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Rabino Dario Ezequiel Bialer
Histórias do messias
O certo é que a redenção, o final dos dias e o Messias são tópicos recorrentes que cada geração se pergunta. O Cristianismo resolveu a questão com o dogma de Jesus. Contudo, o judaísmo não. Gosta do indefinido. Das discussões rabínicas nas quais tudo está aberto e tudo é possível.
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As fotografias deste artigo são do relógio astronômico de Praga, República Tcheca.
rabino dario ezequiel Bialer
Conta o Talmud que Elihau Hanavi (o profeta Elias) gostava muito de ir estudar no Bet Midrash de Rabi Iehuda1, localizado em Tzipori. Um dia Elias não chegou para a aula e, como bom mestre, Rabi Iehuda lhe pergunta: O que houve? – Me desculpe Rabi, não consegui chegar a tempo, pois tive que acordar Abrão Avinu do seu sono profundo, lavar suas mãos, esperar até que acabasse suas preces matinais para depois levá-lo de volta ao seu lugar de descanso. Em seguida, tive de fazer a mesma coisa com Isaac e, por último, com Jacó. Assim perdi o dia inteiro. – E por que você não acorda os três ao mesmo tempo para rezarem juntos? Dessa forma você ganharia tempo e não chegaria tarde. – Não podemos fazer isso! A força dos três juntos através da tefilá pode ocasionar a chegada do Messias antes do seu tempo. – E, em nossos dias, temos outro exemplo de alguém capaz de conseguir o mesmo que os patriarcas no mundo vindouro? – Há sim: Rabi Chia e os seus dois filhos.
Rabi Iehuda de imediato chamou Rabi Chia e o convidou – junto com seus filhos – para liderar a reza na sinagoga de frente ao Aron Hakodesh.
Quando chegaram no trecho da Amidá onde se diz “mashiv ha ruach” – que fazes soprar o vento – os ventos começaram a rugir. E quando recitaram “morid ha gashem” – que fazes cair as chuvas – começou a chover com uma força nunca antes vista.
Avançaram um pouco mais e na hora de rezar “mechaiê ha metim”, o trecho que corresponde ao retorno dos mortos à vida, o universo começou a tremer!
Nesse instante se ouviu uma voz do Céu que perguntou: quem revelou o segredo? Elias, o profeta – responderam.
De imediato Elias foi chamado às alturas celestiais e advertido por seu comportamento para, em seguida, ser enviado de regresso à terra na forma de um urso de fogo, com a finalidade de assustar o Rabi Chia e seus filhos, confundir suas preces e evitar que os tempos messiânicos se adiantassem. (Baba Metsia 57b)
É uma história bonita – e também profunda! – se evitarmos a leitura superficial. Não se trata da história de pessoas especiais que pronunciam as palavras exatas na hora certa. Definitivamente não é a Mega Sena, na qual, se você acertar uma combinação bem improvável, ganha de prêmio um Messias!
Os sábios do Talmud sabiam isso muito bem. E tinham também uma ironia bem aguçada.
Não é por acaso que perguntam ao profeta Elias por que ele está atrasado.
Não apenas porque chegou tarde aos estudos.
A verdadeira pergunta é: Por que tem se atrasado tantas gerações? A pergunta do relato é sobre a redenção.
Essa pergunta que inquietava aos sábios talmudistas ainda permanece aberta. E mesmo que eles recomendem “é melhor não ocupares a mente com pensamentos sobre o Messias, para não confundires teus pensamentos”, o certo é que a redenção, o final dos dias e o Messias são tópicos recorrentes que cada geração se pergunta. Outras religiões têm se aprofundado muito nessa doutrina, principalmente o Cristianismo, que resolveu a questão com o dogma de Jesus. Eles já colocaram isso preto no branco.
Contudo, o judaísmo não. O judaísmo é cinzento. Gosta do indefinido. Das discussões rabínicas nas quais tudo está aberto e tudo é possível.
A visão dos profetas
A abertura judaica se expressa também em tudo o que tem a ver com a vinda do Salvador, e as próximas linhas tentaram organizar o que o judaísmo tem a dizer sobre isso.
