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Annette M. Boeckler
talvez CHanuCá não seja o que voCê pensa
dra. annette m. Boeckler
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Estando agora a muitos quilômetros do Rio de Janeiro, sinto saudades, relembrando com gratidão a minha semana muito especial na cidade em setembro passado. As Grandes Festas já passaram e o próximo evento do calendário judaico é Chanucá, em dezembro. Atualmente Chanucá é um grande evento, mas isto não foi sempre assim. As velas nas noites, os presentes, os bolos doces fritos, as canções populares, os jogos de crianças... tudo isso é muito conhecido. No hemisfério norte é um festival quente e feliz no meio do inverno gelado.
Mas nenhuma destas sensações agradáveis transmite com exatidão qual a mensagem original de Chanucá. Na verdade, não nos ensina quase nada sobre esta mensagem, assim que para buscar este conhecimento temos que estudar as rezas de Chanucá em nosso Sidur. E esta busca contém muitas surpresas.
Do ponto de vista litúrgico, Chanucá não é uma festa (chag); é um dia útil normal, com a exceção de que cantamos o halel e fazemos pequenas inserções específicas nas rezas. Durante os dias de Chanucá, inserimos na Grande Oração (Amidá) e na Benção de Agradecimento Pela Refeição (Bircát Hamazón) uma fórmula de agradecimento pelos milagres de Chanucá. Se chama “al hanissim”: “pelos milagres”. Agradecemos “pelos milagres, pela redenção, pelo heroísmo, pelos salvamentos e pelas lutas que Tu [Deus] fizeste por nossos antepassados naqueles dias, nesta época, nos dias de Matitiáhu Ben Iochanán, Chashmonaí, o Cohen gadol (Sumo Sacerdote)”. Nos Sidurim da ARI vocês encontram essa reza na página 15f do Sidur Shavua Tov e na página 78 do Sidur Shabat Shalom (a tradução é um pouco diferente lá). O judaísmo liberal postulou desde o início no século XIX que as rezas tinham que se adequar aos nossos sentimentos e pensamentos. E assim, o que fazer com uma reza que não exprime o que nós conhecemos?
Reproduções dos livros: Annette M. Boeckler.
1. Einheitsgebetbuch, 1933, p. 506-507.
E aqui nós temos o primeiro problema: Matitiáhu Ben Iochanán não foi um “Cohen gadol” (Sumo Sacerdote), ele foi apenas um Cohen, sem maior hierarquia. Talvez vocês digam: E qual o problema disso? Não faça tanto barulho sobre esta bagatelinha! Mas não é uma bagatela. Um Sumo Sacerdote tem que ser filho da família de Arão. Ele era a única pessoa autorizada a entrar no Santo dos Santos e isto apenas num único dia do ano, no dia de Iom Kipur. Ele era a pessoa mais sagrada do judaísmo antigo. Ele tinha o poder de purificar, de decretar os julgamentos de Deus e de liberar pessoas criminosas; ele tinha funções e responsabilidades muito especiais. Por isso, usava roupas especiais, como descrito na Torá na Parashat Terumá (Shemot / Êxodo 28).
Teria sido emocionante se Matatiáhu tivesse sido o Sumo Sacerdote, que ressantificou o nosso templo na época da invasão grega, no evento que comemoramos em Chanucá. Mas não foi assim, ele não era da família de Arão. A família de Matitiáhu era de sacerdotes normais, pessoas que faziam as tarefas diárias menores – sabemos isto graças a fontes históricas gregas. O que me intriga não é que Matitiáhu tenha sido ou não um Sumo Sacerdote, mas sim que uma reza diga que ele o foi, sem ser verdade. Então a pergunta é: O que é que as nossas rezas transmitem?
O judaísmo liberal postulou desde o início no século XIX que as rezas tinham que se adequar aos nossos sentimentos e pensamentos. E assim, o que fazer com uma reza que não exprime o que nós conhecemos?
O pai da liturgia acadêmica, o rabino Dr. Abraham Geiger (1810-1874), disse que as rezas que não exprimem os nossos pensamentos e o nosso conhecimento têm que ser mudadas ou mesmo eliminadas da liturgia congrega-

2. Livro de Rezas para todo o ano israelita, 1953, p. 88-89.
cional. Então o Dr. Geiger mudou a reza “Al hanissim” e explicou em 1870: “Nem Matitiáhu nem o pai dele, Iochanán, foram Sumo Sacerdotes; somente Jônatas, o filho dele, o foi; um erro histórico não deve ser perpetuado na oração”.2
O Dr. Geiger tinha autoridade! Seu pensamento influenciou decisivamente o desenvolvimento da liturgia progressista durante o período da Reforma clássica, inclusive o primeiro livro de rezas usado na ARI, que foi uma tradução em português do Einheitsgebetbuch, o último livro liberal alemão de rezas, lançado em 1929 com edições em 1931, 1933 e 1938.
