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Marcelo Treistman
em BusCa de rasHid Bey
O Estado judeu de Herzl estava fundado no conceito de que todos os seus habitantes desfrutavam de igualdade de direitos, inclusive o direito ao voto. Esses direitos eram estendidos não apenas aos árabes, mas também às mulheres, que ainda não tinham direitos iguais nas democracias liberais.
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marcelo treistman
Quem é Rashid Bey?
Na literatura judaica do fim do século 19 e início do século 20 é possível verificar um olhar romântico e de fascínio que o Ocidente exercia sobre o Oriente, exemplificado pela imagem do árabe e do mundo islâmico nos textos de seus principais autores.
O conto “New Year for Trees” (Ano Novo das Árvores), de 1891, escrito por Ze’ev Yavetz, inaugura um novo tipo de jovem judeu em nossa literatura. Dissolve a imagem tradicional do pálido e frágil menino de Yeshivá, simbolizando a transição da passividade e resignação da diáspora para a assertividade sionista. Esta nova juventude judaica, impulsionada pelo desejo de retorno ao seu “lar espiritual”, estava preparada para qualquer tipo de batalha.
Nesta nova terra, além de lidar com a poderosa força da natureza, o clima e as doenças, deveriam se relacionar com outros povos que ali residiam. Havia um perigo iminente, tema que integra todos os livros que narram a luta do judeu na construção de seu lar nacional. As descrições de emboscadas árabes contra viajantes e a explosão de conflitos que havia na região permearam a literatura judaica da época. Isso era muito mais do que um reflexo do conflito nacional: era a realidade da vida em uma terra menos refinada que a dos Estados Nacionais da Europa, sob o corrupto domínio do Império Otomano, onde os habitantes de qualquer nação ou religião nunca estavam a salvo de um ataque repentino.
Em 1902, Theodor Herzl escreve uma novela em alemão chamada Altneuland (A Velha Nova Terra). Esta leitura é indispensável para compreender a visão e o desejo do sionismo político no que tange as populações árabes e a relação entre os povos no local de estabelecimento do futuro Estado judeu.
A história descreve uma utópica sociedade em Israel no ano de 1923. A Palestina floresce graças às riquezas econômicas e culturais trazidas pelos imigrantes judeus. É criada uma sociedade modelo, onde há cooperação entre todos os habitantes que desfrutam de plena igualdade: judeus e árabes, nativos e novos imigrantes.
Herzl estava convencido de que o crescimento econômico transformaria a sociedade árabe de modo que possíveis problemas advindos de um desejo nacional deste povo sobre a região seria algo impensável. Os árabes venderiam suas terras de bom grado à “nova sociedade” e seriam aceitos como cidadãos de pleno direito. Eles seriam gratos aos judeus pela melhoria do seu padrão de vida.
Um dos protagonistas árabes do romance, Rashid Bey, é um engenheiro nascido em uma família rica que havia lucrado com vendas de terras ao establishment judaico. Em um dos capítulos, quando perguntado: “O que vai acontecer com todos os fallahs (agricultores) que não têm terra para vender?”, ele responde: “Quem não tem nada a perder, claramente só tem a ganhar. Veja tudo o que eles ganharam: emprego, bons salários, uma vida melhor. Não havia nada mais patético e miserável como a visão de uma aldeia árabe na Palestina no final do século XIX. Os agricultores viviam em ca-
Trilhando o caminho de banas de barro surrado impróprias para um Herzl, Chaim Weizmann, então representante chiqueiro. Os bebês não tinham roupas, estavam sem cuidados e cresciam como animais selvagens. Agora, tudo isto mudou. Os judo movimento sionista, deus drenaram os pântanos, construíram saviaja a Londres para neamento e plantaram eucaliptos restauranassinar um acordo do a terra, tudo com a ajuda de fortes opecom Emir Faisal, com rários locais que receberam salários justos”. Em seguida, Rashid Bey leva alguns o objetivo de regular visitantes a um passeio por uma aldeia as relações entre o árabe, onde avistam um minarete de uma movimento sionista pequena mesquita que rasga o horizone o reino árabe que te, e explica: se organizavam após “Essas pessoas estão muito mais felizes agora. Elas possuem uma vida honesta, a Primeira Guerra seus filhos são saudáveis e eles estão indo à Mundial. escola. Nem a religião nem os costumes antigos estão prejudicados, ao contrário, eles só foram beneficiados”. Um dos aspectos mais fascinantes do livro é a descrição da campanha eleitoral que ocorria em 1923. A campanha estava centrada no futuro dos direitos civis dos habitantes não judeus do país. Ao contrário do que erroneamente se diz do sionismo – que este havia ignorado a existência de árabes no país –, o livro revela não apenas uma consciência da existência da população árabe; o Estado judeu de Herzl estava fundado no conceito de que todos os seus habitantes, independentemente de religião, raça ou gênero, desfrutavam de igualdade de direitos, inclusive o
direito ao voto. Esses direitos eram estendidos não apenas aos árabes, mas também às mulheres; é sempre bom lembrar que, mesmo na democracia liberal onde vivia o autor, não lhes era permitido o voto.