A ideia de um ungido por Deus para salvar a humanidade se encontra nas previsões dos profetas com olhares contrapostos. Um olhar amplamente difundido é o escatológico, que procura explicar o que acontecerá no
Quando perguntavam fim dos dias. O profeta Daniel até mesao sempre instigante Yeshayahu Leibowitz se mo calcula quando será esse tempo: “Setenta semanas foram decretadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade, para fazer o Messias estava para cessar a transgressão, para dar fim aos pecachegar, ele respondia dos, para expiar a iniquidade, trazer a juscom toda a sua tiça eterna, selar a visão e a profecia e para devoção: “Ele virá! Ele ungir o santíssimo” (Daniel 9:24). Depois disso, o profeta detalha o que virá: um virá! Ele virá! Mas todo afastamento da ordem para coroar o unMessias que vier será gido em tempos angustiantes, com desum Messias falso!”. truição, inundações, guerra e devastações terríveis. Em acréscimo, no Talmud tratado de Iomá2, está escrito que uma semana em Daniel 9 significa uma semana de anos. Assim, muitos vêm em Jesus a materialização da profecia, aproximadamente 490 anos depois. Mas a maioria dos sábios não gosta da abordagem de Daniel, e desde o Talmud lhe respondem que “está proibido especular e calcular sobre quando serão ‘os últimos dias’”. O outro olhar poderia ser sintetizado na profecia de Isaias. Ele fala que se reestabelecerá a soberania de Jerusalém como centro espiritual e que o Messias, descendente do rei David, restituirá o esplendor de Israel, não no que concerne a riquezas e poderio físico, senão como um reino de Deus no qual todos os recursos morais, intelectuais e espirituais seriam alocados para construir uma sociedade justa. Na visão de Isaías, o Messias será um homem de coração puro, sábio, justo, suave, porém invencível em seu poder espiritual, que, motivado por seu amor a toda a humanidade, implantará a justiça e a paz eternas no mundo. Temos também uma valiosíssima referência sobre a grande força messiânica no período do segundo templo, após a descoberta dos rolos do Mar Morto. Um dos principais livros que documenta isso é Pesher Habacuque, um comentário ao profeta bíblico Habacuque escrito pela seita de Qumran no qual, além de interpretar ao profeta, inserem referências ao líder da seita o Mestre da Justiça: “Deus ordenou Habacuque a escrever as coisas que acontecerão à última geração, mas não contou a ele sobre o fim dos últimos tempos”. Quanto à frase, “para que corra aquele que a leia”, refere-se ao Mestre da Justiça, a quem Deus revelou todos os segredos das palavras de seus servos, os profetas. “Porque a visão é para um tempo determinado... Embora tarde, espere-o”... refere-se ao fato de
que o final pode ser prolongado para além do que os profetas previram, posto que são maravilhosos os segredos de Deus” (lQpHab 7c).
A conjuntura histórica e a vinda de falsos messias
Essas sementes de redenção messiânica no judaísmo devem ser contextualizadas nos traumas nacionais sofridos ao longo da história. O momento mais emblemático foi a destruição do templo de Jerusalém e a revolta de Bar Cochba que, para muitos (Rabi Akiva entre eles), não era outro senão o Messias que tinha chegado para trazer a redenção.
Posteriormente houve muitos outros episódios de perseguição contra os judeus e em todos se renovou a esperança messiânica com um novo ímpeto. A maioria foi retratada em literatura sobre o inexorável fim do mundo.
Assim aconteceu no período posterior às Cruzadas (1096), à epidemia da peste negra na Europa (século XIV), à expulsão dos judeus da Espanha e de Portugal (1492 e 1496) e aos pogroms na Polônia e Ucrânia (1648). Essa escatologia no judaísmo foi terreno fértil para os supersticiosos e os cabalistas deixarem sua marca, com ideias de caráter utópico, posteriormente afirmadas pela aparição do Zohar, e também pela influência cristã, acreditando fortemente em que a ordem natural se modificaria na era messiânica.