O Einheitsgebetbuch oferece o seguinte novo texto: Al hanissim... bimé Matitiáhu ben Iochanán hacohen Chash-
Do ponto de vista monaí... “Nos dias de Matitiáhu, filho litúrgico, Chanucá não de Iochanán, o sacerdote, da família dos é uma festa (chag), Chasmonaim”. (Figura 1) O primeiro livro de rezas usado na é um dia útil normal, ARI e na CIP foi uma adaptação deste com a exceção de Einheitsgebetbuch para o português, feito que cantamos o halel pelos rabinos Dr. F. Pinkuss e H. Lemle. e fazemos pequenas Mas para Chanucá, a primeira edição desinserções específicas te sidur, lançado em 1953, não usa o texto do Einheitsgebetbuch, mas o tradicionas rezas. nal, com Sumo Sacerdote em hebraico e em tradução: Al hanisim ... bimé Matitiáhu ben Iochanán Cohen gadol, Chashmonaí... “Nos dias de Matitiáhu, da família do sumo pontífice Yochanan o Hashmonaí...” (p. 89). (Figura 2) Já a segunda edição oferece o texto hebraico do

3. Livro de Rezas para todo o ano israelita, 1966, p. 80-81.
Einheitsgebetbuch (é uma cópia do texto hebraico – compare as fotos do Einheitsgebetbuch e do Sidur da ARI de 1966) com a correção histórica do judaísmo liberal clássico alemão, porém a tradução para o português não foi mudada para acompanhar a renovação do texto em hebraico. A tradução é exatamente a mesma de 1953. (Figura 3)
O mesmo continuou no Sidur seguinte O nosso Shabat, lançado em 1976, ainda usando o texto hebraico fotográfico do Einheitsgebetbuch. (Figura 4)
Felizmente no Sidur usado hoje, a tradução coincide com o hebraico, porém, o erro histórico voltou, no texto hebraico e na tradução: “Nos dias de Matitiáhu, da família do sumo pontífice” (Shabat Shalom, 1997, p. 78). A congregação, fundada na liturgia alemã, não preservou o texto mudado de acordo com a liturgia liberal alemã clássica! É como se a relação entre os feitos históricos e as nossas rezas não importasse.
E vocês vão ficar ainda mais surpresos: mesmo os rabinos do Talmud não ensinam os feitos históricos de Chanucá, mas deliberadamente apenas as mensagens teológicas. A nossa liturgia é baseada nestes pensamentos não históricos dos rabinos antigos.
No judaísmo universal, não só na ARI ou no judaísmo progressista, nós abençoamos sobre as velas de Chanucá dizendo: “Bendito sejas Tu, Eterno, nosso Deus, Rei do Universo, que fizeste milagres para os nossos antepassados, naqueles dias, nesta época.” Segundo o Talmude (Shabat 21b), os milagres são os seguintes: os Macabeus entraram no Templo que tinha sido profanado pelos gregos. Os Macabeus descobriram uma única garrafa pequena de óleo purificado para acender a Menorá sagrada e a usaram para reiluminar o Templo. O óleo, que era suficiente apenas para um único dia milagrosamente queimou ao longo dos oito dias. Por isso nós acendemos uma vela a cada

4. O nosso Shabat, 1976, p. 164-165.
noite do festival como forma de gratidão.
Mas a verdade histórica é diferente. Ela nos é transmitida pelas fontes gregas (como nos livros do historiador Josephus) e especialmente pelos dois livros de Macabeus, escritos em grego (Septuaginta), que não foram incluídos na tradição judaica e já teriam sido esquecidos se a Igreja Católica não os tivesse preservado. Segundo os livros de Macabeus, a história de Chanucá é sobre uma violenta revolta militar dos judeus de Jerusalém contra os poderosos daquela época. Os gregos ordenaram a construção de um altar para o deus Zeus no Templo de Jerusalém e passaram a fazer sacrifícios de animais não kasher sobre esse altar, ordenando a todos que adorassem a Zeus.
Mesmo os rabinos do Então, ao sul de Jerusalém, na cidade de Talmude não ensinam Modiín, começa, no ano de 164 antes da os feitos históricos de Chanucá, mas era comum, uma ofensiva militar judaica contra os gregos. Os líderes foram Matitiáhu e seus cindeliberadamente co filhos. Após a morte de Matitiáhu em apenas as mensagens 166 BCE, o filho dele, Yehudá, toma a teológicas. A nossa frente da batalha. Yehudá acabou conheliturgia é baseada cido como Judas Macabeu (Judas, o Martelo). Depois de rededicar o Templo, eles nestes pensamentos celebraram o que tinha sido a última fesnão históricos dos ta judaica que eles não puderam celebrar rabinos antigos. no Templo a seu tempo. Então, um pouco atrasados, no mês de Kislev, eles celebraram no Templo os oito dias de Sukot que eles não puderam celebrar no mês do Tishrei. Por isso, Chanucá dura oito dias e nós cantamos o Halél. Não há menção ao óleo
para iluminação da Menorá na história dos livros de Macabeus.
