que de vez em quando aconteçam lá eventos religiosos. O Corcova do é o mirante mais alto da Cidade Maravilhosa. Por que pri varíamos um visitante de uma beleza assim? Por que há uma estátua? Seria também como não ir às pirâmides do Egito porque é o túmulo de um faraó. E por último: “Cristo Reden tor” é o nome que o Paul Landowsky deu à sua obra.

Marco Dana - empresário

Começando por uma solução pragmática, mudaria o ce nário da foto histórica da Connections, colocando-a no Pão de Açúcar que também é um ótimo cartão postal no Rio de Janeiro. O Corcovado é uma imagem que transcendeu a sua função, tornando-se um ícone da nossa cidade, como acon teceu com a bossa-nova, lembrando a Devarim anterior, que se tornou um ícone musical de nossa cidade. Para finalizar, sou de uma época em que podíamos ir na madrugada apre ciar a cidade e hoje isto é, infelizmente, impossível.

Victor Dweck – engenheiro

Para mim, a imagem do Cristo Redentor no alto do morro do Corcovado está mais associada ao Rio turístico, de fotos e vídeos que enaltecem a beleza da cidade. Como judeu, não vejo problema algum em visitar a estátua e aproveitar a incrí vel vista do Morro do Corcovado. Porém, não acho apropria do usarmos a foto de um grupo no pé do Cristo para ilustrar um encontro judaico realizado no Rio. Para essa foto, sugi ro o Pão de Açúcar.

Jeanette Bierig Erlich – professora de judaísmo

Acho bonita! O meu neto, aos três anos, despedindo-se de mim no aeroporto, para ir morar em Sydney, viu e me pe diu uma pequena réplica de madeira da estátua que para mim sempre significou “um grande abraço”. Relutei, mas sentin do que a estátua nada a mais lhe representava, acabei dan do. Está com doze anos. Não fez efeito algum sobre as suas convicções religiosas.

Felipe Beer Frenkel – servidor público

A revista The Economist em 2010 dedicou uma edição ao Brasil, com a manchete “Brazil takes off”. Na capa a estátua do Cristo voava como um foguete. A imagem utilizada na re portagem ilustra meu pensamento: foi transcendido seu sen tido religioso, certamente importante para muitos, transfor mando-se primordialmente num símbolo nacional.

Leonardo Kaufman Gorodovits – estudante de economia

Acredito que o Cristo Redentor é hoje, com justiça, um dos maiores símbolos do Rio e do Brasil. Ainda que logica mente carregado de conotação religiosa, creio que o monu mento se relaciona muito mais com o sentimento de ser bra sileiro do que com o sentimento de ser cristão.

Ana Beatriz Torres – tradutora e intérprete de conferências

O Cristo Redentor faz parte da história da cidade. Sem pre que eu o avisto me lembro mais do que nada da vista de tirar o fôlego que de lá podemos ter da nossa deslumbran te cidade.

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agonizando crucificado. Esta imagem é muito mais protestante do que católica. Enquanto a vista do Rio de Ja neiro desde o Corcovado é uma das melhores, é impossí vel ir ao local e ignorar a imensidão da estátua. Turistas do mundo inteiro lotam a base para tirar fotos com os bra ços abertos, imitando a estátua e dependendo do dia e da hora, a fila no pé ou no topo do morro pode levar horas. Gostaria de entrevistar as pessoas sobre sua relação com a estátua: é como estar em uma igreja em Roma, aprecian do uma famosa escultura em mármore esculpida por Mi chelangelo ou caminhar pela Via Dolorosa na antiga Jeru salém, ou será apenas como qualquer outra atração turís tica famosa, como a Estátua da Liberdade?

Este é o cartão postal do Brasil, um ícone que vai pas sar a ser ainda mais usado na preparação para os Jogos Olímpicos de 2016. Para os judeus do Rio de Janeiro, te mos a curiosa pergunta abaixo: Em maio de 2015, quan do os judeus progressistas do mundo inteiro vierem à nos sa cidade para a primeira conferência judaica internacio nal da história, deveríamos planejar uma visita coletiva ao Corcovado e inclusive tirar uma foto do grupo aos pés do Cristo Redentor?

Perguntei a judeus que cresceram no Rio e cujas vidas seculares e judaicas se encontram ancoradas à cidade que está imediatamente representada por essa imagem, qual é a sua relação com o Cristo Redentor. Obtive três respostas distintas: (1) Respeito: a estátua e a imagem são religiosas, es

pecificamente enquanto símbolo cristão; (2) Reconhecimento: a importância histórica e econômica da estátua para a iden tidade do Rio; (3) Indiferença: é apenas um mirante de onde é possível ver o Rio todo.

