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Paulo Geiger

a paz é perigosa?

Tenho vaga lembrança de ter escrito uma vez um artigo sob este mesmo título. Não importa, o tema e o título continuam atuais. Refere-se a uma vez irônica e atualmente bem real menção de um ‘perigo de paz’ para Israel. No passado longínquo, o presidente da Tunísia, Habib Bourguiba (foi ‘presidente’ durante 30 anos, de 1957 a 1987, coisa comum no Oriente Médio árabe da qual muitos presidentes hoje em dia têm inveja), dizia que se os árabes deixassem Israel em paz, a estrutura interna da sociedade israelense não resistiria a essa paz, e que Israel seria vencido por ela, já que era tão difícil vencê-lo na guerra.

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Isso era então risível, não por ser a ideia em si totalmente absurda, mas porque a ideia de uma paz externa era distante a ponto de ser irreal. Não havia o ‘perigo’ de que Israel não tivesse de enfrentar periodicamente uma guerra, nesta ou naquela fronteira, contra este ou aquele adversário, com este ou outro âmbito e duração.

Mas o desgaste de uma ‘guerra permanente’, da visão conceitual de um país eternamente em armas, de uma juventude sempre em alerta para servir e às vezes morrer para defender o país, de um conflito interminável com seus vizinhos dentro e fora de suas fronteiras e recentemente de um crescente isolamento em relação ao mundo – em sua incompreensão, em seus critérios de moral dupla e seletiva, em seu renascente antissemitismo disfarçado de anti-israelismo, em sua cega subserviência à propaganda dirigida à demonização de Israel –, todo esse desgaste contrabalançou as ‘vantagens’ da guerra como fator de mobilização da unidade nacional, de incentivo ao avanço tecnológico, de aprimoramento das capacidades defensivas e, se necessário, ofensivas.

Após quase cem anos de conflito, dos quais sessenta e sete sob a bandeira de um Estado judaico que ainda não é reconhecido pela maioria de seus antigos (e muitos deles ainda atuais) inimigos – além dos novos, que foram surgindo na esteira desse conflito –, a questão da paz ressurge com seu duplo e divergente desafio. O que é preferível: o domínio dos vencedores a ser mantido pela força, ou a paz das concessões, obtida por acordo? O que tem cada um desses formatos de redenção ou de risco? Qual deles é seguro, qual deles é perigoso?

Consideremos a primeira hipótese. O statu quo do vencedor tem sido a realidade, e conhecemos suas implicações e consequências. Há quem a advogue como a única possibilidade real, seja qual for o preço a ser pago na necessidade de mobilização constante, nas eventuais guerras e no perigo de confrontos cada vez mais destrutivos, no isolamento e demonização de Israel. A alegação é que não há interlocutores para uma paz verdadeira, não há como evitar a continuação da oposição a Israel, da demonização de Israel; os inimigos de Israel e do povo judeu não desistirão nunca, uma paz de concessões que enfraqueça Israel só vai encurtar-lhes o caminho a facilitar-lhes alcançar seu objetivo. A paz é perigosa.

Os que advogam a necessidade de interromper a direção desse conflito criando um fato novo, a aceitação de riscos em troca de compromisso de convivência pacífica não descartam as preocupações dos primeiros. Não há uma ingênua convicção de que uma assinatura de acordo represente o fim real do conflito, nem mesmo para os ‘moderados’ entre os adversários, certamente não para o Hamas, para o Hizbolá, para o Irã, para os ‘Estados islâmicos’, sem falar no Qatar, talvez na Turquia, e no islamismo radical (e esquerdas radicais ou panfletárias) no mundo inteiro. Mesmo para quem acredita que se deve ‘dar uma chance à paz’, a paz é perigosa.

Isso considerando os perigos externos. Quanto aos internos, a afirmação de Bourguiba, que nunca foi absurda, começa a ser mais do que plausível. As diferentes maneiras com que israelenses, e judeus não israelenses por todo o mundo, concebem o que deveria ser um futuro de segurança e de realização nacional judaica estão gerando uma situação interna na qual todo aquele que tiver uma visão diferente daquela que está no poder será considerado um inimigo, quem não concordar com as medidas do governo será um traidor. Os ecos da campanha de ódio que levou ao assassinato de Rabin há vinte anos voltam a ressoar em Israel. O perigo da paz é interno também.

A primeira pergunta, a do título, está respondida. A paz é perigosa. A pergunta então passa a ser: Deve-se correr o risco de uma paz perigosa? Interna e externamente?

Os israelenses acostumaram-se à chamada situação de no-win, na qual não há como se sair vencedor, cada alternativa traz suas irrevogáveis perdas. É como se uma estrada se bifurcasse e cada variante levasse a um inevitável abismo. Há solução para isso?

Há uma: voltar ao ponto de partida e construir outra estrada. Desfazer o paradigma. Pensar em outra coisa. A continuação do percurso atual, considerando as tendências vigentes na sociedade israelense e no povo judeu, e o desenvolvimento das tendências no Oriente Médio e no mundo, não permitem uma solução de continuidade que não seja perigosa. A solução, então, exige uma ruptura. Que, mesmo sendo ruptura em relação ao vetor atual pode ser um retorno à ideia original do sionismo, da criação de Israel, do reimplante do povo judeu no berço de sua história, mas em consonância com a realidade contemporânea. Um Estado judeu inserido na região e no mundo, calcado nos valores humanistas do povo judeu, que aspiram à harmonia entre o homem e a divindade, entre o homem e a natureza, entre o homem e seu semelhante. Se Israel era uma ideia possível em 1897 e durante a primeira metade do século vinte, se sobreviveu ao Holocausto, à malária dos pântanos e à aridez do deserto, se sobreviveu a sete guerras, se se firmou em tais condições como uma democracia, um país de alto desenvolvimento econômico, científico, tecnológico e educacional, se tem índices tão elevados nos medidores sociais, se resgatou comunidades judaicas inteiras e as integrou no país, se é um país de livre expressão, de livre prática religiosa, de liberdades individuais e coletivas, como não seria uma ideia possível depois de tudo isso, capaz de reescrever sua estratégia e suas táticas para o futuro de modo a se pacificar internamente, de conviver com todos os povos da região, inclusive com um estado palestino que o reconheça também, capaz de neutralizar com sua integração definitiva os argumentos e as ações do radicalismo político ou religioso que o contesta, venha de onde vier?

Evidentemente, não depende só dele. E talvez não tenha um parceiro seguro para isso. Mas dele depende a iniciativa de tentar. Tem a força para isso. Tem o fundamento filosófico e humanista para isso. Tem a história de seu povo para isso. Esse risco vale a pena. O perigo da paz só não é maior que o perigo da guerra.

paulo geiger

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