No livro, não apenas os árabes do país têm o direito de votar como alguns ocupam posições-chave dentro de partidos políticos. Um novo partido surgido na campanha de 1923 é dirigido pelo anti-herói da trama, um homem que havia chegado recentemente ao país e queria anular a cidadania e rescindir o direito de voto dos não judeus. Herzl brinda o fundador deste partido com o significativo nome Geyer (que em alemão significa abutre). O argumento dele era simples: este é um Estado judeu, e só os judeus devem ter o direito à cidadania. Outros podem permanecer e serão tolerados como meros residentes, mas não merecem direitos políticos iguais.
Enquanto Geyer reivindica a exclusividade dos direitos civis para os judeus, os liberais justificam a necessidade da igualdade de direitos para os habitantes árabes, com base em princípios universais, liberais e principalmente nas fontes judaicas. Depois de uma eleição bem disputada, os liberais sagram-se vencedores. Geyer, derrotado e com vergonha, acaba deixando o país.
Em Altneuland, Herzl combina uma sociedade ideal com um realismo político inigualável. Como alguém que tinha visto de perto o racismo antissemita, ele compreendia muito bem que os judeus também poderiam se tornar racistas em seu Estado. Entretanto, em contraste com a Europa, onde o racismo foi vitorioso, na Israel dos sonhos de Herzl os princípios da igualdade e do liberalismo ganharam o cenário político. Suas crenças foram enraizadas na ideia histórica de “progresso”, que significava o avanço da humanidade em direção a um futuro melhor através da sabedoria e inteligência. Em termos práticos, Herzl acreditava que a construção de pilares democráticos e do desenvolvimento proporcionado pela tecnologia nos ajudaria a convencer os árabes a receber o sionismo de braços abertos.
No capítulo da longa história do povo judeu em que reconquistamos o direito à nossa autonomia judaica e ao seu autogoverno, Herzl inaugura a nossa “busca por Rashid
Em 1925, Martin Buber Bey” – ou seja – a busca por uma lideem conjunto com diversos intelectuais rança árabe que compreenda como benéfica a chegada dos judeus à terra de seus ancestrais e, pautando-se nos valores dejudeus criou um mocráticos e liberais, se comprometam a movimento denominado desenvolver a região em conjunto com o
“Brit Hashalom”, que nosso povo. defendia a criação de “Em busca de Rashid Bey” – O acordo um Estado binacional Weizmann-Faisal em que judeus e árabes Trilhando o caminho de Herzl, Chaim gozassem de plenos Weizmann – então representante do modireitos sob o Mandato vimento sionista – viaja a Londres para Britânico. assinar um acordo com Emir Faisal, filho do Grande Sharif de Meca Hussein bin-Ali, com o objetivo de regular as relações entre o movimento sionista e o reino árabe que se organizavam após a Primeira Guerra Mundial. As circunstâncias do acordo, citado por alguns historiadores, era a liderança que o rei possuía dentro do mundo árabe em decorrência da promessa britânica de que uma vasta porção de terra seria concedida ao seu reinado após a guerra. Ao mesmo tempo em que a Declaração Balfour havia sido divulgada e existia a promessa de que os britânicos “viam com bons olhos o estabelecimento do lar judaico na Palestina” também crescia o entendimento de que a terra pertencente aos ingleses seria dividida entre judeus e árabes. As principais cláusulas do acordo pareciam saídas do romance de Herzl: ficava determinado que as futuras relações seriam baseadas na compreensão e cooperação mútua entre árabes e judeus. A imigração judaica para a Palestina seria incentivada devendo-se manter o status de agricultores árabes e suas propriedades nas fronteiras israelenses. Garantia a liberdade de religião e controle muçulmano dos lugares santos para o Islã. Consentia com o envio de uma delegação sionista à Palestina para a realização de um estudo acerca das possibilidades econômicas do país com recomendações que ajudariam o seu desenvolvimento. Faisal anexou ao documento uma declaração escrita a mão condicionando a validade do acordo ao cumprimento das promessas inglesas. Ao final da guerra, uma decisão na conferência de paz negou a independência e o controle do Emir sobre a vasta região que ele desejava. O acordo Faisal-Weizmann sobreviveu apenas alguns meses.