A vida judaica no Rio é dinâmica e uma população re lativamente pequena sustenta uma diversidade de institui ções. Contudo, quando indagados sobre O Cristo, eles parecem ter mais curiosidade sobre a questão do que sobre a estátua. É realmente possível ignorar uma das Sete Mara vilhas do Mundo moderno, porque nós, judeus, ainda nos sentimos desconfortáveis até mesmo com a ideia de ídolos?

Para o Rio de Janeiro receber as Olimpíadas será um dos pontos altos da cidade por muitas décadas. E para a ARI, ser a anfitriã da reunião da World Union for Progres sive Judaism é um reconhecimento histórico da presença judaica na América Latina.

Como estamos em fase de planejamento desse momen to único, dediquemos apenas alguns minutos a pensar em como vamos explicar a realidade sempre presente do Cris to Redentor nas nossas vidas, e não apenas como mais um na lista de atrações turísticas da cidade.

Traduzido do inglês por Ana Beatriz Torres.

Rabino Josef Edelheit é diretor de Estudos Judaicos e Religiosos na Universidade Estadual de St. Cloud, Minnesota, EUA, e diretor fundador da Living India.
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Foto de Norton Ficarelli

o s judeus do a zer B aijão

monique sochaczewski

Na virada de outubro para novembro de 2014, o prestigioso jornal israelense Haaretz publicou uma série de artigos de opinião sobre as relações entre Israel e o Azerbaijão, estimulada pela recente visita do ministro da Defesa de Israel, Moshe Ya’alon, a Baku. O primeiro a tratar do tema foi o historiador Yair Auron, criticando a venda de armas por parte de Israel aos azerbaijaneses. A seu ver, estes últimos usariam estas armas para cometer genocídio contra os armênios e vendê-las, portanto, seria como “vender armas para a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial”.

Os acadêmicos Maxime Gauin e Alexander Murinson responderam de ime diato, ressaltando os “paralelos absurdos” e a “indignação seletiva” de Auron. Para estes, há de se levar em conta os interesses nacionais israelenses e com isto trouxeram à tona o fato de que cerca de 40% do petróleo consumido em Israel vem daquele país e que ele representa um importante cliente para a indústria hi-tech israelense. Lembram ainda que a Armênia tem um passado de articula ções com grupos guerrilheiros palestinos hostis a Israel.

Por fim, o jornalista Reshad Karimov também criticou veementemente Auron, lembrando que Israel se tornou um dos principais parceiros comerciais do Azerbaijão e que o país é também “lar de uma comunidade judaica há mais de 2.000 anos, baseada em Baku e na cidade nordestina de Guba. Hoje esta co munidade é de 20.000-25.000 judeus, similar às populações judaicas do Irã e da Turquia”.

Krasnaya Sloboda fica a 165 quilômetros ao nordeste de Baku e acredita-se ser a única cidade totalmente judaica fora de Israel. É lar da maior comunidade judaica no Azerbaijão, aqueles que ali são denominados de judeus da montanha.

Na página anterior, entrada da sinagoga dos judeus da montanha em Baku.

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Segundo a última estatística oficial de 2004, o núme ro de judeus no Azerbaijão era de 11.000, mas, como es creveu Karimov, a cifra agora é incerta e gira na casa dos 20.000 judeus, configurando-se, portanto, uma das maio res comunidades judaicas em país muçulmano. A ideia deste texto é justamente tratar desta longeva e relativamen te vasta presença judaica no Azerbaijão, levando em conta a literatura acadêmica existente a este respeito e também minha experiência de viagem recente ao país. O intuito é apresentar brevemente os judeus azerbaijaneses e tratar também de seu papel nas relações próximas entre o Azerbaijão e Israel, certamente as melhores entre um país mu çulmano e o Estado Judeu.

Os judeus azerbaijaneses podem ser divididos em três grupos: judeus da montanha, ashkenazim e judeus georgia nos. Os judeus da montanha configuram-se o maior sub

grupo e vivem em sua maioria em Krasnaia Sloboda, no nordeste do país, mas há também expressiva presença na capital Baku. É também na capital que vive a maioria dos judeus ashkenazim e dos judeus georgianos.

Os judeus da montanha Krasnaya Sloboda fica a 165 quilômetros ao nordes te de Baku e acredita-se ser a única cidade totalmente judaica fora de Israel. Ela é lar da maior comunidade judai ca no Azerbaijão, aqueles que ali são denominados de ju deus da montanha (Gorskie Evrei), mas que se autodeno minam Juur. Krasnaya Sloboda se separa de Guba, cidade de maioria muçulmana, pelo rio Qudiyalçay. Os números são incertos, mas acredita-se que ali vivam cerca de 4.500 judeus atualmente (Huseynov, 2011:51).