Segundo Paulo, Adão – o primeiro homem – corresponde a Jesus – o último homem – (Romanos 5:17), e, coincidentemente, os cabalistas asseguram que a alma do Messias será a mesma do Adão que no passado já transmigrara para o Rei David (existe um conhecido notarikon do século XIII que ensina que as letras de Adão, alef, dalet, mem, correspondem a Adão, David e Messias). Essas ideias já estavam presentes na época de Nahmanides; ele e seus discípulos se centravam na concepção midráshica de que a redenção seria um retorno a essa perfeição que foi profanada pelo pecado de Adão e Eva. Dessa forma, a redenção assumiria a forma que foi planejada desde o início por Deus.
A combinação entre os pogroms contra a comunidade judaica na Polônia e na Rússia e a nova religiosidade mística deu origem ao maior movimento messiânico desde a época do segundo templo, o Shabatianismo, que começou no ano 1665 quando Shabetai Tsvi, um homem erudito, de conduta ascética e emocionalmente conturbado (o que a psiquiatria moderna chamaria de maníaco-depressivo) se autoproclamou o Messias, uma ideia que no início foi abraçado com entusiasmo por muitos, mas aos poucos foi perdendo força.
O que seguiu foi a nova Cabala de Tsfat, impregnando de messianismo o antigo misticismo, e criou o conceito de que o caminho para a chegada do Messias deve ser preparado com o que eles chamavam de restauração, em hebraico Tikun. Não era uma esperança abstrata num futuro distante. A Cabala de Luria transmitia um grande otimismo divulgando que quase todo o processo já tinha sido feito e que a redenção final estava logo ali adiante.3
A utopia messiânica e o pensamento judaico
Quando perguntavam ao sempre instigante Yeshayahu Leibowitz se o Messias estava para chegar, ele respondia com toda a sua devoção: “Ele virá! Ele virá! Ele virá! Mas todo Messias que vier será um Messias falso!” .
Ao ser questionado como poderia ter tanta devoção sobre o Messias e, ao mesmo tempo, negá-lo, Leibowitz dizia que a nossa liberdade está totalmente condicionada à liberdade dos outros seres humanos. Somente quando todos os seres humanos forem livres poderá chegar a redenção e o Messias.
Muito afastado das ideias escatológicas, Maimônides criticou essa doutrina ao mesmo tempo em que abraçou com fervor a causa messiânica (mesmo sendo um racionalista). Não devemos esquecer que em seu famoso “Ani maamin”, os 13 princípios da fé, ele disse: “Creio firmemente na chegada do Messias. Esperarei sua chegada pelo tempo que tomar”.
Para Maimônides, Deus é revelado dentro da ordem natural do universo. No Mishnê Torá ele destaca que, quando o Messias chegar, o mundo “Ke minago noheg”4 , querendo dizer que o mundo continuará seu curso normalmente. De acordo com essa escola de pensamento, não precisamos ver Deus como sobrenatural a fim de sentir que Ele está presente. O Rambam vai além, ao dizer que essas ideias não conduzem a Deus; nem ao temor a Deus, nem ao amor a Deus, portanto ele as desconsidera.
Todas essas tentativas recorrentes no percurso histórico do povo judeu de achar alguém e coroá-lo como o Messias foram formas de reeditar a redenção do Egito. A instauração da justiça, a liberação do sofrimento, mas sobretudo o sentimento de que Deus ainda está aqui, operando na história e cuidando de nós, como uma mãe que, quando estamos com medo, nos acaricia o rosto e nos diz que não precisamos temer, que tudo estará bem.
Apos a expulsão dos judeus da Espanha lentamente foi ganhando adeptos a concepção de que o surgimento do Messias seria um acontecimento simbólico. A redenção dependeria dos feitos de Israel e do cumprimento do seu destino histórico. A vinda do redentor testemunharia a conclusão da restauração, mas não a causaria.5
Essa foi a grande reivindicação de um grande rabino contemporâneo, Mordechai Kaplan6, iniciado no movimento conservador e fundador do Reconstrucionismo. Ele defende a tese (seguramente inspirado no próprio Maimônides, como em Spinoza) de que as leis da natureza são exatamente a vontade de Deus e que não faz sentido defender a ideia de que a expressão máxima de Deus na Terra seria uma quebra total desse paradigma.
