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Rabino Sérgio R. Margulies
mestres e aprendizes
rabino sérgio r. margulies
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“Aprendi muito de meus professores, mais de meus colegas e mais ainda de meus pupilos.” (Iehudá ha-nassi, século 2/3).
Idolatria
Idolatria é fanática devoção a uma pessoa ou objeto (inevitavelmente controlado por alguém) isenta de reflexão. As decisões impostas por este ídolo são seguidas de modo automático. O fanático seguidor deste ídolo anula seu potencial, deixa de ser o que poderia ser. Ao seguir fanaticamente o ídolo, crê que se junta a um grupo. No entanto, não se junta; é arrastado. Tampouco é grupo, é seita. No grupo, o particular é valorizado, o todo se enriquece com cada elemento. Na seita, as partes evaporam e o todo é solidificado de modo congelante.
A idolatria dá mãos ao totalitarismo. O ídolo sabe tudo. Basta ouvi-lo. E segui-lo. O totalitarismo tem todas as respostas. Antecipa todas as perguntas. Inócuo trazer, portanto, as perguntas. Ídolo é a fonte do saber absoluto e das soluções perfeitas. Não precisa, portanto, seu seguidor aprender. E ainda assim, se insistir em aprender, qualquer aprendizado que destoar do saber atribuído ao ídolo será falho. A falha é indesejável, compromete o funcionamento do todo. Deve ser eliminada. Quem falha é alijado do todo. Torna-se pária. No fundo, a ousadia de buscar o saber, diante da imposição do todo, traz o risco da exclusão. Mais prudente não ousar, não pensar e não criar. Murcha, de um lado, o potencial humano e infla, por outro lado, o fanatismo.
Torá
O judaísmo é insubmisso ao ídolo. Reconhecer o potencial de aprendizado dos que ensinam é diferente de idolatrar quem ensina. Até porque, na meNa metodologia de aprendizado judaico, o mestre instiga o discípulo a questioná-lo. A tarefa do mestre não se reduz a exigir do discípulo a absorção do conhecimento transmitido, busca potencializá-lo a transformar este conhecimento. Assim, a informação recebida pode tornar-se sabedoria.

todologia de aprendizado judaico, o mestre instiga o discípulo a questioná-lo. Assim, a tarefa do mestre não se reduz a exigir do discípulo a absorção do conhecimento transmitido, busca potencializá-lo a transformar esse conhecimento. Através desta transformação a informação recebida pode tornar-se sabedoria.
A Torá é uma fonte inspiradora da sabedoria. Um saber que emerge por meio do questionamento, da criatividade e do diálogo. Daí a perenidade da Torá. Se fosse exclusivamente reprodutora do conhecimento, um ‘control- c’ / ‘control- v’ a ser copiada e colada nas mentes e almas, a Torá encontraria sua perpetuação nos museus e nas efemérides anuais. Como impulsionadora do saber – livre das amarras da imutabilidade dogmática – a Torá flui em sua vitalidade.
Tefilá (oração)
Tal como o estudo da Torá, a tefilá convida para a amplitude da vida. Rompe a estreiteza que a idolatria impõe. Seres finitos oram para um Ser infinito. Dirigir-se ao Ser infinito é reverenciar a vida e seu surpreendente mistério. Reconhecer a finitude humana é um ato de humildade. Ninguém tem todas as respostas. Alguns têm algumas respostas que são válidas para outros alguns, não para todos. O saber absoluto não é domínio humano.
Orar é um ato de ousadia. Dirige-se a Deus pressupondo que Ele escutará. A oração não se restringe aos limites do óbvio. Expande as possibilidades. Porém, a oração não espera de Deus respostas. Se esperasse estaria moldando Deus às necessidades humanas. A religião estaria, assim, amparada sobre a satisfação humana e não na dimensão divina. Esperar de Deus soluções é criar um ídolo. É igualmente fazer da religião um sistema totalitário que destitui a singularidade de cada pessoa, como se uma resposta fosse aplicável igualmente a todos. Deste modo, a oração intenciona possibilitar cada um a encontrar, sob o amparo dos valores espirituais, a sua resposta. Orar é um ato de imersão da alma para que emerjam sentimentos e pensamentos que alarguem a capacidade de respondermos às vicissitudes da vida.