Os judeus da montanha vêm intrigando estudiosos

Sinagoga dos judeus da montanha em Baku. Foto de Felipe Lauritzen
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desde meados do século XIX, pois não há consenso sobre sua origem. O termo sur giu pela primeira vez em um documento da administração colonial russa no Cáu caso em 1825, um período de anexação ativa por parte dos czares do território em que viviam. Localmente, porém, eram co nhecidos como “dzhukhur”, que quer di zer “outra fé”, para distingui-los dos mu çulmanos locais. Aparentemente, os rus sos passaram a denominá-los judeus da montanha para distingui-los dos judeus ashkenazim, que passaram a conhecer melhor com a expansão de seu im pério no século XVIII e inclusão dos judeus que viviam na Polônia. A língua que falam é um amálgama de dialeto antigo persa e hebraico e é tanto conhecida como Tat como Juhuri

Na fase final do domínio soviético, em 1989, o número de judeus ashkenazim no Azerbaijão era de 31.000, vivendo basicamente em Baku, Sumgayit e Ganja.

1867 e 1879. Em 1870 publicou o livro Judeus da Montanha. Já Il’ia Anisimov era ele próprio um judeu da montanha com estudos acadêmicos em São Petersburgo.

Ele fez uma ampla viagem pelo Cáucaso em 1886, com bolsa de estudos da “Socie dade Arqueológica de Moscou”, e de suas pesquisas publicou em 1888 o relatório “Judeus da Montanha do Cáucaso”. Para o primeiro tratava-se de fato de judeus, mas diferentes dos congêneres europeus em termos morais e costumes, “que eles adotaram dos vi zinhos das montanhas, tendo vivido entre eles por séculos” (Goluboff, 2004). Para Anisimov, o distanciamento que os judeus da montanha procuravam manter da educação, mais do que ser prova de seu atraso, era o entendimento que tinham de que esta distanciava da fé e os subjugava.

Há ampla bibliografia e longevo debate sobre as origens dos judeus da montanha e alguns chegaram mesmo a duvi dar de seu judaísmo. Yehuda Chernyi (1835-1880) e Il’ia Anisimov (1862-1928) foram os primeiros a desenvolver pesquisa a seu respeito. Chernyi, um judeu russo, contou com recursos da “Sociedade pela Promoção da Educação entre os Judeus da Rússia” para estudá-los entre os anos de

Três explicações ganharam peso ao longo do século XX para dar conta das origens dos judeus da montanha. Para a primeira delas, eles descendiam de judeus capturados pelos assírios e babilônios na Antiguidade. No século V teriam se mudado para o Cáucaso oriundos da Pérsia, a fim de escapar de perseguições. Já a segunda teoria dizia que os ancestrais dos judeus da montanha eram os Kaza

Foto de Monique Sochaczewski Referência aos judeus do Azerbaijão no Centro Cultural Heydar Alyiev.
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res, um grupo de convertidos ao judaísmo que governou a área do Azerbaijão e Daguestão atuais da metade do século VII ao fim do século X, quando foram derro tados pela expansão islâmica. Por fim, se gundo a terceira teoria, os judeus da mon tanha emergiram de um longo processo de mistura entre descendentes de judeus antigos e pagãos locais que mais tarde se converteram ao Islã.

Com a independência do Azerbaijão da União Soviética, em 1991, o país teve que buscar sua identidade nacional.

Houve uma confluência de interesses em valorizar suas minorias, como a judaica.

Durante o período soviético, a pouca literatura a respeito dos judeus da mon tanha localizava-os em um espectro mais amplo de falan tes de Tat, que calhavam de ser judeus. Eram feitas am plas referências aos escritos de Chernyi e Anisimov visando, sobretudo, localizar e erradicar sobrevivências de reli gião, individualismo burguês, opressão feminina e nacio nalismo que ameaçassem a ordem socialista (Gobunoff, 2004: 133).

Com a independência do Azerbaijão em 1991, pas sou a ser crescente a busca por parte dos judeus da mon tanha por autoentendimento e reconhecimento. Desper tou-se novo interesse acadêmico a seu respeito, com a reali zação de algumas conferências internacionais no início do novo milênio. A autoimagem deste grupo é a de mais po bres e mais tradicionais do que os judeus europeus e de que compõem a comunidade judaica mais antiga do mundo.