“Em busca de Rashid Bey” – Martin Buber e o Brit Hashalom
Em 1925, Martin Buber em conjunto com diversos intelectuais judeus criou um movimento denominado “Brit Hashalom” que defendia a criação de um Estado binacional em que judeus e árabes gozassem de plenos direitos sob o Mandato Britânico. Os integrantes do movimento compreendiam a importância nacional para o desenvolvimento e preservação da cultura hebraica ao mesmo tempo em que almejavam criar um entendimento histórico baseado em um denominador comum entre as culturas que ocupavam a região.
O objetivo do movimento era muito claro: pavimentar um caminho de entendimento entre judeus e árabes para uma vida em comum na Terra de Israel, com base em direitos políticos plenos aos dois povos e na cooperação mútua em prol do desenvolvimento do país.
O grupo sustentava que eram os únicos a seguir a verdadeira corrente sionista, uma vez que a literatura de Herzl falava explicitamente sobre a coexistência entre judeus e árabes em Israel. O grupo sugeriu que o sionismo deveria retornar à sua verdadeira fonte ao acusar os líderes do Yishuv da época de utilizar-se das palavras de Herzl para estabelecer um lar nacional judaico, ignorando o restante de sua visão em relação ao contexto local e os distintos povos que viviam na região.
Após a decisão do Congresso Sionista que rejeitou a possibilidade de um Estado binacional, declarando o seu desejo de estabelecer um Estado judaico soberano e independente, que preservaria direitos políticos plenos a todos os seus cidadãos, o movimento foi lentamente dissolvendo-se e acabou por desintegrar-se no início dos anos 30. Ainda hoje é possível ouvir vozes isoladas advogando em prol deste ideal.
“Em busca de Rashid Bey” – Os encontros de Golda Meir com o Rei Abdullah
Em 1947 os britânicos anunciaram sua intenção de deixar a Palestina, delegando o futuro do país para a Organização das Nações Unidas. Como a Assembleia-Geral da ONU se preparava para votar a partilha da Palestina em dois Estados: árabe e judeu, Golda Meir foi enviada em uma missão clandestina para negociar pessoalmente com o rei Abdullah da Transjordânia. Em uma reunião em novembro de 1947, o rei declarou-se um aliado dos sionistas e prometeu abster-se de hostilidades contra o Estado judeu. No entanto, seis meses depois, rumores chegaram à liderança do Yshuv que Abdullah havia se integrado à Liga Árabe que planejava um iminente ataque a Israel.
Quatro dias antes da Declaração de Independência de Israel, em maio de 1948, Golda Meir partiu novamente ao encontro de Abdullah, para uma reunião em Amã. Ela viajou disfarçada como uma autêntica mulher árabe. Golda insistiu para que o rei não se juntasse a outros países árabes no ataque planejado ao futuro Estado judaico, tentando convencê-lo das enormes potencialidades entre os dois países. Desta vez, o rei foi menos caloroso. Ele admitiu que os judeus eram seus únicos aliados na região, mas disse que suas mãos estavam atadas. Abdullah pediu a ela para não se apressar para proclamar um Estado. Meir respondeu: “Nós estivemos esperando por 2.000 anos. Será que estamos muito apressados?”.
Ao final do encontro, o rei ofereceu aos judeus o status de uma minoria protegida em uma região na Jordânia. Meir, sem surpresa, rejeitou a oferta.