Simon Macabeu, filho de Yehudá, fundou em 142 antes da era comum um Estado Judeu autônomo, teocrata, onde o Sumo Sacerdote também era o líder militar e político, com muitas guerras e com uma política por vezes muito cruel. Naquela época, o grupo dos fariseus foi fundado (os antepassados dos rabinos do Talmude) separando assim a religião das batalhas e das políticas do Templo e construindo uma religião praticada em geral nas famílias de todo o país. O último rei Hasmoneu foi Herodes o Grande (marido de uma filha da família Chashmonaí), bem conhecido por suas crueldades. Os romanos terminaram assim esse período de 126 anos de independência judaica nesse território (Josephus, Antiquitates 14:490f). E os rabinos do Talmude deduziram de tudo isso que grupos militares judaicos podem ser perigosos.
As coisas no tempo dos romanos ficaram piores por causa dos grupos militares – como os Zelotas – e, depois da revolta de Bar Kochba, os romanos proibiram todas as práticas judaicas em Israel. Então, os rabinos do Talmude não gostam de relembrar as batalhas dos Macabeus, apesar de que acham bom manter sempre acesa a lembrança da ajuda divina e dos valores judaicos. Então, eles inventaram uma história inspirada numa história do profeta Elias, que uma vez multiplicou óleo para uma mulher (1 Reis 17:716). Eles preservaram os dias de Chanucá como dias memoriais, mas os rabinos lhes deram uma mensagem nova e espiritual: esperança. Só hoje em dia, quando nós temos de novo um Estado Judeu, recomeçamos a nos interessar pela histórica segundo os dois livros de Macabeus e pelos fatos históricos da época grega. Então, hoje em dia Chanucá evoca para muitos mais sobre Judas Macabeus, heroísmo, batalhas, coragem, antiassimilação do que sobre milagres divinos.
E nós? Ficamos com uma reza que diz que Matitiáhu foi Sumo Sacerdote quando não o foi, e outra que agradece por um milagre de multiplicação do tempo de duração de uma chama de óleo, que não aconteceu.
Eu acho que tudo isso mostra que a religião judaica não
A religião judaica não é só uma lembrança do passado. É uma é só uma lembrança do passado. É uma mensagem para hoje e para o futuro. E os textos litúrgicos são arte, são poesia, expressando também valores ademais de famensagem para hoje tos. Às vezes nós usamos lembranças dos e para o futuro. E nossos antepassados, aprendemos da saos textos litúrgicos bedoria deles sobre a vida e sobre o munsão arte, são poesia, do. Mas o mais importante não são os fatos históricos, mas sim as mensagens e os expressando também valores que eles transmitiram para nós. valores ademais Esses oito aspectos são para mim o de fatos. O mais que podemos aprender como conto rabíimportante são as nico de Chanucá: mensagens e os valores Nunca desistir da esperança; Perseverar em nossas obrigações, mesque eles transmitiram mo em tempos difíceis; para nós. Acender luzes, trazer claridade e orientação ao mundo por ensinar e ser um bom exemplo; Nunca perder a coragem, mesmo quando nos sentimos sozinhos, pequenos e fracos; Verificar quando é bom se adaptar à cultura da sociedade e quando é bom ser diferente; Ser grato pelo que tem; Nunca desvalorizar uma coisa pequena, porque mesmo uma luz pequena tem grande força na escuridão e porque uma única luz tem o potencial de se multiplicar [por oito]; Prezar a alegria, a comunidade e realizar tarefas em grupo.
Notas
1. Agradeço aos meus grandes amigos Eddy Grossenstein e Silvia Gray por lerem as primeiras versões deste texto e por corrigir os erros do meu português, que aprendi de forma autodidata. 2. “Weder Mattathias noch sein Vater Jochanan war Hohepriester, erst sein Sohn Jonathan ward es; ein historischer Irrthum darf aber nicht im Gebete verewigt werden.” (A. Geiger, Plan zu einem neuen Gebetbuche nebst Begründungen, Breslau 1870, p. 32.) A doutora Annette M. Boeckler cresceu na Alemanha e vive atualmente na Inglaterra. É professora de Liturgia e Bíblia no Leo Baeck College em Londres. É autora de vários artigos sobre a Liturgia Judaica, por exemplo, nos livros da série “Prayers of Awe” por Lawrence A. Hoffman. Tem interesse especial em história e teologia da Liturgia Liberal Alemã e sua recepção. Esteve em visita ao Rio de Janeiro em setembro deste ano, onde travou conhecimento com a liturgia praticada na ARI e com a revista.