Os Ashkenazim

Os primeiros ashkenazim chegaram ao Azerbaijão em 1810 e a comunidade se formou em 1832. Ao longo do século XIX somavam poucas dezenas, mas com o boom do petróleo em Baku no final deste século sua presença cres ceu enormemente. Em 1897, segundo o Censo da Popu lação do Império Russo, somavam 2.430 habitantes da ci dade. Em 1913, já eram 10.000, configurando-se 4,5% da população da cidade (Huseynov, 2011: 51).

Para além da indústria petrolífera, muitos atuaram como profissionais liberais, trabalhando como advogados e médicos. Construíram escolas de todo o tipo, bibliotecas e organizações caritativas foram organizadas para aju dar as famílias judias pobres. Durante o período soviéti co, porém, as instituições foram fechadas ou esvaziadas.

Na fase final do domínio soviético, em 1989, o núme ro de judeus ashkenazim no Azerbaijão era de 31.000, vi

vendo basicamente em Baku, Sumgayit e Ganja. Com a independência em 1991, muitos imigraram e os que ficaram re construíram ou construíram instituições, como a Sociedade da Amizade Azerbai jão-Israel (Huseynov, 2011: 52).

Os Georgianos

Os judeus georgianos são também co nhecidos como kartli ebraeli. Desde o sé culo XI há referência a estes judeus na li teratura georgiana, mas acredita-se que eles teriam chegado inicialmente àquela região do Cáuca so depois da destruição do primeiro templo, em 586 A. C. Um segundo fluxo ali chegou com a destruição do segundo templo, em 70 D. C. Regiões georgianas como Gori, Gagra, Oni, Batum, Kutais, Akhalsix, Kulashi e Tiflis, fo ram áreas de residência compacta dos chamados ebraelis. Sendo normalmente minorias, gradualmente perderam a sua língua nativa e passaram a adotar o idioma georgiano e também o russo.

A presença dos ebraelis no que é hoje o território do Azerbaijão data dos séculos XVIII e XIX, e se dá, sobretu do, na cidade de Baku, mas há também presença próxima à fronteira da Geórgia atual. Os números também são in certos, mas fala-se de cerca de 700 judeus georgianos vi vendo atualmente no Azerbaijão.

Os judeus azerbaijaneses e seu papel na relação com Israel

Com a independência do Azerbaijão da União Sovié tica, em 1991, o país teve que buscar sua identidade na cional e caminhos que lhe dessem o máximo de autono mia econômica e política em um ambiente dominado por duas potências importantes – a Rússia e o Irã. Aconteceu, por exemplo, toda uma revalorização de sua especificida de turca e com isso se aprimoraram as relações com a República da Turquia.

Houve de certa forma uma confluência de interesses em valorizar suas minorias, como a judaica. Por um lado, o Azerbaijão começava a esboçar sua autoimagem de en cruzilhada de civilizações e de histórico de tolerância, bas tante marcante atualmente. Por outro lado, o Estado de Israel buscava aproximar-se do país, interessado em obter dele fornecimento de petróleo e vender armamentos, para

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além de cooperação em diversas áreas como segurança, mi litar, energia, telecomunicações, medicina, comércio, edu cação e cultura (Murinson, 2014: 15). E, por fim, a pró pria comunidade judaica, sobretudo os judeus da monta nha, passava a buscar autoconhecimento e reconhecimen to fosse no âmbito do novo país, como na diáspora judai ca maior (Goluboff, 2004).

É com este pano de fundo complexo que podemos en tender o crescente ativismo em torno dos judeus azerbaija neses. Há, portanto, significativa presença judaica no Azer baijão e esta ajuda a dar força às relações bilaterais amis tosas entre este país e Israel. A memória de boas relações históricas da comunidade judaica com a maioria azerbai janesa é ressaltada como importante elemento psicológico para a legitimidade e continuidade da ampliação das rela ções bilaterais (Murinson, 2014: 10).

* * *

Como se viu, a presença judaica no Azerbaijão é antiquís sima e muito relevante no âmbito das relações interna cionais de Israel e na imagem de nação tolerante pregada pelo governo azerbaijanês. A visita ao país é válida e re comendada para os interessados em conhecer, in loco, so bretudo os intrigantes judeus da montanha. Uma manei ra de ampliar a introdução ao país, porém, é a leitura do livro O Orientalista, de Tom Reiss, que trata da biografia

de um judeu ashkenazi de origens georgianas, mas nascido em Baku, autor do livro nacional Ali e Nino. Seu nome era Lev Nussimbaum, mas ele ficou também conhecido como Kurban Said e Essad Bey.

Bibliografia

Auron, Yair. “Israel must not sell arms to the Azeris”. In: Haaretz, Oc tober 26, 2014.