Orar é abraçar o incômodo e quebrar o comodismo das
Orar é um ato de soluções artificiais. A oração rasga a caousadia, intenciona possibilitar cada um a muflagem das simplificações falsas. Orar é um desafio. Requer vontade, exige romper com a inércia, convida para a busca encontrar, sob o amparo da autenticidade do ser. O ser autêntico dos valores espirituais, prescinde de ídolos. A oração aguça a pera sua resposta. É cepção das agonias e das partes internaum ato de imersão mente dilaceradas. Esta conscientização gera o fortalecimento que se antepõe aos da alma para que ídolos que, como potentes aspiradores, emerjam sentimentos podem sugar a alma humana. e pensamentos que Orar é um múltiplo diálogo. Somos alarguem a capacidade elos de uma conversa contínua que rede respondermos às monta a nossos ancestrais; eles não são nossos ídolos e sim referências. Há uma vicissitudes da vida. transcendência em oposição ao imediatismo. Este diálogo prossegue através da inserção comunitária num compartilhar igualitário, que rejeita a superioridade de uns sobre outros. O diálogo inclui Deus. Tanto a Deus expressamos nossas orações quanto de Deus recebemos o convite para sermos Seu parceiro. Ídolos não querem parceiros e sim seguidores. Nos múltiplos diálogos das orações afirmamos o valor da parceria no deslumbrar da vida.
Tsedaká (ato de justiça)
O ego também pode tornar-se um ídolo ao cobiçar que tudo e todos o satisfaçam. O ego torna-se ídolo quando permite que o artificialismo prevaleça sobre a autenticidade e quando autoriza soterrar – na ânsia por soluções mágicas – o pensamento reflexivo e a ação transformadora. Valorizar-se e desenvolver um ego consciente com autoestima é muito distinto da egolatria. Egolatria é o olhar cego aos demais e a exigência de que o olhar dos outros seja cego a eles próprios. Tsedaká é ato de justiça social que abre os olhos para os outros reconhecendo as várias pessoas que compõem um todo de convivência. Um cego andava na rua com uma tocha. Perguntaram-lhe qual era o sentido da tocha se mesmo com o fogo iluminando o caminho ele não poderia enxergar. Ele respondeu: ‘A luz do fogo é para os outros me verem’. Tsedaká é a resposta ao clamor dos que necessitam ser vistos, percebidos e amparados. Uma criança aprende a andar. Ao aprender, cai diversas vezes, até que consegue se equilibrar sozinha e não cai
mais. Muitos que já aprenderam a andar voltam a cair. Caem na fraqueza do corpo que não consegue se equilibrar. Tsedaká é o ato que restitui aos que tombam a capacidade de andar com integridade e propicia a vida renascer – como uma primavera – após ser submetida ao paralisante frio de um tenebroso inverno. Tsedaká não é caridade, tampouco esmola. Visa reparar a injustiça social e restaurar a dignidade perdida.
Tsedaká evita a idolatria da insensibilidade, impede que a vida seja moldada ao sabor das circunstâncias nefastas e não permite que alguém, sobretudo nas condições mais difíceis, seja manipulado. A tsedaká vislumbra a transformação. Nesta tarefa não se restringe a proclamar os ideais mais elevados do humanismo e foca na efetiva atuação humana a fim de que nas
Tsedaká não é caridade, grandes causas não seja esquecido o inditampouco esmola. Visa reparar a injustiça víduo, conforme a tradição judaica afirma: “Quem salva uma vida, é como se tivesse salvado o mundo inteiro”. social e restaurar a dignidade perdida. A Missão tsedaká vislumbra a O judaísmo é vivência através do transformação. Nesta convívio. Estar com o outro é o chamado judaico para em responsabilidade tarefa não se restringe compartilhada aprendermos a Torá, rea proclamar os ideais citarmos a tefilá e praticarmos tsedaká. mais elevados do Assim construímos uma vida comunitáhumanismo e foca na ria que valoriza a diversidade sem a suefetiva atuação humana. premacia postulada pela idolatria. Nesta missão, somos todos mestres e aprendizes uns dos outros. Sérgio R. Margulies é rabino e serve à Associação Israelita do Rio de Janeiro – ARI.