Redenção não significa a salvação no além ao final dos tempos. Não é o Mundo Vindouro ou a Ressurreição dos Mortos. Para Kaplan, a redenção não é algo que vai acontecer no final dos dias quando seremos instruídos a fazer as malas para ir a Jerusalém e acolher o Messias. Kaplan interpretou o judaísmo como algo tão real quanto uma experiência e não como uma obsessão sobrenatural. Ele não acreditava que a revelação fosse o rompimento da história por Deus.
Ele nem acreditava que o judaísmo é essencialmente de Deus! É antes do povo judeu, dizia. Uma oração do povo judeu para Deus.
A redenção como potencial humano
O messianismo é uma esperança. Se acreditamos que a redenção não é um ponto na história, mas uma aspiração religiosa para refazer a história, deveria ser também esperança do potencial do ser humano.
Assim chegamos a um dos capítulos mais significativos da história judaica contemporânea que o sionismo religioso chamou de “hatchalta de gueulá”, uma expressão em aramaico originada no Talmud e que ganhou notoriedade a partir do sionismo religioso. Será o início da redenção, os primórdios da vinda do Messias, quando assumirmos que o destino histórico do povo judeu está em nossas mãos.
David Hartman (grande exponente do sionismo religioso) acreditava que a aspiração messiânica, bem como qualquer outra esperança poderosa, deve agir como crítica sistemática ao status quo da história.
O judaísmo olha para trás, de forma criativa, para se lançar ao futuro. A um tempo messiânico que ainda deve ser construído.
A história do Talmud de Elihau e Rabi Iehuda nos lembra que a redenção não é coisa do passado. Não se trata de uma linha uniforme e contínua de causas e efeitos perfeitamente anunciados nas sagradas escrituras de religião alguma. Também não é o retorno ao paraíso perdido, não significando um olhar nostálgico a um passado que foi melhor.
Walter Benjamim, o genial filósofo alemão, dizia: “O passado é uma débil força messiânica”; tudo depende de como é utilizado, pois a vinda do profeta Elihau para anunciar a redenção não é uma coisa já garantida, que só resta saber quando acontecerá. Estamos falando de uma construção ética que pode acontecer ou não.
Quando Rabi Iehuda levanta sua voz e pergunta “por que demorou tanto?”, ele fala olhando a Elias, mas está interpelando a nós. Como estamos utilizando nossas potencialidades para criar um mundo com espaço para o divino? Nós recebemos em herança uma tradição que acreditamos nos ajudar bastante nessa obra, mas, como toda herança, nos leva à problemática do que fazer com aquilo que nos foi legado. Como honrar o que recebemos? Como sermos dignos merecedores dessa herança?
Redimir é uma ação muito poderosa que começa com
O messianismo é uma intuição interior e se transforma uma esperança. Se acreditamos que a num crescimento do indivíduo que vai em direção a se tornar um ser humano completo. Redenção não é uma construredenção não é um ção filosófica ou teológica abstrata, mas ponto na história, mas um ajuste fino da alma humana que nos uma aspiração religiosa ajuda a amar mais e sermos mais sensíveis para refazer a história, e criativos para perseguir as utopias e ser artífices das transformações que acredideveria ser também tamos necessárias para alcançar um temesperança do potencial po nesse mundo que expresse tudo o que do ser humano. tem de humano e de divino.
Notas
1. O grande sábio que no século III compilou a Mishná. 2. Talmud da Babilônia, Iomá 54 a. 3. Scholem, Guershon “Cabala”, em Judaica, ed. A. Koogan, Rio de Janeiro, 1989 (p. 221). 4. Ver Mishne Tora, Hilchot Melachim 12:1. 5. Scholem, Guershon “Cabala”, em Judaica, ed. A. Koogan, Rio de Janeiro, 1989 (p. 302) . 6. Nascido na Lituânia em 1881 e falecido em Nova Iorque em 1983. O Rabino Dario Ezequiel Bialer serve na Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro – ARI. Cursou os estudos rabínicos no Seminário Latino-Americano Marshall T. Mayer, em Buenos Aires, Argentina, e no Schechter Institute for Jewish Studies, em Jerusalém, Israel.
Pacaypalla / iStockphoto.com Revista da Associação Religiosa Israelita-ARI | devarim | 13