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Reiss, Tom. O Orientalista: o mistério de uma vida estranha e perigosa Rio de Janeiro: Record, 2007.

Monique Sochaczewski é pesquisadora bolsista da Escola de Ciências Sociais CPDOC/FGV e coordenadora do MBA em Rela ções Internacionais da FGV-Rio.

Monique Sochaczewski, ao centro, e os jovens brasileiros que participaram da viagem ao Azerbaijão em julho de 2014.
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p or que judeus e muçulmanos devem se respeitar mutuamente

Resenha do livro the Jew Is not My enemy, de tarek Fatah

Inexistem no Corão referências derrogatórias ao judaísmo e aos judeus. O antissemitismo começa a aflorar na literatura religiosa islâmica no corpo literário chamado “hadith”, que reúne escritos de diversas fontes, compiladas nos séculos que se seguiram após a morte de Maomé.

Acapa do livro The Jew Is Not My Enemy, de Tarek Fatah1, sobre o antis semitismo islâmico traz uma frase do “National Post” qualificando o livro como “franco, humilde e corajoso”, o que certamente é verdade. Contudo, ele é também assustador.

Não que as ideias do escritor ou seu estilo de vida coloquem medo. Muito pelo contrário, este bioquímico que se tornou jornalista é integralmente iden tificado com os valores democráticos da civilização ocidental e, caso fosse ju deu (ele é muçulmano), poderia estar integrado em qualquer uma das sinago gas e instituições do mundo liberal judaico. Ele valoriza a liberdade de expres são e respeita as escolhas individuais. Nasceu no Paquistão e mora no Canadá, onde preside o Muslim Canadian Congress, uma organização cujo slogan é a curiosa frase “Figthing Islamism on behalf of Muslims” (lutando contra o is lamismo em favor dos muçulmanos), que advoga a separação de religião e es tado e se opõe ferozmente à adoção da sharia (a lei religiosa muçulmana) pela população islâmica do Canadá.

Seu livro assusta não pelas ideias do autor, mas pelo quadro que pinta. Ele traça um perfil do Islã que é leitura indispensável para quem quiser entender não apenas o mundo de hoje, mas principalmente o dos próximos anos. E este perfil é o de uma cultura virulentamente antissemita.

Tarek Fatah sustenta que o antissemitismo entre os muçulmanos é avassa lador, e ele faz isto com método e com abundância de evidências. A população de países que não têm presença judaica alguma – como o seu Paquistão natal –

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considera os judeus a maior praga da humanidade e atri bui a eles todos os males que devastam o mundo.

Um pequeno exemplo relatado por ele: “Andando em Clifton, um dos bairros chiques de Karachi, num dia agra dável da primavera de 2006, uma faixa pendurada através da rua capturou a minha atenção. Ela dizia: ‘A gripe avi ária é uma conspiração judaica’”. Ele segue contando que seu instinto foi de considerar a faixa como alguma espécie de piada, mas que ao pesquisar o assunto constatou que esta visão estava arraigada à população: Israel seria o cul pado pela gripe aviária, que teria disseminado com o in tuito de aniquilar a indústria aviária da Indonésia, uma na ção muçulmana.

Ele cita muitos outros exemplos, todos tendo como pano de fundo a convicção inabalável pela grande maio ria da população dos países islâmicos que os “Protocolos dos Sábios de Sião” é uma obra verdadeira, baseada em fa tos históricos e não, como está amplamente provado, uma

mistificação antissemita da polícia política czarista, que descreve os supostos planos dos judeus para controlar a humanidade.

Tarek é um religioso que ama e admira a sua religião e que faz questão de distinguir o que é um “islamista” de um “muçulmano”. Ele define muçulmano como a pessoa que adere aos “cinco pilares básicos do Islã”, estabelecidos por Maomé no Corão: (1) a crença na unidade de Deus; (2) a obrigatoriedade de pagar uma taxa anual para miti gar a situação dos mais pobres; (3) a obrigação de jejuar entre o nascer e o por do sol um mês por ano, para mos trar solidariedade com os pobres e os famintos; (4) haven do condição física e financeira, peregrinar ao menos uma vez na vida à Meca cumprindo o ritual do “hadj” e (5) re zar cinco vezes ao dia. Ele explica que nenhum destes cin co princípios requer a construção de uma entidade política, mas que o islamista afirma que é impossível praticar os cinco princípios sem ter autoridade política e que, então,

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resenha de livro

usa a identidade do Islã para construir entidades políticas. O islamista é a pessoa que usa o Islã como ferramenta para a construção de estruturas de poder.