“Em busca de Rashid Bey” – Rabin e Arafat no acordo de Oslo
Itzhak Rabin chegou ao poder nas eleições realizadas em junho de 1992, depois de haver prometido um acordo com os palestinos dentro de seis a nove meses após a sua vitória. No final de 1992 e em 1993 o chanceler Yossi Beilin iniciou conversações secretas, primeiro em Londres e depois em Oslo, realizadas diretamente com a liderança da OLP. As conversações avançaram de forma progressiva até a sua cristalização no acordo assinado entre o primeiro-ministro israelense e o líder da Autoridade Palestina Yasser Arafat.
O acordo compreendia o reconhecimento mútuo das narrativas históricas de cada povo sobre a região e estabelecia uma divisão do território. Incluía ainda cooperação econômica e tecnológica para o progresso da região.
A aceitação dos acordos de Oslo, incluindo conversações diretas com a liderança da OLP, foi uma mudança importante da política israelense, que até então havia se recusado a sentar para dialogar com organizações consideradas terroristas que clamavam pela destruição de Israel.
A possibilidade de um processo de paz definitivo com os palestinos criou uma profunda ruptura na sociedade israelense. Manifestações agressivas contra Rabin foram rea-
lizadas por políticos de direita, mas o primeiro-ministro, com muito jogo de cintura, conseguiu aprovar o acordo perante o Knesset. A sociedade israelense aprovava o gesto de Rabin em direção a paz e tentava reconhecer em Arafat a personificação do herói árabe de Altneuland.
No dia que o acordo foi assinado, foi transmitida pela TV jordaniana a mensagem em que Arafat se dirigia em árabe para o povo palestino. Ele declarava o sucesso de seu encontro com Rabin: Yasser Arafat afirmou então que os Acordos de Oslo eram apenas uma parte do “programa de etapas” da OLP para a eliminação do sionismo. Seis meses após a assinatura do acordo, Arafat discursou em Johanesburgo clamando para que as nações islâmicas se unissem em uma “jihad” para libertar Jerusalém. O herói se revelava então o perfeito anti-herói do romance de Herzl.
O final da história todos conhecemos. Rabin foi assassinado por um extremista judeu, mas seus sucessores continuaram comprometidos com o processo de paz. Do lado árabe, as posições de Arafat e seus sucessores também se mantiveram inalteradas – uma face pacífica em inglês e uma beligerante em árabe. O processo não logrou a paz.
Conclusão
Herzl acreditava que a força oculta por trás da ideia sionista era servir como uma ferramenta de evolução que levaria os avanços e liberdades do mundo ocidental para todo o Oriente Médio. Em suas próprias palavras, ele espe-
Os acordos de Oslo rava que o sionismo se constituísse como compreendiam o reconhecimento “uma força pioneira contra a barbárie”. Em nossos dias, tal declaração seria facilmente taxada de “politicamente incorremútuo das narrativas ta”. Mas definitivamente este não é o caso. históricas de cada Trata-se de uma percepção comum para povo sobre a região o contexto vivido pelo autor, que enxere estabelecia uma gava o progresso que o iluminismo europeu poderia trazer aos Estados governadivisão do território. dos pelo Islã.
Incluía ainda Nos texto acima, tentou-se destrincooperação econômica char apenas alguns exemplos e momene tecnológica para o tos em que a liderança e a sociedade juprogresso da região. daicas buscavam o “Rashid Bey” na sociedade árabe. Infelizmente, até o presente momento, o realismo político da região tem se mostrado uma barreira intransponível ao futuro do Estado judeu desejado por Herzl. Em Altneuland, Herzl cria um lema que seria repetido por muitos e muitos anos: “Se quiseres, não será uma lenda”. Como o livro foi escrito originalmente em alemão, não sabemos até os dias de hoje se o autor direcionou esta frase aos leitores judeus ou se incluiu os árabes em sua exortação. Tenho a percepção de que no dia em que a sociedade árabe aderir aos valores iluministas e democráticos o desejo de paz na região deixará de ser uma antiga lenda para se transformar na “Velha Nova Terra” de progresso, cooperação e igualdade perante a lei. Marcelo Treistman é advogado e trabalha com tecnologia em Israel, onde vive desde 2007. É ex-boger da Chazit Hanoar do Rio de Janeiro.
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