A partir de sua identificação com a religião muçulma na, Tarek se ocupa seriamente em seu livro na pesquisa das referências aos judeus no Corão e na literatura religio sa posterior. Ele esclarece que inexistem no Corão referên cias derrogatórias ao judaísmo e aos judeus, havendo in clusive surpreendentes (para os dias de hoje) referências de Maomé confirmando que a Terra de Israel pertence aos judeus por mandamento divino. Existem relatos no Co rão que denigrem a conduta de alguns judeus, mas nunca como um grupo e sim como ações individuais no cenário histórico da vida de Maomé em sua luta militar pela con quista da Península Arábica.

O antissemitismo começa a aflorar na literatura religio sa islâmica no corpo literário chamado “hadith”, que reúne escritos (ensinamentos, ensaios, relatos históricos, biogra

fias piedosas, etc.) de diversas fontes, compiladas nos sécu los que se seguiram após a morte de Maomé. O hadith inclui passagens fortemente antissemitas e o autor se ocupa diligentemente em desautorizar estas passagens, provando a sua falsidade histórica e explicando a intenção política dos autores. Salta aos olhos dos leitores do livro que o au tor se incomoda profundamente com o antissemitismo e que se empenha ao máximo para deixar o mais claro pos sível que a religião islâmica não o endossa.

É evidente que nenhum estudo sobre o antissemitismo no Islã pode passar ao largo do Estado de Israel e mais pre cisamente do conflito israelense-palestino. Assim que o li vro dedica um capítulo à pergunta “Estará Israel alimentando o Antissemitismo?”, no qual se encontram ao me nos uma informação interessante e uma visão pessoal do autor sobre como resolver o conflito.

A informação diz respeito ao sentimento que os ára bes israelenses nutrem com relação ao seu país. Tarek vi

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sitou Israel em 2008 e esteve em diversas comunidades muçulmanas, conversando com clérigos, políticos e pessoas comuns. Em cada encontro ele formulou a pergun ta direta: “Como um muçulmano, você se sente vivendo num Estado que prati ca o apartheid?”. Transcrevendo a respos ta diretamente do livro: “Invariavelmen te a resposta foi um categórico não. Um homem de vinte e tantos anos na cidade de Shibli (na qual uma placa onde se lê ‘Allahu Akbar’ adorna a entrada da cida de), ao norte de Israel, me disse, ‘wallah al azeem – com Deus como testemunha – eu jamais trocaria a minha cidadania israelense por nenhum destes países árabes que não sabem tratar os seus cidadãos com dignidade’. Formulei a mes ma pergunta ao Imam Mohammad Odeh na entrada de sua espetacular mesquita ao norte de Haifa. Ele sorriu an tes de admitir: ‘nós muçulmanos temos dificuldades, sem dúvida, e sentimos que Israel deve terminar a sua ocupa ção na Cisjordânia, mas dizer que os muçulmanos vivem em estado de apartheid é uma mentira’. Depois de um tour pela mesquita, onde oramos, ele me convidou para a sua casa. O que se seguiu foi um longo e pungente relato de um palestino vivendo como cidadão israelense, um imam de uma mesquita e o líder de uma comunidade de duas mil pessoas. A dor estava escrita em seu rosto, porém suas queixas não eram dirigidas a Israel mas à corrupção intelectual das pessoas que lideram os palestinos. Eu pergun tei se ele, verdadeiramente em seu coração, se sentia um israelense e ele, sem hesitação, disse ‘Sim’”.

Imam Mohammad Odeh, de uma mesquita em Haifa: “Nós muçulmanos temos dificuldades, sem dúvida, e sentimos que Israel deve terminar a sua ocupação na Cisjordânia, mas dizer que os muçulmanos vivem em estado de apartheid é uma mentira”.

grande tensão junto ao mundo islâmico e que Israel deveria, para seu próprio bem, desocupar a região o quanto antes. Estra nhamente, Tarek Fatah não vê contradi ção alguma em incentivar Israel a confiar nas lideranças palestinas, que se alinham indiscutivelmente entre as forças islâmicas que ele combate vigorosa e corajosamen te. Ele acredita que, por algum motivo que não chega a revelar, a retirada de Israel da Cisjordânia vai fazer emergir naquele terri tório um Estado muito diferente de todos os demais Estados árabes, que ele reconhe ce como retrógrados, totalitários, opresso res de seus povos e fomentadores de insta bilidade. É uma posição curiosa, principalmente vinda de uma pessoa que reconhece ser a humilhação por ter perdido a proeminência cultural que mantinha há séculos atrás uma das razões do ressentimento do Islã com relação ao ociden te. E mesmo sendo curiosa, não é, infelizmente, original.

Não obstante sua credibilidade, atestada pela liderança do Muslim Canadian Congress, ao voltar para o Canadá e contar sobre sua experiência em Israel, os correligioná rios de Tarek duvidaram do relato, tendo uma pessoa até mesmo sugerido que ele foi enganado pelo Mossad, que sub-repticiamente teria conseguido fazê-lo encontrar ape nas com agentes disfarçados de muçulmanos. Ou seja, o sentimento anti Israel é tão forte no mundo islâmico que até entre muçulmanos liberais e reformistas ele se mani festa com força.

Na visão do autor, as políticas de Israel estão sim fomentando o antissemitismo. Ele não tem a menor dúvida de que a ocupação de Israel na Cisjordânia é um fator que causa

No epílogo do livro, Tarek Fatah faz um apelo pelo entendimento entre toda a humanidade e conclama aos mu çulmanos a mostrar respeito pelos judeus e os judeus a mostrar respeito pelos muçulmanos. Mas, mostra que há uma diferença significativa entre os dois grupos: “Procu rando com afinco, a pessoa sempre achará o judeu bizar ro que insulta o Islã e o profeta Maomé. Poderá até mes mo topar com um Rabino que caçoa dos árabes. Quando o ex-Rabino chefe Sefaradi de Israel, Ovadia Yossef, disse ‘Deus se arrependeu de ter criado os árabes’, seu comen tário odioso foi uma exceção à regra. Por outro lado, para achar um clérigo Islâmico ou um político cuspindo ódio com relação aos judeus não é preciso olhar muito longe. De Jacarta a Jerusalém basta assistir ao sermão de sexta-fei ra numa mesquita para ouvir o Imã reprovando violentamente os ‘Yahud’ e rezando pela vitória do Islã e a derro cada dos judeus”.

A clarividência de Tarek Fatah é rara entre os muçulmanos, o que aumenta a relevância de seu livro e dá urgên cia à sua proposta de uma reforma religiosa no Islã.

Raul Cesar Gottlieb é diretor da Devarim

Notas

1. http://www.amazon.ca/The-Jew-Not-Enemy-Anti-Semitism/dp/0771047843 –publicado em dezembro de 2011 por McClelland & Stuart.

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cócegas no raciocínio a paz é perigosa?

p aulo g eiger

Tenho

vaga lembrança de ter escrito uma vez um artigo sob este mesmo título. Não impor ta, o tema e o título continuam atuais. Refere-se a uma vez irônica e atualmente bem real menção de um ‘perigo de paz’ para Israel. No passado longínquo, o presidente da Tunísia, Habib Bour guiba (foi ‘presidente’ durante 30 anos, de 1957 a 1987, coisa comum no Oriente Médio árabe da qual muitos presidentes hoje em dia têm inveja), dizia que se os árabes deixassem Israel em paz, a estrutura interna da sociedade israelense não resistiria a essa paz, e que Israel seria vencido por ela, já que era tão difícil vencê-lo na guerra.

Isso era então risível, não por ser a ideia em si totalmente absurda, mas porque a ideia de uma paz externa era distante a ponto de ser ir real. Não havia o ‘perigo’ de que Israel não tives se de enfrentar periodicamente uma guerra, nes ta ou naquela fronteira, contra este ou aquele ad versário, com este ou outro âmbito e duração.

Mas o desgaste de uma ‘guerra permanen te’, da visão conceitual de um país eternamen te em armas, de uma juventude sempre em aler ta para servir e às vezes morrer para defender o país, de um conflito interminável com seus vizi nhos dentro e fora de suas fronteiras e recente mente de um crescente isolamento em relação ao mundo – em sua incompreensão, em seus cri térios de moral dupla e seletiva, em seu renas cente antissemitismo disfarçado de anti-israelis mo, em sua cega subserviência à propaganda di rigida à demonização de Israel –, todo esse des gaste contrabalançou as ‘vantagens’ da guerra como fator de mobilização da unidade nacional, de incentivo ao avanço tecnológico, de aprimo ramento das capacidades defensivas e, se ne cessário, ofensivas.

Após quase cem anos de conflito, dos quais sessenta e sete sob a bandeira de um Estado ju daico que ainda não é reconhecido pela maioria de seus antigos (e muitos deles ainda atuais) ini migos – além dos novos, que foram surgindo na esteira desse conflito –, a questão da paz ressur ge com seu duplo e divergente desafio. O que é preferível: o domínio dos vencedores a ser man tido pela força, ou a paz das concessões, obtida por acordo? O que tem cada um desses forma tos de redenção ou de risco? Qual deles é se guro, qual deles é perigoso?

Consideremos a primeira hipótese. O sta tu quo do vencedor tem sido a realidade, e co nhecemos suas implicações e consequências. Há quem a advogue como a única possibilida

de real, seja qual for o preço a ser pago na ne cessidade de mobilização constante, nas even tuais guerras e no perigo de confrontos cada vez mais destrutivos, no isolamento e demonização de Israel. A alegação é que não há interlocuto res para uma paz verdadeira, não há como evitar a continuação da oposição a Israel, da demoni zação de Israel; os inimigos de Israel e do povo judeu não desistirão nunca, uma paz de conces sões que enfraqueça Israel só vai encurtar-lhes o caminho a facilitar-lhes alcançar seu objetivo. A paz é perigosa.

Os que advogam a necessidade de inter romper a direção desse conflito criando um fato novo, a aceitação de riscos em troca de compro misso de convivência pacífica não descartam as preocupações dos primeiros. Não há uma ingê nua convicção de que uma assinatura de acor do represente o fim real do conflito, nem mesmo para os ‘moderados’ entre os adversários, cer tamente não para o Hamas, para o Hizbolá, para o Irã, para os ‘Estados islâmicos’, sem falar no Qatar, talvez na Turquia, e no islamismo radical (e esquerdas radicais ou panfletárias) no mundo inteiro. Mesmo para quem acredita que se deve ‘dar uma chance à paz’, a paz é perigosa.

Isso considerando os perigos externos. Quanto aos internos, a afirmação de Bourguiba, que nunca foi absurda, começa a ser mais do que plausível. As diferentes maneiras com que israelenses, e judeus não israelenses por todo o mundo, concebem o que deveria ser um futu ro de segurança e de realização nacional judai ca estão gerando uma situação interna na qual todo aquele que tiver uma visão diferente daque la que está no poder será considerado um inimi go, quem não concordar com as medidas do go verno será um traidor. Os ecos da campanha de ódio que levou ao assassinato de Rabin há vin te anos voltam a ressoar em Israel. O perigo da paz é interno também.

A primeira pergunta, a do título, está respon dida. A paz é perigosa. A pergunta então passa a ser: Deve-se correr o risco de uma paz perigo sa? Interna e externamente?

Os israelenses acostumaram-se à chamada situação de no-win, na qual não há como se sair vencedor, cada alternativa traz suas irrevogáveis perdas. É como se uma estrada se bifurcasse e cada variante levasse a um inevitável abismo. Há solução para isso?

Há uma: voltar ao ponto de partida e cons truir outra estrada. Desfazer o paradigma. Pen

sar em outra coisa. A continuação do percurso atual, considerando as tendências vigentes na sociedade israelense e no povo judeu, e o de senvolvimento das tendências no Oriente Médio e no mundo, não permitem uma solução de con tinuidade que não seja perigosa. A solução, en tão, exige uma ruptura. Que, mesmo sendo rup tura em relação ao vetor atual pode ser um re torno à ideia original do sionismo, da criação de Israel, do reimplante do povo judeu no berço de sua história, mas em consonância com a realida de contemporânea. Um Estado judeu inserido na região e no mundo, calcado nos valores huma nistas do povo judeu, que aspiram à harmonia entre o homem e a divindade, entre o homem e a natureza, entre o homem e seu semelhante. Se Israel era uma ideia possível em 1897 e duran te a primeira metade do século vinte, se sobre viveu ao Holocausto, à malária dos pântanos e à aridez do deserto, se sobreviveu a sete guerras, se se firmou em tais condições como uma de mocracia, um país de alto desenvolvimento eco nômico, científico, tecnológico e educacional, se tem índices tão elevados nos medidores sociais, se resgatou comunidades judaicas inteiras e as integrou no país, se é um país de livre expres são, de livre prática religiosa, de liberdades in dividuais e coletivas, como não seria uma ideia possível depois de tudo isso, capaz de reescre ver sua estratégia e suas táticas para o futuro de modo a se pacificar internamente, de con viver com todos os povos da região, inclusive com um estado palestino que o reconheça tam bém, capaz de neutralizar com sua integração definitiva os argumentos e as ações do radica lismo político ou religioso que o contesta, venha de onde vier?

Evidentemente, não depende só dele. E tal vez não tenha um parceiro seguro para isso. Mas dele depende a iniciativa de tentar. Tem a força para isso. Tem o fundamento filosófico e huma nista para isso. Tem a história de seu povo para isso. Esse risco vale a pena. O perigo da paz só não é maior que o perigo da guerra.

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Devarim 25 (Ano 9 - Dezembro 2014) by ARI - Associação Religiosa Israelita - Issuu